O início da Reforma Suíça por Ulrico Zuínglio
INTRODUÇÃO
Martinho Lutero foi o principal
teólogo alemão que difundiu os princípios da reforma protestante. O contexto de
corrupção no clero da Igreja já havia excedido os limites do bom senso,
provocando a ira não somente de teólogos como Lutero, mas de países e governos
que buscavam autonomia do império sagrado. Durante a Idade Média a sociedade
europeia esteve solidamente unificada em torno da fé católica, um fenômeno
conhecido como “cristandade”. Todavia, no fim desse período surgiu uma
grande insatisfação com a situação reinante na igreja: a corrupção de muitos
membros do clero, a opulência e as ambições seculares da alta hierarquia
(especialmente do papado), a religiosidade supersticiosa e ignorante das massas
e o relacionamento questionável com o Estado. Por muitos anos fez-se ouvir em
toda parte um clamor por “reforma na cabeça e nos membros”. Foi nesse contexto
que eclodiu a Reforma Protestante[1].
A ideia do monge era promover uma reforma dentro da Igreja Católica com base
nas doutrinas da justificação pela fé somente, da autoridade suprema da
Escritura e da centralidade do Evangelho em detrimento da lei, que era
fortemente enfatizado pela Igreja da época em um contexto de pobreza, fome e
pestes sobre a população. Entretanto, neste período de disputas e debates
barulhentos na Alemanha, a Suíça estaria prestes a presenciar um movimento
reformista mais radical ao de Lutero contra o papismo e com mais influência que
o próprio luteranismo. A proposta da reforma calvinista, iniciada por Ulrico
Zuinglio, envolveria todos os aspectos da sociedade, desde a religião à
política e originando um novo padrão de sociedade em relação ao que tinha sido
anteriormente estabelecido.
PANO DE FUNDO HISTÓRICO DA REFORMA SUÍÇA
A Suíça era um país privilegiado,
a luta pela autonomia do império papista já havia sido ganha em 22 de setembro
de 1499 em um tratado chamado de Paz de Basileia, onde a Confederação Suíça se
tornou independente do Império Romano-Germânico. Enquanto na Alemanha, o
governo era centralizado na figura de um imperador, a Suíça possuía uma
fragmentação política de cidades-estados, os chamados cantões, que possuíam
autonomia política e, em relação as demais nações, poderia ser denominada de
uma democracia, embora as cidades em se relacionavam com alianças militares,
tornando-as sujeitas a população local. Portanto, o apoio político era um fator
importante na tomada de decisões para transformações sociais, isto incluindo
também a própria região local. O país, como um todo, era considerado o mais
livre da Europa. Seus filhos tinham grande fama como soldados e por isso eram
muito procurados como mercenários, principalmente pelos reis franceses e pelos
papas[2].
As universidades estavam
presenciando o surgimento do movimento humanistas nas áreas de filosofia,
filologia e teologia. O humanismo não pode ser definido concretamente
justamente pois ele se manifestou de diversas maneiras na Europa, McGrath
sustenta que “podemos identificar no passado recente duas linhas principais de
interpretação do movimento. De acordo com a primeira linha, o Humanismo foi um
movimento dedicado ao estudo da literatura e línguas clássicas; de acordo com a
segunda, o Humanismo foi, basicamente, um conjunto de ideias abrangendo a nova
filosofia do Renascimento”[3].
O protestantismo, em termos de teologia, foi influenciado pelo humanismo de
primeira linha, adotando um comportamento crítico à tradução latina vigente na
Igreja, e passando a analisar os textos bíblicos nas línguas originais (o grego
e o hebraico). O modelo medieval priorizava mais o estudo das artes liberais do
trivium e do quadrivium[4],
enquanto os humanistas enfatizavam mais a retórica e a gramática. A grande
verdade é que o humanismo em si foi uma proposta de ensino contrária ao
escolasticismo medieval, isto porque esta última defendia uma teologia
científica (scientia no sentido de Aristóteles, isto é, um corpo de
doutrinas sistematicamente organizado e demonstrado racionalmente), os
humanistas, por sua vez, tinham uma visão menos aristotélica de sistematização,
para eles a piedade erudita e eloquente dos patriarcas , em contrapartida, não
era uma ciência, mas sim uma sabedoria real, uma retórica santa derivada das
páginas sagradas das Escrituras[5].
Nisto, se explica o interesse humanista nas línguas clássicas e nos retornos as
fontes originais dos escritos.[6]
Na ciência teológica temos o grande humanista Erasmo de Roterdã que, em 1516,
publica a primeira edição do Novo Testamento Grego, a busca pelos manuscritos
antigos e o início da crítica textual começaram a florescer na Europa. O
retorno às fontes (ad fontes) significou não apenas a reintrodução do que havia
sido perdido, mas também uma nova leitura das fontes a partir de uma nova
perspectiva e com novos métodos. A reforma faria uso completo disso[7].
ULRICO ZUÍNGLIO, O REFORMADOR DE ZURIQUE
Ulrico Zuinglio nasceu em
Wildhaus, um pequeno vilarejo em São Galo, no ano novo de 1484. Ele era o
terceiro de nove filhos de uma família camponesa, seu avô e pai foram
participantes do magistrado local e, portanto, foi fortemente influenciado por
um senso de independência e patriotismo. Aos dez anos de idade, ele foi para a
Basileia onde iniciou os seus estudos no latim, aos quatorze anos foi admitido
na Universidade de Viena, onde teve a influência do movimento humanista, em
1498. Mais tarde, ele volta para a Basileia onde definitivamente consegue seu
bacharelado e mestrado em estudos humanísticos, filosóficos e teológicos
(1506). Na Basileia, parece ter sido influenciado principalmente pela via
antiqua, isto é, pela teologia tomista[8].
No mesmo período, ele foi convidado para ser ministro em Graris, onde ficou ali
por dez anos como pregador, neste período ele ficou mais profundamente seus
estudos nos clássicos e nos pais da Igreja, posteriormente aprendeu grego e
conheceu o ilustre Erasmo de Roterdã. Ele adquire o Novo Testamento Grego de
Erasmo e passa a fortalecer seu interesse no caráter expositivo, proveniente do
humanismo de seu mais novo mestre.
Ainda neste contexto, a
Confederação Suíça passa a usar os seus soldados em guerras estrangeiras, em
1510, Zuínglio escreveu seu poema alegórico O boi, atacando o uso do
exército suíço para guerras estrangeiras[9],
contudo, a derrota brutal dos suíços na Batalha de Marignano (1515)
levou Zuínglio a se opor publicamente ao serviço dos suíços como mercenários[10].
Em 1516, ele foi transferido para Einsiedeln, uma paróquia que era centro das
peregrinações pelo famoso santuário Virgem Negra, e, dois anos depois assumi a
Grande Minster, em Zurique, embora uma pequena cidade de talvez sete mil
habitantes, mas rica e com influência política[11].
A reforma suíça em si mesma não
foi motivada ou incentivada e nem tão pouco influenciada pelo protestado de
Lutero à Igreja, embora mais tarde Zuinglio chegou a conhecer as obras do monge
alemão, o próprio Zuínglio diria que, antes de ter conhecido as doutrinas de
Lutero, chegara a conclusões semelhantes com base em seus estudos na Bíblia[12].
A educação humanista de Zuinglio o levou a tomar posturas mais severas e
radicais que Lutero, que por ser educado em uma tradição mais medieval, ainda
nutria simpatia pela tradição católica, em geral. Em suma, o pensamento de
Zuinglio era que é da Escritura que parte as necessárias normas de fé e prática
da Igreja de Cristo, não sendo necessário e nem permitido tradições humanas. Em
1522, ocorre na cidade de Zurique o famoso Caso das Salsichas, onde devido a
quaresma daquele ano, os homens que haviam comido carne neste período foram
levados ao Conselho da cidade e presos por quebrarem o jejum. Zuinglio pregou
contra a atitude do concílio em seu sermão A liberdade de escolha dos alimentos
e, mais tarde, publicou um livro sobre o assunto afirmando a liberdade do
crente na escolha dos alimentos. O conselho organizou um debate entre ele e o
bispo de Constança, que o acusou pelo caso anterior. O fracasso do bispo no
debate acabou fazendo com que o Conselho de Zurique permitisse com que o
reformador continuasse pregando em liberdade. A partir daí, com o apoio dos
magistrados, a reforma de Zuinglio teve forte progresso. Zuínglio diferia de
Lutero, pois, embora o alemão cresse que todas as práticas tradicionais deviam
ser preservadas, exceto aquelas que contradissessem a Bíblia, o suíço
sustentava que tudo o que não fosse encontrado explicitamente nas Escrituras
devia ser rechaçado[13].
O caráter humanista do reformador levou a teologia reforma ressaltar a
supremacia, autoridade absoluta e infalível da Escritura, a prática cristã
agora não está fundamentado na conveniência das tradições humanas, nem mesmo
nos modismos da época, mas toda a prática cristã se fundamenta apenas naquilo
que a Escritura prescreveu. Gonzáles dirá que Lutero cria que bastava
desfazer-se de tudo o que contradizia as Escrituras, enquanto Zuínglio insistia
na necessidade de preservar somente o que se encontrasse explicitamente na
Bíblia. Uma vez mais o que preocupava Lutero não eram as formas externas da
religião, mas a proclamação do verdadeiro evangelho. Zuínglio cria que o retomo
às fontes devia ser o princípio orientador da Reforma, e parte desse retomo
consistia em desfazer-se de todas as inovações feitas no decorrer dos séculos,
por mais insignificantes que fossem[14].
Já deve-se ter notado diversas
divergências teológicas entre os dois reformadores indiretamente, vamos agora
dedicar a nossa atenção a elas. Antes disso, é importante notar como o termo “reformado”
passou a representar mais o pensamento suíço do que os ideais do monge alemão.
A interpretação da maioria dos estudiosos é que foi na reforma suíça que vemos
uma ruptura com a Igreja de Roma e uma verdadeira ênfase na Escritura.
Curiosamente, o termo “evangélicos” foi fortemente atribuída aos
luteranos, por tê-la colocado acima da massiva pregação da Lei existente na
Igreja Medieval, alimentando o medo e incentivando os incautos a comprarem sua
salvação pelas indulgências romanas, salvarem seus familiares do purgatório,
entre outros absurdos da Igreja Romana. Mas as diferenças presentes na teologia
desses reformadores demonstra como a reforma destes se deu de modo independente.
A autoridade Escritura em detrimento da tradição
A posição de Lutero, por sua
formação medievalista, legou a ele uma certa simpatia pela tradição católica,
sua oposição era aquelas práticas da tradição que feriam diretamente o ensino
das Escrituras. Zuinglio, de formação humanista, vai adotar um posicionamento
mais radical e colocar uma exclusividade na Escritura, afirmando que toda a
tradição é válida, desde que seja ensinada pela Palavra de Deus. A diferença
parece pouca, mas em termos práticos, a Escritura tomou uma ênfase mais
característica no reformador suíço, pois a prática e liturgia cristãs deve se
fundamentar apenas nas Sagradas Escrituras, Lutero admitia uma prática cristã
que embora não fosse ordenando na Escritura, não contradizia a ela.
Ponto de partida distinto: a justificação pela fé e Soberania de Deus
Lutero sofreu muito para
sentir-se paz no Evangelho de Cristo, a sensação de estar debaixo de uma ira
divina levou ele a debates internos e a uma tristeza muito profunda. Essa
experiência direcionou seu ponto de partida, a partir do momento que ele compreendeu
a doutrina do Sola Fide, isto é, somente pela fé somos justificados por
Deus. Essa perspectiva foi, por assim dizer, a sua chave hermenêutica, na qual
ele descarta a interseção dos santos, a mediação da Igreja e as missas.
Zuinglio, por sua vez, dependeu totalmente de seu estudo das Escrituras e
interesse político, e colocou a Soberania Divina e sua Providência como o
fundamento de sua teologia. A grande expressão dessa diferença está na doutrina
da predestinação, que ambos criam, mas o monge alemão via isto da perspectiva
de que o homem é caído em seus pecados e sua incapaz de livrar-se deles,
enquanto o reformador suíço cria que a predestinação é uma consequência lógica
do Ser de Deus e seus atributos, é impossível, para ele, afirmar a onipotência
divina sem que se assuma que tudo está debaixo de uma exaustiva providência.
O nominalismo de Lutero contra o escolasticismo de Zuinglio
Os debates entre humanistas e
escolasticismo era grande, ambos apontava as falhas de métodos, coerência e
prioridades, os humanistas levavam a arte das letras e a interpretação literal
como um elemento primordial, o escolasticismo estava mais preocupado com uma
teologia científica, principalmente influenciado pelo aristotelismo. Zuinglio
recebeu ambas as educações e soube usar e aproveitar ambos os métodos para o
desenvolvimento de seus argumentos, pregação e teologia. Portanto, ele não
descartou o uso da filosofia (a metafísica, lógica etc.) de seu discurso, via
como algo positivo e frutífero para a teologia sagrada. Entretanto, Lutero foi
influenciado pelo nominalismo de Ockham, embora ele não tenha sido um total
nominalista, ele rejeitou o realismo tomista, rejeitando, portanto, toda a
tradição escolástica, depreciando Aristóteles como um “professor pagão,
morto, cego, maldito, orgulhoso e fraudulento”, considerando assim qualquer
doutrina construída a partir de uma lógica aristotélica extremamente tola[15].
O corpo de Cristo na Ceia do Senhor
Lutero rejeitou a ideia papista da transubstanciação na Ceia, segundo ele, o pão e o vinho continuam sendo o que são, mas, não obstante, há na Ceia do Senhor uma misteriosa e miraculosa presença real da pessoa completa de Cristo, corpo e sangue, nos elementos, sob eles e junto deles[16]. Ele afirmou que não havia nenhuma transformação miraculosa do pão e do vinho no próprio corpo e sangue de Cristo, rejeitando também a distinção aristotélica entre a substância e os acidentes. Zuinglio, por sua vez, não considerou os sacramentos meios de graças reais e, argumentou que o corpo glorificado de Cristo está localizado espacialmente no céu, não sendo onipresente. Logo, a ceia do Senhor é uma refeição espiritual que nos leva a memória da obra de Cristo. Argumentou que o corpo glorificado de Cristo está localizado espacialmente no céu, não sendo onipresente. Portanto, não existe uma presença real ou física de Cristo nos elementos. Lutero via nisso um indício de nestorianismo, enquanto, para Zuínglio, a posição luterana acerca da onipresença corpórea de Cristo apontava para a antiga heresia do eutiquianismo[17]. Essa disputa foi a principal controvérsia que levou os historiadores a interpretar os reformados como iniciadores de movimentos de reforma que seguiram em paralelo sem se juntarem definitivamente, fazendo com que essas tradições, embora amigas em uns pontos, fossem fortemente inimigas em outros.
[1]
SOUZA, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica [recurso
eletrônico] - 1. ed. - São Paulo: Mundo Cristão, 2018
[2]
WALKER, Williston. História da Igreja Cristã [tradutor Paulo D.
Siepierski] – 3ªedição. São Paulo, SP. ASTE, 2006 – pág. 517
[3]
MCGRATH, Alister E. Teologia histórica. São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 2007
[4]
O trivium (gramática, dialética e retórica) e o quadrivium
(aritmética, geometria, música e astronomia) eram as conhecidas artes liberais,
a primeira se dedicava aos estudos fundamentais da escrita e fala, enquanto a
segunda aos estudos matemáticos. A educação medieval consistia nestas sete
artes liberais, a primeira de natureza fundamental e a segunda, nem sempre
ensinada em todos os momentos e em todas as escolas (ASSELT, pág.99).
[5]
WOODBRIDGE, John D.; JAMES III, Frank A. História da Igreja: da Pré-Reforma
aos dias atuais – Vol. 2: Rio de Janeiro; Editora Central Gospel, 2017
(pág.109)
[6]
É importante ressaltarmos que na figura dos reformadores, a rejeição ao
escolasticismo não foi total, Zuinglio em seu livro Da Providência de Deus
usa toda a tradição patrística e escolástica para a defesa da soberania de
Deus, isto ocorre também com Calvino em seu escrito Contra os libertinos.
Aliás, o século XVII foi fortemente escolástico entre os reformados, que se
utilizando da filosofia aristotélica e das capacidades filológicas e humanistas
inerentes aos primeiros reformados, defenderam a doutrina da soberania de Deus,
liberdade humana e até mesmo questões de sacramentologia.
[7]
ASSELT, William van. Introdução ao Escolasticismo Reformado, estudos
histórico-teológicos reformados: São Luis, MA. Editora Theophilus, 2023
(pág.122)
[8]
LINDBERG, Carter. História da reforma. tradução Elissamai Bauleo.
(1ªed.) – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
[9]
BARRETT, Matthew. Teologia da Reforma; tradução Francisco Nunes. – 1.
ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017
[10]
WOODBRIDGE, John D.; JAMES III, Frank A. História da Igreja: da Pré-Reforma
aos dias atuais – Vol. 2: Rio de Janeiro; Editora Central Gospel, 2017
(pág.185)
[11]
LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma história do Cristianismo (Vol.2) – 1500 a.D e
1975 a.D – tradução Heber Campos. São Paulo, SP; Editora Hagnos, 2006
[12]
GONZÁLEZ, Justo L. História ilustrada do cristianismo: a era dos reformadores até
a era inconclusa – 2ª ed.; São Paulo: Vida Nova, 2011 (pág.54)
[13]
Ibid, (pág.55)
[14]
Ibid, (pág.56)
[15]
WOODBRIDGE, John D.; JAMES III, Frank A. História da Igreja: da Pré-Reforma
aos dias atuais – Vol. 2: Rio de Janeiro; Editora Central Gospel, 2017
(pág.146)
[16]
Berkhof, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Editora Cultura Cristã,
1990
[17]
SOUZA, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica [recurso
eletrônico] - 1. ed. - São Paulo: Mundo Cristão, 2018
Comentários
Postar um comentário