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sexta-feira, 11 de julho de 2025

A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO POR JOHANNES MACCOVIUS


LOCI COMMUNES, CAP. XV, De Prædeftinatione

Ora, a Predestinação é o decreto eterno de Deus, ou seja, a vontade eterna de Deus, quanto ao fim sobrenatural de qualquer homem, e quanto aos meios para se chegar a esse fim.

Não tratamos aqui da predestinação dos anjos, visto que, embora o Espírito Santo trate disso nas Sagradas Escrituras, fá-lo de modo incidental e brevemente, pois o Espírito Santo quis que sua Palavra fosse proposta não por causa dos anjos, mas por causa dos homens.

A palavra “predestinação” pode e deve ser atribuída tanto à eleição quanto à reprovação.

Que o termo predestinação possa e deva ser aplicado tanto à eleição quanto à reprovação, torna-se evidente:

I. Porque a eleição não somente é expressamente chamada de predestinação, em Rm 8.29 e Ef 1.5, mas também este nome é aplicado aos réprobos, em At 4.28: “Reuniram-se para fazer tudo o que tua mão predestinou.” Essas palavras podem e devem ser referidas também àqueles réprobos que se reuniram contra o Senhor, a saber, Herodes e Pilatos, de modo que o sentido seja: Deus não somente predestinou que Cristo morresse, mas também que morresse pelas mãos daqueles, e que, portanto, estes foram preparados para realizar a morte de Cristo.

II. Depois, isso também se evidencia pelo fato de que, sendo alguns predestinados para a vida, entende-se que os restantes são predestinados para a morte. Assim o exige a própria natureza da oposição. Portanto, todas as vezes que a Escritura menciona a predesti­nação dos eleitos para a vida, confirma também a predestinação para a morte.

III. Porque a condenação para a morte, que agora ocorre no tempo, pressupõe uma predestinação feita desde a eternidade; assim como a justificação e a vida pressupõem uma destinação e ordenação para a justificação e a vida.

IV. Porque a predestinação é o decreto de Deus sobre os homens e sobre seu fim sobrenatural. Ora, Deus decretou tanto a respeito dos réprobos quanto dos eleitos, o que haveria de fazer: isto é, decretou tanto a respeito daqueles que seriam condenados à morte, quanto a respeito daqueles que seriam justificados, isto é, ordenados para a vida; e assim como predestinou estes para a vida, também predestinou aqueles para a morte. Por isso:

V. Os Pais da Igreja, entendendo a predestinação de forma geral, aplicam-na não somente aos eleitos, mas também aos réprobos, de modo que ambos são ditos predestinados desde a eternidade: uns para a vida, outros para a morte. Assim escreve Agostinho, A Cidade de Deus, livro XV, cap. 1: “Misticamente chamamos de duas cidades, isto é, de sociedades humanas, das quais uma foi predestinada para reinar eternamente com Deus, e a outra para sofrer o juízo eterno com o diabo.” E no Enchiridion, cap. 100, ensina que: Deus, como sumamente bom, sabe usar bem tanto os bons quanto os maus: para a condenação daqueles que, com justiça, predestinou ao castigo, quanto para a salvação daqueles que, com bondade, predestinou à graça.

VI. Se aquilo que é denotado pela palavra "predestinação" é atribuído à reprovação, então a própria palavra também pode ser atribuída; pois devemos ser flexíveis quanto às palavras, desde que a realidade esteja clara. Ora, aquilo que é significado por esta palavra se vê que se aplica à reprovação, porque a predestinação é o conselho de Deus a respeito do fim do homem. Ora, tal é também a reprovação. Pois certamente ninguém nega que a reprovação seja um decreto de Deus; mas que Deus decretou não apenas o fim, mas também os meios, demonstram estas razões: primeiro, porque Deus, sendo sapientíssimo, decretou fazer todas as coisas por causa de fins determinados. Com efeito, querer o fim e não querer os meios sem os quais esse fim não pode ser alcançado é querer o fim e ao mesmo tempo não querer o fim, o que constitui uma contradição de vontade. Segundo, Deus quer, contudo, permitir certos meios, que por sua natureza são maus, e outros, que são bons. Ora, o fim ao qual essas coisas são ordenadas, Ele o realiza no gênero humano, quer seja esse fim a salvação, quer a condenação, na medida em que esta é a justíssima pena dos pecados. Por isso se lê em Amós 3.6: "Não há mal na cidade que o Senhor não tenha feito." Terceiro, aquilo que o Senhor decretou, porque o quer, necessariamente acontece; daí se conclui que se deve julgar da vontade de Deus a partir do evento: pois, já que certos homens chegam a tais fins e a tais meios, segue-se que Deus os decretou; e com isso já se compreende como devem ser entendidas aquelas passagens da Escritura, como em Provérbios 16.4: "O Senhor fez todas as coisas para si mesmo, até mesmo o ímpio para o dia do mal", e também "vasos da ira preparados para a perdição", Romanos 9.22. Pois o homem mau não existia antes de ser feito para a perdição, nem os vasos da ira existiam antes de serem preparados para a destruição; Deus, com efeito, não age com um fim incerto e jamais falha quanto ao seu fim. Tampouco prejudica este argumento o fato de se dizer que o ímpio foi feito para o dia do mal ou que os vasos da ira foram preparados para a destruição, pois se diz que o ímpio e os vasos da ira foram feitos, não porque antes já fossem assim antes de serem feitos ou preparados para a destruição, mas porque todos aqueles que o Senhor fez ou preparou para a destruição são tais, isto é, ímpios e vasos da ira. Dirás: podem, no entanto, ser chamados de feitos ímpios, ou vasos da ira preparados, porque Deus os faz já a partir de uma massa corrompida. Respondo: ainda assim a conclusão é a mesma, pois se Deus permitiu que essa massa se corrompesse, é necessário perguntar com que fim Ele o fez; se com o fim de fazer alguns vasos para honra e outros para desonra. Se negares isso, também deverás negar aquelas razões pelas quais se provou que Deus jamais falha quanto ao seu fim; se, porém, o admitires, deverás igualmente reconhecer que, embora Deus forme os homens a partir da massa corrompida, Ele faz vasos da ira, faz o ímpio, não porque infunda neles a impiedade, mas porque não purifica a matéria da qual os forma da qualidade depravada que ela contraiu, mas, no entanto, permitiu que essa matéria se corrompesse com esse fim, para que esses mesmos fossem tais, e assim para que se abrisse espaço à manifestação da justiça de Deus ao punir. Portanto, é necessário afirmar que Deus decretou antes o fim dessas pessoas, e só depois as ordenou, como meio, a esses fins. A propósito da passagem de Provérbios 16.4, pergunta-se: como se diz que Deus cria o ímpio para o dia do mal? Parece, com efeito, que Deus seja causa não só do mal em concreto, mas também da malícia em abstrato. Respondo: não se trata nesse lugar de Adão e Eva, os quais foram recebidos de novo na graça, pois a eles foi feita uma promessa, e isso desde o princípio, de modo que não se pode dizer que foram criados para o dia do mal. Mas se trata da descendência ímpia de Adão, que dele é propagada naturalmente. Dirás: como, então, Deus é dito criar o mal? Respondo: Ele não faz com que o homem seja mau enquanto tal, mas faz aquele que é mau, isto é, imputa o pecado de Adão a todos os que são gerados naturalmente a partir dele, de tal maneira que são tidos como se eles próprios tivessem cometido o pecado, e por isso Ele pune a todos não apenas com a morte temporal, mas também com a morte espiritual, que em Efésios 2 é chamada morte nos pecados.

VII. Prova-se o mesmo por expressões equivalentes, pois os réprobos são ditos "destinados à ira", em 1Ts 5.9 e 1Pd 2.8; e "pré-escritos para a condenação", em Jd v. 4. Ora, o que é isso senão serem predestinados? Bellarmino levanta objeção aos dois últimos textos: “Dizem-se postos e pré-escritos para isso, mas não se diz por quem; é verossímil, porém, que seja pelo diabo.” Resposta: Fica claro que foram pré-escritos por Deus, mesmo que isso não seja dito expressamente nos lugares citados. Pois por quem poderiam ter sido pré-escritos e postos, senão por aquele que os criou para o dia do mal? (Pv 16). Além disso, é evidente que foi feito por Deus, conforme Rm 9, no versículo final.

Obj. 1: Em Rm 8.29 se diz que aqueles que Deus predestinou, a esses também justificou e glorificou; o que não pode ser dito dos réprobos. Daí se quer concluir que a predes­ti­nação não pode ser aplicada à reprovação. A premissa é certa a partir do texto citado. Resposta: Não se trata nesse lugar dos predestinados em geral e de modo absoluto, mas dos predestinados que foram previamente conhecidos; pois assim diz o texto: “Aqueles que de antemão conheceu, a esses predestinou.” Ora, ali se entende por presciência não uma simples e nua presciência, pela qual Deus conhece todas as coisas, mas uma presciência com afeto, isto é, com amor — conforme Sl 1.6 —, o qual amor é chamado, pelos teólogos, de amor de benevolência; de modo que o sentido é: aqueles que Deus envolveu com amor de benevolência, esses Ele predestinou, a saber, à vida, como mostram as palavras seguintes.

Obj. 2: A palavra “predestinação” se aplica mal àquilo que não tem propriamente um fim. Ora, a reprovação não tem propriamente um fim, pois fim, propriamente falando, é algo bom. A condenação, porém, que se diz ser o fim da reprovação, não é algo bom, mas mau. Resposta: Faz-se distinção entre fim último e intermediário. Pois seja; a condenação é o fim da reprovação, mas é um fim intermediário, não o último. O último, com efeito, é a manifestação da justiça de Deus na justa condenação, e isso é algo ótimo.

Obj. 3: A predestinação é a constituição do fim e a ordenação dos meios para o fim. Ora, a danação eterna não é o fim do homem, mas apenas o seu extremo; por isso, a reprovação não pode constituir uma espécie de predestinação. Pois entram em contradição entre si ser ordenado ao fim e ser ordenado ao mal. Com efeito, todo fim é algo ótimo e a perfeição da coisa; a danação, porém, é imperfeição e o extremo mal da coisa. Resposta: O mal de pena, como é a danação, é algo fisicamente ou naturalmente mal, mas eticamente e moralmente bom. Ora, Deus não é autor do mal enquanto tal, pois Seus olhos são mais puros do que para ver o mal, conforme Hc 1.13. O mal de pena, porém, sendo algo bom, é de Deus, como diz Am 3.6; e por isso é bom: primeiro, por ser infringido segundo as leis da justiça de Deus; segundo, porque através dele os maus são reprimidos, para que não sigam pecando ainda mais.

A predestinação de Deus é absoluta quanto à causa externa impulsiva, mas não é absoluta quanto ao fim e aos meios.

Já mostramos acima que a vontade de Deus não tem causa externa alguma; o que agora repetimos de forma específica, para que essa doutrina se fixe melhor nas mentes, o que certamente não é sem razão — pois esta doutrina, corretamente compreendida, torna fácil a inteligência da doutrina da predestinação. Afirma-se, portanto, em tese: 1. Que a predestinação é absoluta quanto à causa impulsiva. Pois, 1) se Deus fosse impelido por algo para agir, então não seria agente simplesmente e primeiro. O que é falso, já que, assim como é a primeiramente, é também o primeiro agente. 2) Seguir-se-ia que Deus sofre, pois seria movido por alguma coisa — e ser movido é sofrer. Ora, Deus é imutável e impassível. 3) Seguir-se-ia que Deus, ao agir, seria menos perfeito que alguma outra coisa, e seria causa menos principal que alguma outra mais principal — o que contradiz à ideia de causa primeira. 4) Se houvesse algo que movesse Deus a determinar isto ou aquilo, então as coisas não dependeriam do decreto de Deus. Mas todas as coisas dependem de Deus — as boas, porque Ele as efetua; as más, porque as permite. E nada pode acontecer a Deus de forma imprevista, pois tudo ocorre segundo o Seu santíssimo conselho, e por isso Ele não pode ser movido por coisa alguma. Nós, de fato, somos movidos pelas coisas boas ou más que nos sucedem fora da expectativa; mas a Deus nada sucede fora da expectativa, como está em Lm 3.37. 5) Se Deus fosse movido por algo, então dependeria disso como causa para agir, e, ao operar, dependeria de outro. Ora, isso é contrário à natureza de Deus, pois então Ele não seria Deus. Como algo é em seu ser, assim é em sua operação — e vice-versa. 6) Seguir-se-ia que haveria mudança em Deus, pois antes de ser movido, não era; e, portanto, sucederia algo a Deus: o começar a ser movido.

Em segundo lugar, diz-se que a predestinação não é absoluta quanto ao fim, o que é certo — pois Deus, sendo sapientíssimo, nada quer sem um fim. O fim da predestinação é a manifestação de Sua glória. 2) Diz-se, ainda, que ela não é absoluta quanto aos meios. Por isso, de forma imprópria nos contradizem os adversários, como se, dado que tudo se realiza pelo decreto e pela providência de Deus, não fosse necessário que nos empenhássemos com diligência, bastando-nos dormir ociosos e apenas esperar o impulso de Deus. Ora, se Ele necessitar de nossa ação, mesmo contra nossa vontade nos moverá à obra que quiser realizar por meio de nós. Resposta: Os santos nas Escrituras nos são apresentados de forma muito mais sincera no modo como pensam, falam e julgam sobre os decretos e a providência de Deus. O anjo, em Gn 19, diz com palavras explícitas a Ló: “Apressa-te a ir para Zoar, e ali salva-te, pois não posso fazer coisa alguma até que tu ali chegues.” Eis a providência de Deus: Ló é preservado com os seus, os cidadãos de Sodoma e das cidades vizinhas são destruídos; no entanto, na própria obra da preservação, é requerido o esforço de Ló — e esse esforço é espontâneo. “Não posso fazer nada”, diz o anjo, “até que tu chegue a Zoar.” O profeta e rei Davi claramente diz no Sl 31: “Em ti confiei, Senhor, disse: Tu és o meu Deus, nas tuas mãos estão os meus tempos.” Ainda assim, aquele que havia entregue inteiramente sua vida à providência divina, diligentemente deliberou como, com sua cautela e esforço, poderia escapar das ciladas de Saul, seu sogro. Tampouco desprezou a ajuda e os artifícios de Mical, sua amada esposa; não disse: “Todas as coisas são conduzidas pela providência de Deus, logo não preciso de artifícios. Ele pode me livrar das mãos dos soldados de Saul, pois é onipotente, ou pode salvar-me por outro modo miraculoso; descansemos, pois, e deixemos que Deus opere em nós.” Antes, ele entendeu que a providência de Deus procede por meios e por certa ordem, e que era seu dever, no temor de Deus, aplicar-se aos meios e mover todas as pedras possíveis.

Paulo ouviu do Senhor: “Assim como em Jerusalém testemunhaste de mim, assim também é necessário que em Roma o faças.” E embora ele não duvidasse da verdade das promessas divinas, nem ignorasse o poder da providência divina, ainda assim, quando seu sobrinho (filho de sua irmã) lhe contou que os judeus conspiravam contra sua vida, secretamente o enviou ao tribuno, pedindo que Paulo não fosse conduzido à presença dos judeus; tampouco se opôs aos soldados romanos que o conduziam a Antipátrida e, de lá, o escoltavam com cavaleiros até Cesareia. O mesmo Paulo, navegando no mar Adriático e já próximo de um naufrágio perigosíssimo, ao ver os demais na embarcação aterrados, disse: “Exorto-vos a ter ânimo, pois não haverá perda de vida entre vós, senão do navio. Pois apareceu-me esta noite o anjo de Deus, a quem pertenço e a quem sirvo, dizendo: Não temas, Paulo; importa que compareças diante de César; e eis que Deus te deu todos os que contigo navegam. Por isso, tende ânimo, varões. Pois creio em Deus, que assim será, conforme me foi dito.” No entanto, pouco depois, quando os marinheiros procuravam fugir do navio, disse o mesmo Paulo ao centurião e aos soldados: “Se estes não permanecerem no navio, não podereis salvar-vos.

O objeto da predestinação é uma coisa segundo a razão do fim, enquanto está na intenção, e outra coisa enquanto está na execução: segundo a razão do fim, enquanto está na intenção, é o homem possível de fato, ou, como gostam de dizer nas Escolas, criável; segundo a razão do fim, enquanto está na execução, é o homem condenado, criado, a ser permitido no pecado, e pecador. Para que isto se entenda, explicaremos em poucas palavras antes de provarmos isto. Deus, antes que tivesse decretado criar estas coisas que criou, soube que todas estas coisas eram para si possíveis, e portanto soube que o gênero humano também era possível de fato para si; mas também soube isto: se fosse criar o homem na integridade, justiça e santidade, e fosse permitir que ele caísse, então ele cairia, e desta forma seria oferecida a ocasião para manifestar sua justiça punitiva em alguns, e simultaneamente sua misericórdia em outros; Ele, porém, quis esses fins, e por conseguinte decretou também criar o homem, e, uma vez criado na integridade, permiti-lo cair, e deixar alguns caídos no pecado, libertar outros, que em nada eram melhores que aqueles, da queda; e assim perder aqueles, e salvar estes.

De modo que se deve considerar que assim estabeleceu consigo mesmo: Quero manifestar o poder nos homens, bem como a justiça punitiva e a misericórdia; e porque isso não pode acontecer sem o pecado, e o pecado não ocorre sem permissão, e não há permissão sem que se permita alguém cair, por isso quero criar o homem, permiti-lo na queda, e que caia. Esta, com efeito, é a razão dos decretos de Deus (se é permitido, mesmo que balbuciando, alcançar sua profundidade, ou, se for lícito, tentarmos fazê-lo); precede o conhecimento de Deus, pelo qual Ele sabe o que é possível de fato para si, como é o homem. E de fato sabe que, se fosse permitir que ele caísse, ele cairia; e se ele fosse cair, seria dada ocasião para manifestar a misericórdia em alguns, e a justiça em outros. Portanto, Ele decretou: Quero punir Caim, Saul, etc.; logo, permitirei que caiam. Quero salvar Paulo, Pedro; logo, manifestarei a misericórdia a eles, e os levantarei da queda.

Ora, que isto seja assim, mostro a partir daqui: (1) Segundo a razão do fim, enquanto se considera na intenção, o gênero humano, como possível a Deus, é o objeto da predestinação. Se Deus tivesse decretado criar algo antes que estivesse estabelecido junto a si o fim, então certamente teria decretado fazer algo sem fim algum: mas isso é absurdo; pois não é próprio do sábio ignorar o porquê faz alguma coisa. Logo, teve previamente estabelecido junto a si o fim, antes de ter decretado criar as coisas; (2) Além disso, se Deus decretava o fim antes (usamos essas palavras não para denotar prioridade ou posteridade temporal, mas de ordem), do que decretava a existência futura das coisas: então decretava o fim ou a partir do nada, ou a partir das coisas possíveis de fato. Não a partir do nada, pois o não-ser não tem fim. Logo, a partir das coisas possíveis de fato. Mas, para que não pareçamos trazer algo novo, confirmemos a questão com autoridade: pensa assim conosco o claríssimo Doutor Gomarus, na disputa da trigésima quarta sobre a predestinação, tese 23. Eis suas palavras: “O objeto da vontade predestinante, que não pode se mover ao desconhecido ou ao acaso, foi mostrado pelo intelecto — pela presciência divina —, ou seja, foram as criaturas racionais que podiam, todas, ser predestinadas e criadas.” E assim, já está claro o que se deve responder àquele argumento do adversário, que é o seguinte: “Todo ato é posterior, por sua natureza, ao objeto; pois o objeto é dito relativamente: logo, aquilo que nele é absoluto, é por natureza anterior à relação; o objeto, portanto, é anterior em si ao ato que a ele se dirige. Ora, o homem é o objeto da predestinação. Logo, o homem é anterior ao ato da predestinação. Mas o homem é o que é pela criação; logo, a criação é anterior à predestinação etc.

Vamos agora, portanto, ao objeto da predestinação, enquanto considerado na ordem da execução; ora, este é o homem a ser criado, criado, a ser permitido no pecado, e pecador. Isto mesmo é desenvolvido pelo doutíssimo Piscator, no livrinho De gratia Dei, na questão sobre o objeto da predestinação, pág. 176, deste modo: "Se Deus, desde a eternidade, decretou salvar alguns homens por misericórdia, e punir outros por justiça, então considerou os homens tanto como a serem salvos quanto a serem punidos, e como a serem criados, como criados íntegros, mas capazes de cair, e finalmente como pecadores; a razão disso é que, sem a intervenção desses três meios, Ele não poderia ter chegado a esses fins, como é evidente." Quanto ao que se acrescenta, que Deus não poderia ter chegado a esses fins senão com a intervenção desses meios, isso se deduz do seguinte: Se esses fins são a manifestação da justiça e da misericórdia, então não teria havido lugar para manifestar nem misericórdia nem justiça, se o pecado não tivesse existido; mas o pecado não teria existido, se não tivesse existido um homem que pudesse pecar; e um homem que pudesse pecar não teria existido, se não tivesse sido criado por Deus íntegro e permitido a cair.

Objeção 1: Isso pode parecer duro de se afirmar — que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios; pois assim parece que Deus não pode agir sem meios. Resposta: Quando dizemos que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios, não o afirmamos em razão de alguma deficiência de poder em Deus, mas sim por uma deficiência de objeto no qual o poder de Deus pudesse exercer-se; do mesmo modo, por exemplo, como quando digo que Deus não poderia manifestar sua sabedoria a uma criatura racional, se tal criatura racional não existisse. Com isso não quero dizer que tal coisa não pudesse ser feita por deficiência de poder em Deus, mas sim por deficiência do objeto ao qual a sabedoria de Deus deveria ser manifestada. Assim como um homem liberal não pode distribuir esmolas onde não há quem as receba — não por deficiência de poder, mas por deficiência de objeto.

Objeção 2: se sem esses meios Deus não pode alcançar tais fins, então Deus destinou os homens ao pecado.

Resposta: Isto é certo. Assim como Deus não pôde perdoar pecados àqueles que não pecaram, nem tampouco pôde punir por pecados aqueles que não pecaram, assim, para que pudesse fazer ambas as coisas, foi necessário que ele destinasse todos os homens ao pecado. Com efeito, quem quer o fim, também quer os meios necessários. Mas os adversários negam que Deus tenha proposto a si mesmo tais fins. Resposta: é em vão que o fazem, pois o Apóstolo o afirma, em Rm 9.22–23.

A controvérsia entre nós e os adversários é a seguinte: se o Apóstolo, no capítulo 9 da Epístola aos Romanos, trata da justiça pela fé ou da predestinação?

O adversário e os seus seguidores sustentam que o Apóstolo trata da justiça pela fé. Com efeito, imaginam que o intento do Apóstolo é ensinar que devem ser considerados filhos de Abraão apenas aqueles dentre os judeus que, abandonando a justificação pela lei, seguem a justiça e a fé; e eles torcem o Apóstolo e, como que à força, com tenazes, extraem dele aquilo que pensam favorecer seu erro a respeito da eleição com base na fé prevista. Contudo, toda essa dissertação de Paulo, sobre a eleição, que se estende do versículo 16 ao 30, não trata da justificação pela fé, nem quer o Apóstolo aqui provar que o homem é justificado pela fé, ou que Deus elege aqueles que, pela fé, se apegam a Cristo. Ele quer provar unicamente isto: que o homem não é verdadeiramente filho da promessa por causa das obras da lei, mas por causa da eleição gratuita e da misericórdia.

Com efeito, é manifesto que aqui não se opõem obras e fé, mas eleição e o Deus que chama. Assim no versículo 11: ele não diz "não pelas obras, mas pela fé", mas "não pelas obras, mas pelo que chama". Do mesmo modo, quando no versículo 16 diz: "não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece".

Por isso também, a salvação por Cristo a ser obtida não é sequer aqui mencionada; e os argumentos que o Apóstolo aduz não ensinam qual é o meio para obter-se a salvação, mas todos são dirigidos a provar que a causa da eleição de um — por exemplo, de Pedro — e da rejeição de outro — por exemplo, de Judas — reside unicamente no beneplácito divino, e que isso não faz com que Deus seja injusto.

Além disso, aplica-se aqui também a distinção entre os filhos de Abraão, segundo a qual eles são divididos em filhos da carne e filhos da promessa. Filhos da carne são aqueles que descendem de Abraão apenas segundo a carne, ou de algum outro modo carnal. Pois ser unicamente semente natural e carnal de Abraão e ser filho da carne são a mesma coisa. Já filhos da promessa são aqueles que, pela promessa gratuita, foram dados a Abraão como pai dos crentes, conforme o versículo 9. Com isso já está claro o quão profundamente se engana o adversário, ao pensar que aqui se trata de justificação. Pois o Apóstolo ensina que aquilo que expôs a respeito da distinção entre os filhos de Abraão deve ser aplicado ao seu propósito, isto é, que são e se chamam filhos da carne aqueles que buscam a justiça pelas obras da lei, e que são e se chamam filhos da promessa aqueles que procuram ser justificados pela fé.

Mas, se são filhos da carne, e por isso são chamados tais os que pela obra da lei procuram alcançar a justiça, então Ismael e Esaú não foram filhos da carne, pois eles foram — como diz o termo grego βέβηλοι, profanos — assim como o Apóstolo atesta expressamente a respeito de Esaú em Hb 12.16, e Moisés diz acerca de Ismael, em Gn 21, que ele foi um zombador; veja Gl 4.29.

Do mesmo modo, se os filhos da promessa o são também por isso, que são justificados pela fé, como o Adversário quer, então certamente o Apóstolo deveria ter apresentado isso aqui como argumento; mas disso não há nenhuma menção, antes se propõe outra coisa, a saber, isto: “Esta é a palavra da promessa: por este tempo virei, e Sara terá um filho.” Trata-se, portanto, aqui da causa pela qual Israel foi filho da promessa: a saber, a promessa gratuita de Deus. E certamente, se ser filho da promessa é o mesmo que ser nascido segundo o espírito, isto é, ser um homem espiritual — o que, contudo, ninguém tem de si mesmo, mas do dom gratuito de Deus, que o concede a quem quer, e igualmente a quem quer o nega.

Porque, então, Deus faz isso, não pode ser dada outra causa além daquela que o Apóstolo apresenta: que, a saber, este — por exemplo, Isaque e Jacó — Deus elegeu para a salvação, e, por isso, também para os meios pelos quais esta é conferida; aqueles — a saber, Ismael e Esaú — reprovou, como se mostra pelos versículos seguintes.

Contudo, os Adversários não querem admitir que essas pessoas, que aqui são nomeadas por Paulo, sejam consideradas em si mesmas, mas apenas como tipos: Isaque e Jacó como filhos da promessa, Ismael e Esaú como filhos da carne; e tentam provar isso a partir da Epístola aos Gálatas, cap. 4, verss. 21–24, onde se diz que foram tipos das coisas futuras.

Os Adversários alegam isso sem nenhum fundamento. E que espécie de argumento é esse, pergunto? “Paulo, em Gl 4, ensina que esses foram tipos das coisas futuras; logo, ensina que não foram considerados em si mesmos.” Acaso suportaria o Adversário alguém argumentando assim: “Isaque e Jacó foram tipos dos filhos da promessa; logo, não foram considerados em si mesmos, filhos da promessa?”

Se ponderarmos com atenção o que significa odiar um homem ainda no ventre, antes que ele fizesse qualquer bem, veremos facilmente que Esaú aqui não é citado apenas como tipo, mas como exemplo, a quem isso verdadeiramente se aplica, mesmo que não fosse utilizado como protótipo. Pois nem mesmo Malaquias, de onde essas palavras são tomadas, o apresenta como tipo, mas como exemplo.

Por isso, alguns fazem a distinção entre tipos: uns que representam a coisa apenas por sombras, os quais são chamados σκιαί (sombras) ou σκιώδεις (sombrios), e outros que representam a coisa com a verdade da própria realidade, os quais também são chamados προτυπώσεως (protótipos). Tais tipos foram, de fato, no presente caso, Ismael e Isaque, Esaú e Jacó, dos quais se atesta que Deus verdadeiramente odiou os primeiros e verdadeiramente amou os últimos.

Mas deve-nos ser mostrado a razão pela qual um é filho da carne, o outro da promessa, a depender do beneplácito de Deus. Portanto, Paulo ensina isso neste lugar, onde diz: "Ainda não haviam nascido os meninos, e quando nada tinham feito de bom ou de mau, para que o propósito de Deus, segundo a eleição, permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama, foi dito a ela: O maior servirá ao menor." O Adversário deve adaptar essas palavras à doutrina da justificação como ele a propõe, e verá que de modo algum isso poderá ser ajustado a ela.

Pois se ele afirma que Deus decretou escolher para si os homens não quaisquer, mas aqueles que previu que creriam, e que decretou rejeitar aqueles que previu não creriam, nem buscariam a justiça que é pela fé, então, se a situação é essa, as palavras do Apóstolo devem ser invertidas, e se deve dizer: Não depende do que chama, mas daqueles que foram chamados, visto que também Jacó foi amado por Deus pela previsão da fé, e Esaú rejeitado pela incredulidade, por que, então, seria dito no texto, antes de fazerem qualquer coisa boa ou má, ainda não por obras, mas pelo que chama?

O Adversário pensa que essas palavras, "não por obras", devem ser restritas apenas a Esaú, e àqueles cujo tipo ele representa, isto é, aqueles que somente por obras, ou seja, que interpretam como por obras da lei, buscam a salvação. Mas isso é facilmente desmascarado como falso. O Apóstolo diz que, quando ainda não haviam feito nada de bom ou de mau, foi dito a Rebeca: "O maior servirá ao menor." Não deveria o Apóstolo apresentar a razão de por que isso foi dito a Rebeca, antes de qualquer coisa boa ou má ser feita? E ninguém duvidaria de que ele deveria fazer isso. Ele trouxe, na verdade, que o propósito de Deus, que é segundo a eleição, permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama. Quem agora não vê que as palavras "não por obras" se referem a aqueles, quando ainda não haviam feito nada de bom ou de mau, e, consequentemente, essas palavras, "não por obras", devem ser entendidas tanto das boas obras de Jacó quanto das más obras de Esaú, e excluir ambas desse propósito? O Adversário, no entanto, restringe isso apenas a Esaú, ou melhor, àqueles que foram significados por Esaú, nomeadamente, os filhos da carne, que somente por obras, isto é, conforme eles interpretam, pela lei buscam a salvação. Quando, no entanto, entre todos aqueles que não odeiam a verdade, é claro que o Apóstolo fala e ensina que o propósito de Deus, que é segundo a eleição (que necessariamente envolve a reprovação), não depende de obras, sejam boas ou más, dos filhos da promessa ou da carne, mas de Deus, segundo a liberdade de Sua vocação, distinguir entre ambos, sem qualquer consideração pelas suas boas ou más obras.

Em seguida, como as obras da lei, ou a obediência legal, sejam internas ou externas, e o Apóstolo exclui toda a obediência legal desse propósito, isto é, não apenas as obras externas dos hipócritas, mas também a obediência interna do coração dos fiéis, torna-se manifesto que essas obras da lei não podem ser restringidas apenas aos filhos da carne. E excluir todas as obras legais, que são feitas por nós, seja pelos fiéis ou pelos infiéis, é provado:

I. Porque se ele excluísse apenas as obras externas dos hipócritas, os judeus ou quaisquer outros não teriam protestado, nem poderiam acusar Deus de injustiça, quando ouviam frequentemente de seus profetas a condenação desse tipo de obra. Em segundo lugar, no capítulo 4, o Apóstolo exclui claramente da causa da justificação as obras do fiel Abraão e do fiel Davi. Em terceiro lugar, se não forem excluídas todas as nossas obras, tanto as de graça e fé, quanto as que são feitas sem graça e fé, não será excluída a glória, a razão, porque a graça, pela qual somos feitos aptos para as obras de graça e fé, segundo os Adversários, não é irresistível. Portanto, o homem tem algo de que se gloriar por sua boa vontade, por não ter resistido à graça, a qual, sendo aceita, não tem origem na graça, pois a graça não foi resistida.

Mas maior se revela a audácia quando o Adversário interpreta essas palavras "não por obras, mas pelo que chama" por meio da "fé", na qual obedecemos a Deus que chama. Pois esses dois, a saber, Deus chamando, de quem o Apóstolo fala, e nossa fé, pela qual obedecemos a Deus que chama, estão muito distantes entre si. E, de fato, o Adversário sequer tentou introduzir qualquer argumento que mostrasse que estas seriam equivalentes. A falsidade dessa exposição aparece aqui. Primeiramente, não pode ser provado por nenhuma expressão da Escritura que, quando se diz "Deus chamando", se entenda a nossa fé. Como está em 1 Ts 2.12, "para que andásseis de maneira digna do Deus que vos chama para o seu reino" (θεο το καλοντος μς ες τν αυτο βασιλείαν), ou como em Gl 1.6, "Admiro-me de que tão rapidamente tenhais passado para outro evangelho", π το καλέσαντος μς ν χάριτι Χριστο, ou ainda em Gl 5.8, "A persuasão não vem daquele que vos chama", πεισμον οκ κ το καλοντος μς. Nunca o καλν, isto é, Deus chamando, é nossa fé.

Além disso, o Apóstolo disse: “não por obras” — como então seria por fé? Acaso a fé não é uma obra? Aliás, segundo o Adversário, ela justifica precisamente enquanto é uma obra. E de nada lhe servirá a distinção entre obra evangélica e legal. Pois aquelas obras que os Adversários costumam chamar de evangélicas — a saber, esperança, fé e caridade — foram prescritas pela lei. Além disso, essa exposição contradiz diametralmente as Escrituras, que testemunham que a fé segue a eleição como efeito, e não a precede como causa. Em Rm 8.30: “Aos que predestinou, a esses também chamou”, ou seja, concedendo-lhes fé; pois segue: “aos que chamou, a esses também justificou.” Em 1Co 2.7, o Apóstolo diz: “[falamos] a sabedoria de Deus, em mistério, que estava oculta, a qual Deus preordenou antes dos séculos para nossa glória” — ou seja, foi também predestinada a fé, que vem do ouvir do Evangelho (Rm 10) e da vocação eficaz, a qual o Apóstolo também ensina depender da predestinação. Em Rm 8.28, ele diz que somos chamados κατ πρόθεσιν, “segundo o propósito”. Em Ef 1.4: “Escolheu-nos nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele, em amor.” Ora, a fé é parte dessa santidade. Logo, é também efeito da eleição. Mas, de forma claríssima acima de todas, At 13.48: “Creram todos os que haviam sido ordenados para a vida eterna.” A razão por que, ao pregar Paulo, alguns creram e outros não, Lucas atribui à ordenação de Deus, que é anterior à fé. Com efeito, traduzir a expressão grega τεταγμένοι por “dispostos”, como fazem os Adversários — ou por “inclinados” e “bem afetos” — não se sustenta nem pelo vocábulo grego em si, nem pelo uso costumeiro de Lucas. Veja-se At 15.2: ταξαν ναβαίνειν Παλον κα Βαρναβν, “decidiram que Paulo e Barnabé subissem”; ou At 28.23: ταξάμενοι δ ατ μέραν, “tendo-lhe designado um dia”; ou Lc 7.8: π ξουσίαν τασσόμενος, “constituído sob autoridade”. Em todos esses lugares, não se significa disposição, ou afeto, ou inclinação, mas sim constituição e ordenação.

A própria analogia da fé rejeita tal interpretação. Pois ninguém não regenerado, e carente de fé, é bem disposto ou inclinado para a vida eterna — como eram aqueles de quem Lucas fala nesse texto, antes que, pela pregação dos Apóstolos, Deus lhes traspassasse os corações. E certamente ninguém em juízo usaria as palavras de modo tão licencioso a ponto de dizer que alguém é inclinado ou bem disposto para a vida eterna. Pois toda propensão, no negócio da salvação, é para agir, não para fruir. Uma coisa é o desejo; outra, a propensão.

E de fato, os escolásticos mais doutos, movidos pelas palavras de Paulo em Rm 11, afirmam com constância que não só a causa da eleição, mas também da reprovação, é a vontade de Deus somente. Lombardo diz, livro 1, dist. 41: “Assim como não houve méritos para a predestinação, assim também para a reprovação. Jacó não foi eleito, nem Esaú reprovado, por méritos que então tivessem, nem por méritos futuros.” Tomás [de Aquino] manteve essa doutrina recebida do Mestre, e a defendeu cuidadosamente. Ele diz, na Suma Teológica, parte I, questão 23, art. 3: “Assim como a predestinação inclui a vontade de conceder graça e glória, assim a reprovação inclui a vontade de permitir a queda na culpa, e de infligir a pena da condenação por causa da culpa.” Domingo Bañez explica assim a sentença de Tomás, na mesma parte I, questão 23, art. 5: “A sentença de Tomás é que, falando simplesmente, não há causa ou razão da reprovação do lado do reprovado, assim como não há do lado do predestinado.” E acrescenta depois: “Por isso, a reprovação não pressupõe presciência do pecado, segundo Tomás, porque o primeiro efeito da reprovação é a permissão do pecado; portanto, a permissão do pecado é posterior à reprovação na ordem das causas.” Pedro de Ailly, na questão 12, art. 2: “A quem quer que Deus reprovou, reprovou sem qualquer causa nele mesmo.” Cornélio de Zierikzee, que participou do Concílio de Trento como bispo, em seu comentário ao capítulo 9 da carta aos Romanos, diz: “Uma coisa é dizer: sem deméritos, Deus permite que alguém pereça; outra coisa é dizer: Deus permite que alguém pereça sem deméritos. A primeira é verdadeira, a segunda é falsa.

Mas também deve ser aqui bem considerado que estas palavras “não por obras” de modo algum podem ser desviadas para o tema da justificação. Pois a justificação, sobretudo a passiva, que é pela fé, segue, não precede, a vocação. Com efeito, acima, no capítulo 8, versículo 30, o Apóstolo disse: “Aos que chamou, a esses também justificou.” Além disso, seria uma maneira de falar extremamente dura opor a vocação às obras, quando se trata da justificação. Pois o Apóstolo, todas as vezes que discute a justificação, costuma opor a fé às obras, jamais opõe a vocação às obras.

Ademais — o que é o ponto principal da questão — isso não pode ser feito, se a vocação for comum (segundo a opinião dos Adversários). Com efeito, aquilo que é comum não se opõe a coisa alguma. Assim, se a vocação é comum tanto ao que obra quanto ao que não obra, em vão se diria: “não por obras, mas por aquele que chama.”

Já mostramos, a partir do capítulo 9, versículo 11, que o Apóstolo de modo algum trata aqui da justificação, e agora isso mesmo se torna evidente a partir da objeção que ele apresenta, e da razão que o Apóstolo havia dado para mostrar por que Deus quis que tais exemplos ilustres existissem e fossem conhecidos por todos. Ora, essa razão é a seguinte: Se Deus, sem consideração alguma pelas obras, amou a um e odiou a outro, então Ele é injusto. Mas a primeira parte é verdadeira. Logo, também a segunda. Ou, para formular de outro modo: Mas Deus não é injusto. Logo, não foi sem alguma consideração pelas obras que Ele amou a um e odiou o outro.

O Adversário entende estas coisas como se Paulo estivesse perguntando se haveria injustiça em Deus, por excluir do pacto aqueles que querem ser justificados pela Lei que Ele mesmo instituiu, e por querer justificar aqueles que creem em Cristo.

Respondo: não há aqui nem mesmo aparência, nem razão alguma para tal questão. Pois que espécie de injustiça seria essa em Deus? Ou quem seria tão insensato a ponto de querer discutir com Deus o fato de Ele querer justificar por meio da fé em Cristo e absolver os culpados da transgressão da Lei?

De fato, quem quer que se admire ou questione por que Deus quis que os pecadores fossem salvos pela fé em Cristo, não está buscando a justiça em Deus, mas investigando os arcanos da sabedoria divina.

Se este fosse o sentido do Apóstolo, como o Adversário lhe atribui, teria sido fácil responder: que Deus não é injusto por salvar os que creem, e por oferecer uma justiça melhor àqueles que não podem ser justificados pela Lei da qual são transgressores; ou por substituir ao pacto da Lei — que foi invalidado pelo pecado — outro pacto, por meio do qual o homem é salvo.

Portanto, outro é o propósito de Paulo neste lugar: ele nega a consequência daquele argumento quando diz: “De modo nenhum!” (Absit). Ora, a razão dessa negação consiste em dois membros, correspondentes aos dois membros da objeção, pela qual a acusação de injustiça havia sido lançada contra Deus pelo oponente. Com efeito, o segundo membro, ao qual o Apóstolo primeiro responde, é: “Se Deus amou Jacó antes que tivesse feito qualquer bem, então Ele é injusto.” A força da consequência baseia-se em um raciocínio comum, que parece ditar que é injusto amar a um mais que a outro, se ambos são em tudo iguais. O Apóstolo prova a falsidade dessa consequência com a citação da Escritura, no versículo 15: “Pois a Moisés Ele diz: Terei misericórdia de quem Eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem Eu me compadecer.” Aqui, não deve ser buscada na palavra “misericórdia” a destruição da consequência, como fazem os Adversários, mas ela se baseia somente na autoridade da Sagrada Escritura, do seguinte modo: Aquilo que a Sagrada Escritura atribui a Deus não pode ser injusto. Ora, a Sagrada Escritura atribui isto a Deus, a saber: que Lhe é lícito ter misericórdia de quem quiser. Pois diz a Moisés: “Terei misericórdia”, etc. E assim, de forma mais sólida e eficaz, o Apóstolo destrói a consequência do silogismo anterior — ao menos quanto ao segundo membro — pois Paulo escreve estas coisas não a infiéis, mas aos Romanos convertidos à fé de Cristo, os quais criam nas Sagradas Escrituras, mesmo contra o juízo da carne, sem qualquer hesitação.

Contudo, os Adversários recobrem seu próprio comentário com verniz e afirmam, além disso, que aqui o Apóstolo trata dos pecadores — o que seria evidente a partir do versículo 16, onde o Apóstolo diz: “Assim, pois, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus que usa de misericórdia.” Donde parece seguir-se, segundo eles, que Deus não é justo, porque o Seu propósito segundo a eleição — ao rejeitar os filhos da carne (isto é, os infiéis) e ao considerar como filhos da promessa (isto é, os fiéis) — tem por única causa a misericórdia e a compaixão de Deus. Pois, dizem eles, quando a misericórdia de Deus é posta em oposição à vontade e à corrida do homem, é certo que se entende aquele esforço e curso pelo qual o homem, sem a misericórdia de Deus, espera alcançar a justiça e a salvação. E reciprocamente, quando a misericórdia é oposta à vontade e ao esforço, compreende-se que aquele meio ordenado para se alcançar justiça e vida é justamente a misericórdia — e o que é mais próximo da misericórdia é a fé em Cristo, o Mediador.

Respondo. Antes de tudo, o doutíssimo Twillus não admite que a eleição proceda da misericórdia, e isso por argumentos gravíssimos e, além disso, veríssimos, sendo por eles movido. Pois, diz ele: Se atentarmos à forma de falar da Escritura, perceberemos que tanto a graça quanto a glória procedem da misericórdia divina, porém nunca a predestinação ou eleição. Esta, com efeito, é dita ocorrer segundo o propósito (Ef 1.11), ou segundo a presciência (1Pe 1.2), ou a partir do afeto benevolente da vontade (Ef 1.5). Acrescento ainda — diz ele — que os gentios alcançaram misericórdia por causa da incredulidade dos judeus (Rm 11.32). Ora, se a eleição fosse procedente da misericórdia, há muito teriam alcançado misericórdia, desde que foram eleitos, isto é, desde a eternidade. Também se diz que Deus encerrou todos debaixo da desobediência, para usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32). Logo, a misericórdia divina segue a desobediência do homem. Mas quem em sã consciência atribuiria tal previsão da desobediência a essas palavras? Por fim, todos são chamados de “não alcançaram misericórdia” antes da vocação (1Pe 2.10). Portanto, a vocação é o primeiro ato da misericórdia divina exercida sobre os miseráveis, e não a predestinação ou eleição.

Contudo, objeta-se com base em Rm 9.16: “Logo, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus, que usa de misericórdia.” Respondo: 1. O termo “eleição” é aqui suprido conforme a interpretação de Beza. 2. Piscator interpreta esse versículo do Apóstolo não a respeito da eleição, mas da salvação. Outra objeção é feita: a Escritura chama os eleitos de vasos de misericórdia (Rm 9.23). Ora, não há lugar para a misericórdia senão para com os miseráveis. Respondo: Os eleitos são chamados vasos de misericórdia, não porque foram eleitos por causa da misericórdia, mas porque foram eleitos não apenas para a salvação, mas também para a misericórdia que Deus lhes mostraria no perdão dos pecados, na imputação da justiça e na concessão da salvação eterna.

Em segundo lugar, respondemos que os adversários erram. Pois, ao fim, sua explicação tende a isto: que nas palavras “não é de quem quer, nem de quem corre”, se deve subentender aqueles que querem ser justificados pela lei. Ora, isso não é provado em nenhuma parte da Escritura; e o texto ensina claramente que se exclui todo e qualquer esforço humano. Pois, como essas palavras remetem, com o assentimento dos próprios adversários, àquelas anteriores: “não por obras, mas por aquele que chama” — pelas quais o Apóstolo havia excluído dessa proposição não apenas as más obras de Esaú, mas também as boas de Jacó —, vê-se claramente que aqui se opõe não só a corrida de Esaú, sem misericórdia de Deus, mas também a de Jacó, unida à misericórdia, ao Deus que usa de misericórdia como causa desta proposição. E acaso o crente não é aquele que quer? Acaso não é aquele que corre?

Quanto às palavras dos adversários que mencionamos acima, as quais colocam em paralelo a misericórdia etc., dizemos que os adversários acumulam absurdos sobre absurdos. Pois anteriormente explicavam as palavras “não por obras, mas por aquele que chama (Deus)” como se significassem: por Deus chamando através da fé de um homem obediente. Assim também aqui interpretam: “o propósito de Deus não é de quem quer nem de quem corre, mas daquele que usa de misericórdia”, como se significasse: do homem crente pela misericórdia. Admitimos que tal meio para alcançar a vida — a saber, a fé em Cristo — foi ordenado por esse propósito e está o mais próximo da misericórdia; mas será que, por isso, estas palavras “mas de Deus, que usa de misericórdia” devem ser explicadas como “do homem crente pela misericórdia de Deus”? Isto é: será que, por isso, o Apóstolo, em lugar da misericórdia de Deus, fundamenta este propósito sobre a fé do homem? Isso seria um sofisma grosseiríssimo. Pois Paulo trata aqui — como os próprios adversários reconhecem — do propósito da eleição; e diz que sua causa não é o esforço ou a vontade do homem, mas a misericórdia de Deus. Isto é: segundo os adversários, a fé do homem. A fé, então, seria a causa do propósito da eleição? Isso contraria o que a Escritura tantas vezes testifica. E se, todavia, fosse assim, o Apóstolo poderia ter resolvido a objeção com uma única palavra, dizendo: “Não há injustiça em Deus, pois escolhe um e rejeita outro com base na causa de que um crê em Cristo e o outro não.”

E assim se tratou do segundo membro da objeção, a saber: se Deus amou a Jacó antes que ele tivesse feito qualquer bem, então Deus é injusto. Agora é necessário tratar do primeiro, que é este: se Esaú foi destinado ao ódio antes que nascesse e antes que tivesse feito qualquer mal, então Deus é injusto. A isso, no versículo 17, ele responde com estas palavras: Diz, com efeito, a Escritura a Faraó, etc. Um argumento solidíssimo, qualquer que seja a opinião dos homens: sabemos que a Escritura nada atribui de injusto a Deus. Ora, a Escritura atribui isto a Deus, pois diz a Faraó: para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder. Logo, isto não é injusto. E assim o Apóstolo responde ao primeiro ponto. Pois, com relação a ambos os membros, ele conclui com uma sentença geral no versículo 18: Logo, de quem quer tem misericórdia, e a quem quer, endurece.

Do que mais uma vez se torna evidente que o Apóstolo neste capítulo não trata da justificação. Pois estas palavras de modo algum podem ser aplicadas à justificação, já que o endurecimento se opõe ao amolecimento do coração, e não à condenação. Tampouco é crível que o Apóstolo tenha recorrido à vontade de Deus quando o assunto era dar razão por que uns, e não outros, são justificados — pois a causa estava clara: este creu em Deus, aquele se arrependeu do pecado; aquele outro não creu, aquele não se arrependeu; causa justa e suficiente, até mesmo ao juízo da razão humana — a menos que alguém esteja fora de si. Mas, embora Deus não endureça senão os merecedores, contudo não parece que se possa com razão indignar-se contra os endurecidos, uma vez que eles foram destinados a isso pela vontade eterna de Deus, ou seja, por seu decreto, ao qual não se pode resistir, e isso não por causa de obras que fariam, mas por seu mero beneplácito.

Os adversários pensam que o oponente, que aqui é introduzido pelo Apóstolo, deseja saber nada além do seguinte: se aqueles que são endurecidos mereceram o endurecimento e, portanto, se Deus justamente se irrita contra eles. Se assim fosse, então o Apóstolo não teria repreendido com severidade uma ousada resposta contra Deus — que, nesse caso, não haveria —, mas sim uma ignorância torpe e mais que bruta, uma vez que nada é mais comum nas Escrituras, nada mais evidente na natureza, do que que Deus pune apenas os que merecem. Mas agora o Apóstolo, vendo que o oponente não duvida da equidade de Deus em endurecer os ímpios, mas contesta, na verdade, a eterna vontade de Deus — pela qual, não com base em obras, mas segundo seu próprio beneplácito, ele decretou exaltar uns graciosamente à glória, e outros ao opróbrio —, com razão o refreia com estas palavras: Antes, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? E acrescenta uma razão gravíssima: Acaso dirá o vaso ao oleiro: por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra, e outro para desonra?

Com que fim, pergunto, se apresenta aqui resposta tão elevada e sublime, afirmando o supremo poder de Deus ξουσίαν sobre as criaturas, se aquele que é introduzido como perguntante estivesse disposto a aquiescer, uma vez que entendesse que os endurecidos mereceram o endurecimento? Pois isso ele poderia ter provado facilmente sem esta resposta profunda — aliás, já o havia provado amplamente no capítulo 3 desta epístola.

Mas vejamos as palavras seguintes, que mostram clarissimamente que não se trata aqui, em Rm 9, de justificação, mas de predestinação. As palavras são: Acaso dirá o vaso ao oleiro: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra, e outro para desonra? Daí se conclui clarissimamente que o Apóstolo ensina que Deus tem o poder de, a partir da mesma massa, fazer um vaso para honra, outro para desonra. Ora, pelo nome de “massa” não se pode entender o gênero humano corrompido, como querem alguns. Pois, se assim fosse, o Apóstolo não teria dito que Deus faz, a partir dessa massa, vasos de ira, mas que os deixa naquela mísera massa como vasos que já são de ira; e não teria sido necessário ao Apóstolo esforçar-se por defender a justiça de Deus na perdição dos réprobos.

Portanto, Deus é ali comparado a um oleiro, ao qual, se se concede o direito de, segundo seu arbítrio, fazer tanto vasos para usos honrosos como para usos vis, sem que o barro por isso pareça sofrer injustiça — quanto mais Deus teve o direito de dispor daquele barro do qual, em um só homem, criou o gênero humano, para que dele tirasse a uns, nos quais exerceria sua justa ira, e a outros, que abençoaria por sua excelsa bondade?

Mas como os criou? Certamente em Adão, à cuja criação o Apóstolo, sem dúvida, alude ao mencionar o oleiro e o barro. E como, então, em Adão? Certamente não sem a intervenção da queda voluntária. Pois, se Adão não tivesse caído por livre vontade — ainda que não sem a ordenação de Deus, mas sem qualquer culpa de Deus —, então não haveria lugar para a misericórdia nem para a severidade, e, por conseguinte, o desígnio de Deus teria sido frustrado.

Em Gl 3.22, o Apóstolo diz que Deus encerrou todos debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que creem, por meio da fé em Jesus Cristo: não é evidente que ele remonta até a própria origem da culpa, isto é, até a queda de Adão, para que aí se inicie a distinção entre os vasos?

Conclui-se, portanto, com toda clareza, que Paulo ensina aqui que Deus destinou alguns, não apenas à destruição, mas também ao pecado. E o que isso tem a ver com a justificação? Talvez alguém ache duro o que dizemos — que Deus destina ao pecado. Resposta: Não deve parecer duro aquilo que a Escritura diz. Pois como poderia Ele destinar à destruição, se não destinasse também àquilo por causa do qual a destruição justamente se impõe?

De fato, a Escritura ensina que alguns são destinados aos próprios pecados, conforme 1Pe 2.8: os que tropeçam na pedra de tropeço, para o que também foram postos; e na Epístola de Judas: Certos homens se introduziram dissimuladamente, os quais já antes estavam destinados a esta condenação, ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus, e negam o único Soberano e Senhor nosso, Jesus Cristo. Pode-se aqui objetar que a Escritura em parte alguma ensina que Adão foi destinado ao mal da culpa, e que, portanto, essa doutrina não deve ser tolerada. Respondemos: quantas passagens das Escrituras afirmam que em Deus não há temeridade, que Deus é onipotente, que não apenas criou todas as coisas, mas também as governa — especialmente os homens —, e que jamais muda? Tantas vezes, pois, é dito que Adão caiu, mas também, não só com presciência, mas com ordenação de Deus, ele caiu. Pois, se antes da criação do homem Deus não deliberou sobre o fim para o qual o criaria, então agiu temerária e imprudentemente. Mas, se decretou algo diferente do que aconteceu, ou Ele não foi onipotente — pois seus desígnios foram frustrados por Satanás —, ou foi inconstante, porque mudou de plano. E se alguém quiser objetar que foi adicionada ao plano de Deus a condição de que Adão perseverasse na integridade, respondo: ainda que eu não negue isso, pergunto, contudo, se o fundamento do próprio plano divino dependia de Adão? Se o adversário ousar afirmar isso, então o julgamento estará — como bem disse Agostinho — não nas mãos do oleiro, mas nas do barro. E que Deus será esse, que faz depender o fundamento de seus desígnios da vontade da criatura?

E se isso ainda não bastasse, a Escritura clama que nem mesmo os pardais caem em terra sem a vontade do Pai celestial, e que todos os cabelos de nossa cabeça estão contados — não testifica isso abertamente que sem a vontade do Pai aquele primeiro pai não caiu? A não ser que, porventura, os pardais ou os vossos cabelos sejam de mais valor para Ele do que todo o gênero humano. E, se nem mesmo os porcos Satanás pôde atacar sem permissão do Senhor, dirá alguém que, sem que Deus soubesse, quisesse ou se importasse, Satanás subverteu todo o gênero humano em um só homem?

Eis que, primeiro, o Apóstolo respondeu a essa objeção: Pois de que se queixa ainda? Quem jamais resistiu à sua vontade? (Rm 9.19). Em segundo lugar, agora nos versículos 22 e 23, o Apóstolo responde remetendo-nos às coisas que Deus realiza no tempo. Ele propõe três coisas: Primeiro, que Deus suporta com muita paciência os vasos preparados para a perdição. Deus tolera por muito tempo os ímpios, os cumula de vários benefícios, e durante toda a sua vida se mostra a eles de tal modo que são forçados a confessar que Deus não deixa de agir com suma justiça para com eles. Segundo, Deus condena os ímpios para manifestar sua ira e para mostrar o quanto detesta os pecados, e para tornar conhecida sua potência. Terceiro, para que também fique evidente quão imensa é sua bondade e incompreensível sua misericórdia para com os eleitos. Nenhuma dessas coisas que se realizam no tempo — e que estão expostas a nossos olhos, podemos nós reprovar; ao contrário, somos obrigados a proclamá-las. Que impiedade, pois, é esta, de julgar mal as coisas ocultas de Deus?

Os adversários dizem: com estas palavras — suportou com muita longanimidade os vasos preparados para a perdição — ensina-se claramente que essa voz passiva κατηρτισμένα (isto é, “preparados”) se refere não a uma preparação por parte de Deus, mas feita pelo diabo e pela vontade própria [dos ímpios], e, por isso, destinados com justiça ao castigo eterno.

Resposta: 1. Se por essa razão Deus deve ser excluído da ação expressa por καταρτίζω, por que não o excluiríamos também da causa de nossa salvação? Pois também somos designados por vozes passivas: γαπημένοι, λεηθέντες, δικαιωθέντες. Portanto, o fundamento dessa conclusão é vão. Depois, o próprio verbo καταρτίζειν, aplicado por analogia ao oleiro, refere-se aos vasos tanto para honra quanto para desonra, conforme o fim proposto pelo modelador. Quem não vê que isso não se refere às causas secundárias — subordinadas à execução do decreto, e que pertencem aos próprios condenados, e não a Deus —, mas sim ao decreto do próprio Deus artífice, o qual precede todas essas causas em ordem, com uma clara alusão à criação do gênero humano em Adão?

E que mais? Não é o próprio Apóstolo que, no versículo anterior, ao comparar o artífice do gênero humano ao oleiro, usa o verbo ativo ποισαι (“fazer”), tanto com relação aos vasos de desonra quanto aos vasos de honra? Seja, enfim, para nós o melhor intérprete deste lugar o próprio Salomão, que usa o verbo criar, e menciona o dia do mal, pelo qual nada mais se entende senão aquela πώλεια (perdição), quando diz: O Senhor fez todas as coisas para si mesmo, até o ímpio para o dia do mal (Pv 16.4).

Em segundo lugar, eles (os adversários) ensinam, por estas palavras, Deus suportou com muita paciência os vasos da ira, que o Apóstolo indicaria um modo de endurecimento por meio da paciência e mansidão, não por meio de uma ação onipotente da vontade, à qual não se pode resistir. Mas que lógica ensinou os adversários a raciocinar assim: "O Apóstolo indica que os ímpios são endurecidos pela paciência de Deus, portanto, ele nega que sejam endurecidos por uma ação irresistível da sua vontade"?

Agostinho, justamente com base neste lugar, demonstra que Deus endurece os ímpios não apenas com paciência, mas também com potência. Eis o raciocínio lógico contrário: “O que é isso que dizes”, afirma ele no Livro 3 contra Juliano, capítulo 5: “Quando se diz que foram entregues aos seus desejos, entende-se que o foram por paciência divina, e não compelidos ao pecado por sua potência?” Como se o mesmo Apóstolo não tivesse justamente colocado ambas as coisas, paciência e potência, no mesmo lugar, quando diz: Mas se Deus, querendo mostrar a sua ira e fazer conhecida a sua potência, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição (Rm 9.22). Mas o que dizes sobre o que está escrito: E se o profeta for enganado e falar, eu, o Senhor, enganei o tal profeta (Ez 14.9)? Foi por paciência ou por potência? Qualquer uma das duas que escolhas — ou mesmo ambas que admitas —, é necessário reconhecer: as palavras falsas do profeta constituem pecado, e são também castigo pelo pecado. O mesmo Agostinho, no mesmo lugar, diz: “Quem seria tão insensato, que ao ouvir o que se canta no Salmo — Não me entregues, Senhor, ao meu desejo (Sl 140.8) — dissesse que o homem rogava para que Deus não fosse paciente com ele? Se Deus não entrega senão quando a sua bondade paciente tolera que se cometam males, que sentido tem aquilo que todos os dias dizemos: não nos deixes cair em tentação, senão que não sejamos entregues às nossas concupiscências? Pois cada um é tentado, arrastado e seduzido pela sua própria cobiça (Tg 1.14). Acaso pedimos a Deus que não exerça paciência para conosco com sua bondade? Não estamos invocando sua misericórdia, mas provocando sua ira? Quem em seu juízo perfeito — ou mesmo insano — diria tal coisa?”

Portanto, Deus entrega aos afetos de ignomínia, para que os mesmos pecados sejam simultaneamente pecados e castigos dos pecados passados, bem como méritos para os castigos futuros. Assim como entregou Acabe ao engano dos falsos profetas; assim como entregou Roboão a um mau conselho. Deus faz isso de modos admiráveis e inefáveis, Ele que sabe operar julgamentos justos não apenas nos corpos dos homens, mas também em seus corações; que não produz vontades más, mas delas se serve como quer, ainda que nunca deseje algo injustamente.

A DOUTRINA DA ELEIÇÃO POR JOHANNES MACCOVIUS


LOCI COMMUNES, CAP. XXVI, De Electione Dei æterna.

A eleição é o decreto de Deus concernente a certos indivíduos, considerados por Ele como possíveis de serem criados, permitidos a cair, e libertos dessa queda. A causa da eleição é o beneplácito de Deus.

Com efeito, a eleição, seja em relação ao fim, aos meios, ou a ambos conjuntamente, procede do beneplácito divino. Isto é evidente em Lc 12.32, donde se conclui que Deus age no tempo conforme decretou desde a eternidade. Ora, desde a eternidade aprouve-lhe dar o Reino. Que tal ocorre também quanto aos meios é manifesto em Mt 11.25–26 e Lc 10.21, onde Cristo afirma que tal foi o agrado de Deus: revelar a certos a via da salvação. Que ambos (meios e fim) procedem do beneplácito divino também é claramente exposto em Rm 9, onde se declara: “Não depende do que quer, nem do que corre”, etc., ou seja, não depende de que alguém se dirija por si mesmo ao fim ou aos meios, mas de que Deus os conceda àquele a quem quiser. Objeção Arminiana: Se fomos eleitos por beneplácito, então isso supõe algum movimento em Deus causado por alguma qualidade nossa. Pois, se lhe aprouve, é porque lhe fomos agradáveis; e ser agradável (beneplacere) é o mesmo que ser grato. Assim, fomos eleitos por sermos agradáveis. Resposta: Ao dizermos que fomos eleitos por beneplácito, não nos referimos ao objeto (isto é, ao eleito), mas ao propósito de Deus. A forma do decreto é esta: Quero criar certos indivíduos, possíveis de serem feitos por mim; permiti-los a cair; e desses mesmos libertá-los da queda e salvá-los por causa de Cristo.

Essa eleição de Deus é eterna.

Prova: Ef 1.4. Mas se objeta com base em 2Ts 2.13: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porquanto Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, mediante a santificação do Espírito e fé na verdade.” Aqui, dizem, “desde o princípioπ ρχς não pode significar desde a eternidade, pois o que é eterno é sem ρχή (princípio). Logo, desde o princípio significaria pouco depois dos inícios, do mesmo modo que expressões semelhantes são entendidas em Jo 8.44, onde se afirmar que “o diabo foi homicida desde o princípio”, e em 1Jo 3.8, “pecou desde o princípio”, isto é, desde pouco depois dos primórdios do mundo, quando foi corrompido e se tornou réu de hediondo homicídio. De fato, um paralelo dessa passagem em 2Ts se encontra em Ap 17.8, onde se diz que os eleitos estão inscritos no Livro da Vida “desde a fundação do mundo”. Resposta: Trata-se de um modo de falar frequente nas Escrituras, segundo o qual algo se diz “acontecer” quando se manifesta ou é declarado. Veja-se Pv 17.17. É desse modo que o Espírito Santo fala nesses textos, ao dizer que os eleitos são escolhidos π ρχς e inscritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo, referindo-se não à eternidade essencial de Deus, mas a uma certa declaração externa da eleição feita ab aeterno.

Ele alude, nesses lugares, àquela célebre promessa feita a Adão após a queda: de que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3.15). Aí se encontra uma notável declaração do juízo divino, que estabelece uma distinção entre eleitos e réprobos: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a semente dela.

A eleição não foi feita por causa de Cristo, como se Ele fosse sua causa meritória.

Razão: I. Cristo, como Mediador, veio e foi enviado ao mundo por nossa causa. Logo, foi porque Deus primeiro quis conceder-nos a salvação que ordenou Cristo para nascer como homem. Assim, Cristo, enquanto meio para a execução da eleição, é posterior à eleição para a salvação; por conseguinte, não pode ter sido nela o fundamento. Pois, primeiro se considera o fim, e só depois os meios, o que, embora valha sobretudo no plano humano, também é verdadeiro analogicamente quanto a Deus. Essa prioridade, no entanto, não é de tempo, mas de natureza, ou seja, de ordem no entendimento dos decretos divinos. Por essa razão, o apóstolo Paulo chama Cristo de λύτρον λαστήριον, cf. Cl 1 e Rm 3, mas nunca diz que Ele seja a causa pela qual estes foram eleitos e aqueles não. II. A mediação de Cristo e a redenção por Ele operada são atos pelos quais se satisfaz a justiça de Deus, o que, de fato, não é o significado da palavra "eleição". Pois uma coisa é ser Mediador; outra, ser a causa da eleição ou da prelação (isto é, da escolha de um em detrimento de outro) no conselho secreto de Deus. Segue-se, então, que Cristo é sim a causa meritória da salvação, mas não da eleição. O que equivale a dizer: Cristo é o fundamento e a causa da execução do decreto de eleição, mas não sua causa propriamente dita. III. Não é coisa leve o que Cristo afirma em Jo 15.13: "Ninguém tem maior amor do que este: dar alguém a própria vida por seus amigos." E no capítulo 10, versículo 11, Ele mesmo se chama o Bom Pastor, porque dá a vida por suas ovelhas. Ora, se Cristo morreu por amigos e ovelhas, então é necessário que, ao morrer por eles, já os considerasse como tais, ainda que muitos deles não tivessem ainda sido chamados. O próprio Cristo atesta isso, pois em Jo 10.16, Ele chama de suas ovelhas até mesmo àquelas que ainda não haviam se convertido. Logo, se Cristo, ao morrer por nós, nos considerava como amigos e ovelhas, é evidente que antes da morte de Cristo já havia sido feita a distinção entre amigos e inimigos, entre ovelhas e bodes. Portanto, o decreto da eleição precede, em ordem, à morte de Cristo. O dogma dos adversários deve, assim, ser rejeitado como subversivo ao Evangelho, pois sustentam que, quando Cristo morreu, ainda não havia eleição alguma feita. Ora, aquele que morreu pelas ovelhas morreu pelos eleitos, e não por aqueles que só seriam eleitos depois que Ele tivesse morrido. Disso se conclui que, pelos “amigos” e “ovelhas” por quem Cristo morreu, não se entendem apenas aqueles que já amam a Deus e seguem a Cristo, mas todos aqueles a quem Deus ama, e cuja salvação Ele decretou, por quem Cristo morreu quando ainda não amavam a Deus e lhe eram inimigos. É por isso que são chamados “inimigos” em Rm 5.10, porque não amavam a Deus; mas, mesmo assim, já eram sumamente amados por Deus, e destinados à salvação em Cristo. Com efeito, sob diferentes aspectos, eram ao mesmo tempo amigos e inimigos, ovelhas e bodes: amigos, porque Deus os amava; inimigos, porque eles ainda não amavam a Deus. Portanto, já estavam na Igreja, ainda que não de maneira terminativa, mas objetiva. E a própria razão natural demonstra isso: assim como a cura do enfermo sempre precede, na intenção, à aplicação do remédio pelo médico, assim também é necessário que, na mente de Deus, a ideia de salvar certos homens seja anterior (não no tempo, mas na ordem) à de enviar o Salvador. Aqui, porém, os adversários apresentam muitas objeções:

I. Objeção: Diz-se expressamente em Ef 1.4 que fomos eleitos em Cristo. Resposta: Mas a gramática mostra que o Espírito Santo não diz simplesmente que fomos eleitos “em Cristo”, mas que fomos eleitos para ser. Com efeito, a quem se refere o infinitivo εναι, senão ao verbo precedente ξελέξατο? Isso é inegável. Assim, o sentido dessas palavras é: Elegeu-nos para que fôssemos santos, etc., em Cristo. Além disso, as palavras Elegeu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para sermos santos são razão explicativa das palavras anteriores: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda bênção espiritual em Cristo Jesus — o que mostra que a partícula “como” indica o sentido destas expressões conexas: Ele nos abençoou com toda bênção espiritual em Cristo Jesus, como nos elegeu para esse fim — a saber, para que nos fossem conferidas essas bênçãos espirituais, que consistem precisamente em sermos santos e irrepreensíveis diante Dele. Logo, este texto não favorece, mas prejudica a opinião dos adversários. Pois o que ele afirma é que Cristo é a causa meritória de todas as bênçãos espirituais, e que fomos eleitos a fim de que tais bênçãos nos fossem concedidas em Cristo. Não fomos eleitos porque já estávamos em Cristo, mas para sermos feitos n’Ele. Fica claro, portanto, que fomos eleitos, segundo a ordem da natureza, antes de estarmos em Cristo, pois fomos eleitos para que em Cristo fôssemos abençoados.

II. Objeção: Rm 8 diz que os que Deus pré-conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Resposta: Daí concluem que Cristo já era considerado predestinado, pois se diz claramente que fomos predestinados a ser conformes à Sua imagem; ora, dizem, a imagem já existia, se a ela devíamos ser conformados. Portanto, Cristo já era predestinado, segundo a ordem da natureza, e, assim, seria a causa da predestinação. Resposta: De fato, fomos predestinados a ser conformes à imagem do Filho de Deus. Mas isso não implica que Cristo tenha sido predestinado primeiramente como causa da nossa predestinação, mas sim que Ele é o primeiro entre os meios pelos quais nossa salvação haveria de se cumprir. Ele é o primeiro elemento da cadeia dos meios, do qual os demais dependem, cf. Hb 10.

III. Objeção: Se Deus primeiro quis a nossa salvação, e só depois, por causa dessa vontade, determinou que Cristo fosse nosso Mediador, então Deus quis conceder-nos salvação fora de Cristo, o que é absurdo. Pois, se a quis fora de Cristo, também poderia concedê-la fora d’Ele. Resposta: A proposição “Deus quis conceder-nos a salvação fora de Cristo” admite dois sentidos: (I) Um sentido verdadeiro: que Deus antes de designar Cristo (uso aqui o termo “antes” não para indicar tempo, mas ordem natural) designou a salvação. Nesse sentido, a proposição é verdadeira, pois Cristo foi ordenado por causa da salvação, e não a salvação por causa de Cristo; (II) Um sentido falso: que Deus nos quis conceder aquela salvação, para a qual ordenou Cristo como causa meritória, fora de Cristo, o que de fato não ensinamos, sendo tal proposição inadmissível. Portanto, não é absurdo afirmar que Deus quis conceder salvação a alguns fora de Cristo, quanto ao seu desígnio intencional. Pois o decreto quanto ao fim é anterior ao decreto quanto aos meios (entenda-se aqui uma anterioridade de natureza e de ordem, não de tempo). Com efeito, os meios existem por causa do fim, e não o fim por causa dos meios. É isso que claramente atesta a Escritura, que afirma que Cristo veio ao mundo por causa da nossa salvação — 1Tm 1.15; Mt 18.11. Mas não se conclui disso que, porque Deus desejou a salvação antes de Cristo na intenção, Ele também a desejou fora de Cristo na execução. Pois nunca decretou concedê-la senão em Cristo, como atestam frequentemente as Sagradas Letras. Quanto à objeção adicional: “Se pôde querer a salvação fora de Cristo, também pôde concedê-la fora de Cristo”, isso é falso. Pois todo fim é primeiro intencionado, e é intencionado separadamente dos meios, porque os meios são determinados por causa do fim. Mas acaso, porque o fim é primeiro e considerado separadamente dos meios, segue-se que ele possa também ser realizado sem os meios? Por esse raciocínio, nenhum meio seria necessário, mas todos arbitrários. Tragamos exemplos concretos: o médico primeiro quer a cura, não o remédio; portanto, ele pode querer ou mesmo conseguir curar sem o remédio? Ou alguém pretende construir uma casa antes mesmo de pensar em madeira, pedra, carpinteiro e pedreiro — porventura poderá ele edificá-la sem matéria nem operários?

IV. Objeção: Ef 1.6 afirma: “Fez-nos agradáveis a si no Amado.” Daí deduzem: “Se somos agradáveis n’Ele, então Deus não poderia nos amar fora de Cristo; mais ainda, não poderia nos amar senão como fiéis, já que não estamos em Cristo senão pela fé.Resposta: Ser amado e ser agradável são coisas distintas. Deus ama até mesmo aqueles que ainda não fez agradáveis a Si. Pois amar significa desejar ou realizar o bem para alguém; já ser agradável significa ser aceito e aprovado. Ora, Deus pode querer e fazer-nos o bem antes de nós lhe sermos agradáveis. Pois só podemos ser agradáveis a Deus se formos justificados e regenerados, já que “o ímpio e morto no pecado não pode agradar a Deus”. Que Ele quis fazer-nos o bem antes de sermos assim, é evidente — e nem mesmo os adversários o negam. Pois afirmam que Deus seriamente deseja, quer e aspira à salvação de todos os pecadores. Logo, Ele quer, deseja e aspira que os inimigos se tornem amigos, que os não-regenerados sejam regenerados, e que os ímpios sejam justificados. Portanto, Ele quer o bem àqueles que ainda não lhe são agradáveis, o que mostra que é possível desejar o bem a quem ainda não agrada. Mais ainda: não apenas deseja o bem a alguns, mas também faz com que passem a ser agradáveis, os que antes não o eram. A Escritura mostra isso claramente, explicando como Ele nos torna agradáveis a Si em Cristo. Acerca de como somos por nós mesmos, fora da justificação e da regeneração, ela declara: somos ímpios, inimigos de Deus, filhos da ira, e outros termos semelhantes. Mas tais males, o Senhor os remove de nós em Cristo. Ele nos reconcilia consigo em Cristo Jesus — 2Co 5.19: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens os seus pecados.” Aqui se ensina como Ele fez, de inimigos, amigos Seus. Que Ele nos regenera, é claro em Ez 36: “Dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um novo espírito; tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. Porei o meu Espírito dentro de vós...” E também em Ef 2.10: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” Portanto, Deus deseja e confere bens a nós antes que sejamos agradáveis a Ele; mais ainda, ao nos conceder esses bens em Cristo Jesus, Ele nos torna agradáveis a Si.

V. Objeção: Rm 8.29, “Predestinou-nos para sermos conformes à imagem de Seu Filho.” Logo, o Filho foi predestinado primeiro, e só depois nós. Resposta: Uma coisa é ser predestinado ao fim, outra é ser predestinado aos meios. Fomos primeiro predestinados ao fim, antes mesmo de Cristo, enquanto fim desejado por Deus. Mas porque Cristo ocupa o primeiro lugar entre os meios, a nossa conformidade a Cristo ocupa o segundo lugar. Logo, esse meio (a conformidade à vida e à paixão de Cristo) foi predestinado posteriormente, em relação à nossa predestinação ao fim.

A eleição não é condicional, como forjam os adversários, concebida segundo esta forma: “Quero salvar aqueles que hão de crer.

Nenhum decreto de Deus, tampouco a sua vontade, é condicional, como já demonstramos ao tratar dos decretos divinos em geral. Aqui acrescentamos o seguinte:

I. Se a eleição fosse dessa natureza, então não seria propriamente a vontade de Deus, nem seu decreto, mas apenas uma velleidade. Ora, velleidade ou desejo em sentido próprio indica uma imperfeição intrínseca, e seu ato é indefinido. Tal coisa não pode de modo algum existir formalmente em Deus, que é perfeitíssimo e ato puríssimo.

II. Não se pode chamar propriamente de vontade aquilo que está suspenso sob condição, mas apenas aquilo que efetivamente quer. Com efeito, se Deus elegeu os homens para a salvação sob esta condição: “Se creres, quero tua salvação”, essa proposição não indica que Deus quer a fé e a salvação dessa pessoa mais do que a incredulidade e a perdição, visto que simultaneamente se ouve: “Se não creres, morrerás.”

III. Supor um decreto e uma vontade disjunta atribui a Deus uma falha σφάλμα alheia à sua perfeição. O próprio Suárez, embora concorde com os adversários nesse ponto, o admite. Com efeito, ele diz (em De Praedest., livro 1, cap. 13, seção 5) que a preparação dos meios, feita de modo confuso e sob forma disjuntiva, isto é, para que, se um meio não surtir efeito, outro seja aplicado, não é conforme à perfeição divina. A perfeição divina requer que, com ciência certa e de modo claro e distinto, tudo seja disposto em conformidade com a dignidade e capacidade de cada coisa. Portanto, o decreto geral “Quero salvar os homens sob a condição de que creiam”, ao qual os adversários subordinam este outro: “Quero salvar Pedro, que vejo que crerá”, é inepto para ser atribuído a Deus. Seria como se a vontade ou o decreto divino fosse indefinido, confuso e universal, com um progresso ou transição de uma indeterminação para uma determinação. Mas é igualmente absurdo imaginar em Deus uma vontade indefinida, uma ciência geral e um progresso de um ato para outro ou posterior. Assim como Deus conhece singularmente [singularissime] cada coisa, com suas causas e circunstâncias, não de forma genérica e confusa, mas em grau extremo de distinção, assim também decreta de uma só vez e de modo completo, num único instante de natureza. Essa verdade é tão manifesta que o próprio Suárez, jesuíta e defensor da posição adversária, a sustenta com vigor e confessa ter recuado de sua opinião anterior sobre a causa meritória à luz dessa evidência. Além disso, no decreto geral pelo qual todos os homens seriam eleitos sob a condição de prestarem fé, Deus seria escarnecido. Seria um decreto sob condição que, no exato momento em que é proferido, Deus já sabe com certeza que não será cumprida. E isso é ainda mais absurdo se tal condição só pode ser realizada com o auxílio e a eficácia d’Aquele mesmo que decreta. Com efeito, Deus não estabelece tal condição para o homem, mas para si mesmo, o que é inaceitável. A experiência prova que Deus não administra a todos os meios necessários para o cumprimento dessa condição. Ele não quer que o evangelho seja anunciado a todos, nem concede a todos o Espírito de regeneração. Por fim, o juízo a ser dado acerca dessa eleição geral pode ser extraído de suas consequências, dentre as quais a principal e mais grave é esta: afirmam que o número dos eleitos não é certo nem previamente definido por Deus. Com isso, a eleição dos indivíduos se torna incerta, e, portanto, incerto também o número dos eleitos. Ora, a Escritura ensina que o número dos eleitos é certo, conforme Ap 6, onde as almas sob o altar são exortadas a esperar até que se complete o número de seus irmãos. Cristo também fala das ovelhas que lhe foram dadas antes mesmo da conversão, em Jo 10.16. E ainda: “Todos os que o Pai me dá virão a mim”, Jo 6.37. E: “Ninguém pode arrebatar minhas ovelhas da minha mão”, Jo 10.28. Lucas confirma isso quando, em Lc 10.20, Cristo diz aos apóstolos: “Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem, mas alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos nos céus.” Essa expressão é tomada dos profetas, nos quais se diz que algo está escrito quando foi fixado e estabelecido por decreto divino. Em Is 4.3, por exemplo, são chamados “escritos para a vida” os que devem ser preservados segundo o conselho de Deus. Em Is 65.6 se lê: “Eis que está escrito diante de mim; não me calarei, mas retribuirei”, como se dissesse: está decidido e decretado por mim punir esses crimes. Não menos claramente afirma o apóstolo em Hb 12.22–23, onde chama a Igreja de “Jerusalém celestial e assembleia dos primogênitos inscritos nos céus”. A isso se refere o “livro da vida”, mencionado com frequência, especialmente em Ap 20.15, onde se diz que serão lançados no lago de fogo os que não forem encontrados inscritos no livro da vida. Sabemos, é claro, que há um certo “livro da vida” que não é o da eleição, mas o catálogo dos que se professam membros da Igreja e estão visivelmente inseridos na aliança, como mencionado em Ez 14.9 e Sl 69.29, livro do qual é certo que alguns são apagados. Contudo, quando se precipitam no inferno todos os que não estão inscritos no livro da vida, fica claro que esse livro designa um número certo e definido de pessoas que, enquanto os demais são destinados ao fogo, são reservadas para a vida. Tal número não pode ser aumentado nem diminuído, nem agora nem no dia do juízo. Além disso, a eleição é de pessoas singulares e definidas, como demonstraremos a seguir.

1. Em Rm 9, os predestinados são designados como Isaque, Ismael, Jacó, Esaú e Faraó. Nenhuma razão impede que o mesmo se diga dos demais predestinados. Objeção: Jacó e Esaú são ali tomados como tipos. Resposta: Isso é inapropriado. O texto trata de Esaú e Jacó como concebidos por Rebeca. Mas foram concebidos absolutamente, e não enquanto tipos. Ainda que se concedesse isso, o que dizer então de Isaque e Faraó? Seriam também tipos? Réplica: Sim, pois de Esaú se diz que foi odiado antes mesmo de pecar, e Deus não odeia a pessoa absolutamente, mas apenas o pecador. Resposta: Assim como a reprovação é dupla, o mesmo se aplica ao ódio divino. A reprovação pode ser negativa, ao não se estar inscrito no livro da vida; ou positiva, ao ser destinado e ordenado para a perdição. Do mesmo modo, o ódio divino pode ser negativo, quando alguém não é amado; e positivo, quando se ama alguém menos em razão do pecado, conforme Sl 5.5–6. Esaú, portanto, é dito ter sido odiado com ódio negativo, ou seja, por não ter sido dignado com o amor divino.

2. Em Lc 10.20, Cristo ordena: “Alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos nos céus.” Isso equivale a dizer que pessoas certas e definidas foram predestinadas, pois a metáfora é tirada daqueles que, ao registrar pessoas certas e individuais, costumam anotar seus nomes. Objeção: Ainda que isso se conceda, não se segue que a reprovação seja também de pessoas certas, pois em lugar nenhum se diz que os nomes dos réprobos estão escritos, o que deveria ser dito, se a reprovação fosse semelhante à eleição. Resposta: É certo que o Espírito Santo trata com mais parcimônia dos réprobos do que dos eleitos nas Escrituras. A razão é que os ímpios não são objeto da mesma solicitude divina que os piedosos. Além disso, ainda que não se afirme literalmente que os nomes dos réprobos estão escritos, há passagens que indicam com clareza que certas pessoas são, de fato, reprovadas.

3. Todo fiel pode saber, quanto a si mesmo enquanto pessoa singular e determinada, que Cristo morreu por ele. Se, portanto, Cristo morreu por pessoas certas, segue-se que isso foi decretado desde a eternidade: que Ele morreria por esta ou por aquela pessoa em particular. Com efeito, assim como Deus age no tempo, assim também decretou desde a eternidade agir. Objeção: Cristo não morreu por pessoas definidas, já que se diz que morreu por todos. Resposta: Se entendes isso no sentido de que morreu por todos e cada um individualmente (pro omnibus et singulis), estás equivocado. Vê, por exemplo, a explicação dessa expressão em Ap 7.9. As seguintes proposições são contraditórias: que Cristo morreu por todos e cada um, e que, ainda assim, alguns foram reprovados — especialmente se isso for combinado com a distinção entre vontade antecedente e consequente. Com efeito, dizem que Deus, por vontade antecedente, quis que todos e cada um fossem salvos, mas, tendo previsto que alguns não haveriam de crer, por vontade consequente quis apenas a salvação de alguns. E, mesmo assim, afirmam que Deus concedeu a todos e a cada um o meio de salvação. Ora, se por vontade consequente Ele não quis a salvação de todos e cada um, como poderia querer-lhes o meio?

4. Há também um decreto concernente até mesmo aos nossos cabelos e aos pardais. Como poderia, então, haver decreto para essas coisas — que, em comparação com o ser humano, nada são — e não haveria um decreto concernente ao próprio homem, e de fato, a cada pessoa humana em particular? A premissa é evidente por Mt 10. A consequência é confirmada por analogia em 1Co 9.9.

A eleição para a salvação não se deu com base na fé prevista.

Nossos argumentos são os seguintes:

I. “Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi a vós” (Jo 15.16). Se, contudo, quiséssemos crer antes que ele nos escolhesse, seríamos nós os que primeiro o escolhemos, antes que ele nos elegesse. Isso resultaria numa afronta particular à graça e numa ofensa à sua singularidade, pois a causa de nossa eleição seria transferida do próprio Deus para o homem, sustentando-se que se deu por nossa causa. Mas Deus declara: “Não é por vós que eu o faço, sabei-o bem, mas por causa do meu santo nome” (Is 48.11). E Paulo pergunta: “Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado?” (Rm 11.35).

II. A fé é dom de Deus, conforme Efésios 2.8. Se assim é, não é coerente nem conforme à verdade afirmar que Deus nos elege com base em algo que ele próprio está por nos conceder, visto que, nesse caso, pressupõe-se necessariamente a eleição daqueles a quem tal dom será dado. Tal eleição, portanto, deve proceder do mero beneplácito e vontade de Deus. Assim, deve-se afirmar ou que a fé, em contradição com o apóstolo, reside na vontade humana, ou então que a eleição para a salvação deve ser buscada na única fonte da misericórdia divina. Dir-se-á: a fé, dom de Deus, é comum a todos, mas nem todos a aceitam, apesar de lhes ser oferecida. A graça de Deus, então, não seria irresistível, mas estaria sujeita à decisão do homem, se ele quer ou não recebê-la. Respondo: aquilo que não é não pode ser chamado dom de Deus. A fé é chamada dom de Deus não onde ela não está presente, mas onde está. Não se pode conceder algo que aquele a quem se dá não possui. Há sempre correlação mútua entre o doador e o recebedor. Onde, pois, há dom, aí Deus concede a posse da fé. Não se pode falar de dom onde Deus não opera para que se creia.

III. Se Deus nos escolheu com base na fé prevista, então nos elegeu não como estranhos, mas como filhos; não como estrangeiros, mas como cidadãos; não como mortos, mas como viventes. Ora, tudo isso o somos mediante a fé, e, se ele nos elegeu apenas enquanto crentes, elimina-se o motivo para toda gratidão e exultação entre os eleitos, pois não poderiam mais cantar a glória de Deus por terem sido escolhidos, apesar de estarem na mesma condição dos demais, não possuindo nada em si que os tornasse mais dignos do que os outros, mas tendo sido recebidos exclusivamente por graça e generosidade divinas. Os adversários negam isso, apresentando-se como recebedores não do benefício de Deus, mas de sua própria disposição. Desse modo, eliminam a pergunta do apóstolo: “Quem te fez diferente?” (1Co 4.7). Respondem: nossa fé nos distinguiu, nossa vontade crente nos separou, pois quisemos crer, enquanto outros recusaram. Mas o apóstolo insiste: “O que tens que não tenhas recebido?”

IV. Destaca-se aqui o texto de Atos 13.48: “Creram todos quantos haviam sido ordenados para a vida eterna.” Enquanto Paulo pregava aos antioquenos, alguns creram e outros rejeitaram o Evangelho. Lucas afirma que a causa da fé dos primeiros foi a ordenação e o decreto de Deus. A eleição, portanto, precede a fé, uma vez que a eleição de Deus é a causa porque se crê. Segundo os adversários, porém, Lucas deveria ter escrito: “E todos os que creram foram eleitos por Deus em razão de sua fé.” Mas o texto diz o contrário: que creram os que haviam sido eleitos. Os opositores tentam distorcer o sentido da palavra τεταγμένοι (ordenados), interpretando-a como “dispostos”, “preparados” ou “inclinados”, como se Lucas tivesse escrito διακείμενοι (bem-dispostos). Essa interpretação, no entanto, é refutada: primeiro, porque o uso que fazemos desse vocábulo é o mais comum em Lucas. Veja-se Atos 15.2: ταξαν ναβαίνειν Παλον (decidiram que Paulo subisse); e Atos 28.23: ταξάμενοι ατ μέραν (tendo-lhe designado um dia). Também Paulo, em Romanos 13.1: α δ οσαι ξουσίαι π το θεο τεταγμέναι εσίν (as autoridades que existem foram ordenadas por Deus). Além disso, essa palavra não pode aqui significar “bem-dispostos”, porque ninguém entre os não-regenerados pode estar bem-disposto ou bem-afetado à vida eterna. E todos aqueles antioquenos, antes de crerem no Evangelho, eram não-regenerados. Assim ensina o Espírito Santo sobre todos os não-regenerados: “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus” (1Co 2.14).

V. A autoridade divina é sustentada também pela reta razão. Se atentarmos para o próprio título e vocábulo, a origem e uso do termo mostram que predestinar nada mais é do que ordenar e separar para um fim determinado. Escolher, tanto entre os gregos quanto entre os latinos, significa separar alguém ou algo dentre muitos, para si, com determinado uso e fim. Assim, ou a predestinação divina é para um fim, ou não é predestinação alguma. E se é para um fim, então também é para os meios, pois quem deseja seriamente e com reta intenção um fim, quer também os meios que a ele conduzem. Nenhum fim é desejado enquanto tal, a não ser que esteja em relação com seus meios, que, segundo a Lógica, lhe atribuem bondade e desejabilidade. Além disso, esses meios que conduzem à vida eterna são também os meios de participação da própria vida, são os bens iniciais da salvação, nos quais ela está contida, embora ainda de forma incompleta. Quem verdadeiramente crê tem em si Cristo habitando, tem o Espírito de Cristo, possui as primícias da glória, a união e comunhão com Deus Pai, e já experimenta a própria vida eterna. Possui também a natureza divina, embora ainda não no grau e modo com que a desfrutará após esta vida. Ainda assim, quanto à essência, não difere da futura. Ele possui agora a graça da adoção, da qual aquela futura herança é apenas apêndice. Conclui-se, portanto, que se alguém é eleito para a salvação e vida eterna, é necessário que seja igualmente eleito para os meios que constituem parte e grau daquela mesma salvação.

VII. A eleição seria então do que corre, e não do que usa de misericórdia.

VIII. Deus não teria compaixão de quem quer, mas sim daqueles que prevê crerem; logo, a sua misericórdia seria exercida necessariamente sobre eles.

IX. O texto de Romanos 11.5–6 não poderia ser verificado: “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente segundo a eleição da graça. E se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça.”

X. Deus nada prevê como futuro, senão aquilo que ele mesmo decretou. Com efeito, se Deus previsse que certos haveriam de crer, então teria decretado isso. Resta perguntar: por que, então, ele não decretou fé para todos? A única resposta possível por parte dos adversários é: assim lhe aprouve.

XI. Em Tito 1.1, a fé é chamada fé dos eleitos. Ora, pergunta-se: por que a fé é chamada fé dos eleitos? Certamente não se pode apresentar outra causa, senão: ou porque ela procede das forças deles próprios, ou porque é dada a todos os eleitos. Os adversários querem sustentar a primeira opção. Mas isto é falso, pois a fé é dom de Deus, e porque o homem natural “não compreende as coisas que são do Espírito de Deus” (1Co 2.14). Resta, portanto, afirmar que se chama fé dos eleitos porque é dada por Deus somente aos eleitos. Se perguntares por que ela não é dada a todos, será necessário recorrer ao beneplácito de Deus.

Vamos agora examinar as objeções dos adversários. I. Objeta-se com o texto de Hb 11.6: “Ora, sem fé é impossível agradar a Deus.Resposta: Ser agradável a Deus é uma coisa; ser amado e escolhido por Deus é outra. Fomos eleitos porque Deus nos amou, não porque fôssemos agradáveis a ele. Com efeito, Deus nos amou enquanto ainda éramos pecadores (Rm 5.8); mais ainda, ele nos amou para que nos tornássemos agradáveis a si em seu Amado (Ef 1.6).

II. Objeta-se com Tg 2.5: “Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé?” Concluem, portanto, que Deus escolheu com base na fé prevista. Resposta: Deus escolheu os pobres na fé assim como escolheu herdeiros do Reino, mas os escolheu, não porque já fossem, mas para que fossem. Aqui é evidente uma elipse do verbo το γενσθαι (para que fossem). É certo que a herança é o fim da eleição, isto é, Deus escolheu aqueles a quem quis dar a herança celestial; portanto, o mesmo se deve dizer da fé, pois ambas as expressões são regidas pelo mesmo verbo e no mesmo sentido. Assim, “ricos na fé” está gramaticalmente sob a regência de “escolheu”, mediante o verbo elíptico para que fossem.

III. Objeta-se com 2Ts 2.13: “Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade.” Daí concluem que Deus nos escolheu com base na fé prevista. Resposta: O apóstolo ensina que Deus nos predestinou para alcançar a salvação por meio da santificação e da fé, mas não afirma que fomos eleitos por causa da fé prevista; diz apenas que fomos eleitos para alcançar a salvação por meio da fé. Se desse texto se pudesse inferir que fomos eleitos com base na fé prevista, também se poderia inferir que fomos eleitos com base na santificação ou regeneração prevista, o que os próprios adversários não aceitam.

Vorstius, contra Piscator, anota aqui que há uma elipse dupla: tanto do artigo τν depois do substantivo σωτηραν, quanto do particípio δεδομνην, para se entender que a salvação é dada pela santificação. Piscator responde, em sua “Resposta à Duplicação Amigável”, que é falso atribuir-lhe tal elipse, pois aqui não há distribuição entre dois tipos de salvação, uma dada pela santificação e outra não, mas se entende simplesmente a salvação eterna, que é uma só e que é dada pela santificação do Espírito. E pergunta que razão poderia ele ter para forçar essa elipse? A razão é que essa elipse forçaria a ideia de que a eleição ocorre pela fé, o que é falso, pois contradiz outros textos claros da Escritura, como Rm 8.30 e Ef 1.5.

IV. Objeta-se: “Aqueles que Deus salva no tempo são os mesmos que ele decretou salvar na eternidade; ora, no tempo Deus primeiro envia Cristo, depois administra sabiamente os meios para arrependimento e fé, e então recebe em graça os que se arrependem e creem, e finalmente salva os perseverantes na fé. Logo, Deus decretou salvar essas mesmas pessoas na mesma ordem.Resposta: Não há dúvida de que aqueles que Deus salva no tempo são os mesmos que ele decretou salvar desde a eternidade; mas dizer que Deus salva na mesma ordem com que decretou salvar, é verdadeiro num sentido e falso em outro. É verdadeiro que Deus salva segundo a ordem do seu decreto; mas é falso que, ao executar seu decreto, Deus siga a mesma ordem que teve ao decretar. Ao decretar, Deus pensa primeiro no fim, depois nos meios; ao executar, começa pelos meios e termina no fim. Assim também o médico visa primeiro a saúde, depois os remédios; mas, na prática, primeiro administra os remédios e depois alcança a cura.

V. Objeta-se que seria contraditório querer salvar absolutamente alguém, e ao mesmo tempo não querer salvá-lo senão sob a condição de fé. Resposta: Há aqui ambiguidade no termo “absolutamente”. Se por “absolutamente” se entende com certeza, de modo preciso e necessário, então essas duas vontades não se contradizem: querer com certeza salvar alguém, e querer salvá-lo por meio da fé. Assim como não se contradiz querer absolutamente que alguém viva, e querer que ele viva mediante comida e respiração.

VI. Objeta-se que é contraditório eleger alguém para a salvação antes de crer, e querer salvar apenas os que creem. Resposta: Negamos que haja contradição entre eleger alguém para que creia e querer salvar os que creem. Se um pai destina seu filho ainda pequeno ao ministério pastoral e, mais tarde, o faz ser instruído nos estudos para alcançar esse ministério, ele estaria querendo coisas contrárias? De forma alguma: ele simplesmente quis, desde o início, que seu filho chegasse lá mediante os meios.

VII. Objeta-se com 2Pe 1.10: “Procurai fazer firme a vossa vocação e eleição.” Concluem que a vocação é anterior à eleição, pois é mencionada antes, e que, portanto, a fé também é anterior. Resposta: Falsa hipótese. Não é porque uma coisa é mencionada primeiro que ela é anterior em realidade. Isso é refutado por Mc 1, onde se diz que João batizava e pregava o arrependimento; o batismo é mencionado primeiro, mas a pregação o precede. Igualmente Mt 22: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”; a parte de César é mencionada antes, mas a de Deus é, por natureza, anterior. Além disso, o tornar firme a eleição pode ser entendido quanto à eleição em si ou quanto à certeza reflexa dela. Este último é o sentido aqui. A eleição é o decreto imutável de Deus, que não pode ser revogado (Is 46.10; 14.26). Mas nós a tornamos firme para nós mesmos quando, ao lermos as Escrituras, reconhecemos nelas os sinais dos filhos de Deus e os encontramos em nós.

VIII. Objeta-se que a doutrina da eleição destrói o evangelho. Pois o evangelho diz: “Se creres, viverás”; mas esta doutrina diz: “Se fores predestinado, crerás.Resposta: Os subordinados não se contradizem. O evangelho afirma ambos: “quem crer será salvo” (Mc 16.16) e “todos os que foram ordenados para a vida eterna creram” (At 13.48). Objeção: “Mas isto (‘quem crer será salvo’) é todo o evangelho.” Resposta: Isso é parte do evangelho, não todo o evangelho. Se estas palavras encerrassem todo o evangelho, que dirás então de Rm 9, onde se diz que Deus, por sua vontade livre, decretou condenar alguns? Ou ainda da doutrina de que Deus permitiu a queda para manifestar sua justiça e misericórdia? Ou da afirmação de que os que foram predestinados à salvação o foram também aos meios? Objeção: No evangelho se ensina que Deus quer primeiro que o homem creia, depois que seja salvo; mas esta doutrina afirma que Deus estabeleceu primeiro a salvação, depois a fé. Resposta: Confunde-se aqui a ordem de execução com a ordem do decreto. Na execução, Deus começa pelos meios e chega ao fim; no decreto, começa pelo fim e ordena os meios.

IX. Objeta-se: “Se Deus predestinou uns à fé, então também predestinou outros à incredulidade; o que é absurdo.Resposta: Aquilo que aqui é tido por absurdo não o é, de fato. Pois é certo que Deus predestinou alguns à incredulidade, não absolutamente, enquanto incredulidade é pecado, mas enquanto é meio. Ora, são duas coisas distintas: meio e pecado. De fato, é certíssimo, como atesta o apóstolo em Rm 9, onde tratando do mesmo tema diz: “Para isto mesmo te levantei, Faraó…” indicando que ele foi predestinado a resistir a Deus. Outros também são ditos destinados à incredulidade, como Judas (cf. Jd 4).

X. Objeta-se: “Alguns dos nossos dizem que os fiéis não são eleitos objetivamente, mas terminativamente; logo, os fiéis seriam eleitos enquanto pecadores.Resposta: O sentido é este: que o eleito acabará por crer, ainda que não creia imediatamente após ser eleito — o que é verdade, mas não universalmente, pois nem todo eleito é um fiel “terminativo”; há também eleitos entre os infantes.

A eleição não foi feita com base nas boas obras previstas.

I. Em Rm 9.11-12, toda causa meritória é removida, como se afirma: “não tendo ainda nascido os filhos, nem praticado o bem ou o mal...

II. Se a fé prevista não é causa da eleição, tampouco o serão as boas obras. Mas é verdadeiro o antecedente, como foi claramente demonstrado no aforismo imediatamente anterior. Logo, o consequente também se mantém. A razão da consequência está em que a fé é a causa das boas obras. Portanto, se a fé, enquanto causa das boas obras, não é causa da eleição, com muito menos razão o serão as boas obras, que são efeito da fé.

III. Deus nos criou para as boas obras (Ef 2.9-10). Logo, nada nos é conferido em virtude de obras previstas. Objeção (Arminius): Deus escolheu não os sábios, mas os loucos e fracos, isto é, os humildes e pequenos, não os altivos. Resposta: Argumento vão e interpretação deturpada. (1) O apóstolo mostra quem são e como são os eleitos, não por que foram eleitos; (2) Brinca-se aqui com o termo “escolheu”, que pode ser tomado ou como decreto divino, ou como separação, distinção, seleção. Ora, o apóstolo, no lugar citado, toma-o neste último sentido, e não no primeiro.

Não somos eleitos por causa da fé; antes, é porque fomos eleitos que nos tornamos crentes.

Este é o corolário das teses anteriores. Mas ainda assim se demonstra ex superabundantia, em Ef 1: “[Deus] nos elegeu nele desde a eternidade”, antes, portanto, que existíssemos. Também: “Aqueles que predestinou, a esses também chamou”; ora, é somente após o chamado que a fé ocorre. Logo, não somos feitos eleitos por meio da fé.
Além disso, alguns são chamados ovelhas de Cristo, ou amigos de Cristo, antes de crerem.
Jo 10.11: Cristo se diz o bom pastor, que dá a vida por suas ovelhas. Jo 15.13: afirma sofrer a morte por seus amigos. Se, pois, Cristo morreu por amigos e ovelhas suas, é necessário que, ao morrer por eles, já os considerasse como ovelhas e amigos seus, mesmo que muitos ainda não tivessem sido chamados — conforme o próprio Cristo atesta, no v. 16 do mesmo capítulo, ao chamar de suas ovelhas também aqueles que ainda não se haviam convertido, e, por conseguinte, não eram ainda crentes. Mt 24.24: “Surgirão falsos profetas... de modo que, se possível fora, enganariam até os eleitos.”
Ora, essa sedução atinge tanto os que ainda não foram eficazmente chamados quanto os que já o foram, e mais aqueles do que estes. No mesmo capítulo, v. 22: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria; mas por causa dos eleitos, serão abreviados aqueles dias.” O que é expresso de forma mais clara em Mc 13.20: “Por causa dos eleitos, que Ele escolheu, abreviou aqueles dias.” Não diz: “que Ele eficazmente chamou”, mas “que escolheu”. Objeção: Tg 2.5: “Porventura não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino?” Logo, dizem, Deus nos escolheu com base na fé prevista. Resposta: O apóstolo não fala aqui da causa eficiente da eleição — que é a questão em debate, a saber: se somos eleitos por causa da fé —, mas trata, em parte, do objeto da eleição, e, em parte, dos fins dela. O objeto é indicado nestas palavras: “não escolheu Deus os pobres deste mundo?” — isto é, os pobres, em número maior que os ricos, cf. 1 Co 1.26. Se então perguntas: “A quem Deus escolheu?”, Tiago responde: “Aos pobres deste mundo.” Se perguntas: “Por que os escolheu?”, ou “com que fim os escolheu?”, ele responde: “Para serem ricos na fé e herdeiros do Reino.” Aqui há uma elipse manifesta do verbo το γενέσθαι, isto é, para que fossem. Pois, quanto à herança do Reino, é certo que ela é o fim da eleição — isto é, que Deus elegeu aqueles a quem quis conceder a herança celestial. Assim também se deve entender quanto à fé, pois é claro que ambas (fé e herança) são regidas pelo mesmo verbo, e no mesmo sentido.

A eleição é imutável, de modo que aquele que uma vez foi eleito por Deus para a vida eterna não pode cair da graça de Deus.

O argumento que confirma esta tese é geral: Todo decreto de Deus é imutável (como já foi demonstrado acima); portanto, também o decreto da eleição o é.

I. Objeção: Se a eleição é imutável, então tanto faz se alguém age bem ou mal, o que elimina o zelo pelas boas obras. Resposta: Parte-se aqui de uma hipótese falsa, como se Deus destinasse alguém ao fim sem, ao mesmo tempo, o destinar aos meios. Mas a falsidade dessa hipótese já foi amplamente refutada por nós em outro lugar.

II. Objeção: Os israelitas, que Deus havia escolhido como seu povo peculiar, foram rejeitados. Logo, a eleição não é imutável. Resposta: Quando se diz que os israelitas foram rejeitados, isso não se deve entender a respeito dos eleitos. O contrário é evidente em Rm 9.6. O que se entende é que, antes, Deus havia abrangido com sua graça somente aquele povo, e dEle somente reunia a Igreja; agora, porém, Ele fez de dois povos um só, derrubando o muro de separação (Ef 2.14). Não se diz que Deus recebeu os povos que antes reprovara, mas que agora dignou-se, por sua graça, com aqueles que antes não o eram.

III. Objeção: Jo 17.12: “Nenhum dos que me deste se perdeu, senão o filho da perdição.” Mas aqueles que foram dados a Cristo são os eleitos. Logo, os eleitos podem perecer. Resposta: A partícula ε μή é aqui tomada não no sentido de exceção, mas de distinção (como em Lc 4.26-27). Assim também deve ser entendida aqui, e a conclusão não procede. Judas é chamado de “filho da perdição”, logo, foi dado a Cristo? Logo, foi eleito?  não se segue.

IV. Objeção: Êx 32.32: Moisés pede para ser riscado do livro da vida. Logo, a eleição não é imutável. Resposta: O pedido de Moisés não é absoluto, mas condicionado, de modo que ele submete tudo à vontade de Deus — do mesmo modo como Paulo o faz em Rm 9.3. Obj. Ninguém pede o impossível; logo, também Moisés não. Resp.: O estado do homem, às vezes, é tal que ele pede até mesmo o impossível, mas o faz de modo que ainda respeita a vontade de Deus. Exemplo disso vemos em Cristo, que também pediu o impossível, ainda que submisso à vontade do Pai: “Passa de mim este cálice... mas não se faça a minha vontade, e sim a tua.

Deus, ao eleger, o faz de tal modo que escolhe para a graça e para a glória, conferindo irresistivelmente os meios.

Prova-se, em primeiro lugar, por Romanos 8.30, onde se afirma que Deus nos predestinou para a glória, de maneira tal que todos os meios da salvação lhe são atribuídos como ao próprio autor da salvação. Ora, tais meios lhe são atribuídos de forma a implicar que Ele os realiza irresistivelmente, pois, de outro modo, não se poderia dizer que os que Ele chamou, também justificou. Com efeito, poderia Deus chamar alguns que, no entanto, não viriam.

Segundo, em Efésios 1.3-4, entende-se por bênçãos os meios da salvação. Ora, é costume das Escrituras chamar de bênção não apenas um favor em potencial, mas somente aquilo que se efetiva. Por exemplo: "abençoarei a terra", isto é, "farei com que tenha produção".

Terceiro, a partir da distinção entre os meios, dos quais alguns são chamados próprios e outros impróprios. Meios próprios são a fé e o modo da fé, que geralmente se chama perseverança. Meios impróprios são as boas obras, e estas são excluídas do rol dos meios próprios, pois o meio, em sentido próprio, é, conforme a lógica, ao mesmo tempo meio e causa. As boas obras, porém, de modo algum são causa.

Quanto à fé, é claríssimo que Deus a concede, e de tal modo que aqueles que são eleitos para a salvação (refiro-me aos adultos) necessariamente a possuirão, ainda que não neste momento, mas em tempo oportuno, conforme Atos 13.48.

Arminius levanta uma objeção, dizendo que a expressão “ordenados” ou “preconhecidos” deve ser interpretada como “dispostos”, e não como “ordenados”. Respondemos: é uma invenção vã. Pois, se for assim, Arminius teria de afirmar que o homem não regenerado pode dispor-se para a fé, o que contradiz a própria natureza do homem irregenerado, tal como é descrita pelo Espírito Santo. De fato, tal natureza é de tal modo que não apenas é inapta para perceber as coisas do Espírito de Deus (1 Co 2.14), mas é inimiga e hostil a Deus, pois “a carne não se sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode fazê-lo”.

Não vale a objeção de que isso não se diz de todos os eleitos de todos os tempos, mas apenas dos contemporâneos, pois a mesma razão se aplica a todos os eleitos, já que o Espírito Santo testifica que aqueles que Deus preconheceu, a esses também chamou.

Sobre a perseverança, é igualmente certo que aqueles a quem é dada a fé, a estes é igualmente dada a perseverança na fé, conforme Jr 32.39-40. Isso também se demonstra a partir da própria fé: se aqueles que uma vez a possuíram a pudessem perder, então certamente o Espírito Santo não ligaria essa promessa à fé: "quem crê será salvo" (Mc 16.16). Com efeito, não se diz: "quem crer até o fim será salvo", mas simplesmente: "quem crê", o que torna claro que, uma vez conferida, a fé nunca é retirada. Por isso se diz, em Rm 11.29, que os dons e a vocação de Deus são μεταμλητα, ou seja, irrevogáveis. Note-se cuidadosamente que tal passagem não deve ser entendida como "dons e vocação", mas sim como "os dons da vocação", pois sabemos que muitos dons são concedidos aos homens e depois retirados. Portanto, o que se entende aqui são os dons próprios da vocação. Expressão semelhante ocorre em Rm 1.5: “por quem recebemos graça e apostolado”, ou seja, a graça do apostolado. Assim também Virgílio: libavam pateris et auro, ou seja, "com taças de ouro". Ora, é desses dons da vocação que se diz serem μεταμλητα, e isso é uma metáfora antropopática: assim como o homem, ao se arrepender, muda seu feito, Deus é dito “não se arrepender” no sentido de não revogar seus dons. Quanto às boas obras, dizemos que são meio apenas em sentido impróprio. Pois um meio, em sentido próprio, é também causa. As boas obras, contudo, de modo algum o são. E, embora sejam concomitantes à fé — a ponto de, onde não existirem, não haver verdadeira fé (cf. Tg 2) —, dizem-se em Gl 5.6 como aquilo que torna a fé eficaz, ou seja, que a fé opera mediante a caridade. Mas isso não deve ser entendido à maneira dos papistas, como se a caridade conferisse à fé seu valor e a tornasse eficaz. A expressão é semelhante à de 1 Ts 2.13: "a palavra de Deus é eficaz nos que creem", o que, interpretado toscamente à maneira dos papistas, implicaria que os fiéis acrescentam eficácia à Palavra. O sentido, porém, é este: a Palavra é eficaz nos que creem, porque nela opera a fé. Do mesmo modo, diz-se que a fé é eficaz pela caridade, ou seja, que opera mediante a caridade. Quarto, Romanos 9.11 mostra que somos eleitos para o fim, de tal modo que também somos eleitos para os meios. E somos eleitos para os meios de forma tal que, em tempo determinado, Deus os confere de modo que os fiéis os tenham necessariamente. Isso se prova pela declaração de que o propósito de Deus permanece firme. A eleição é firme, mas não o seria se os meios não fossem também certos. Pois, na execução, o fim depende dos meios. Se o fim é certo, os meios também o serão. Objeção: a eleição permanece firme, mesmo que não haja meios. Pois Deus apenas determinou que qualquer um que crer será salvo; mas não quanto a indivíduos em particular, como João ou Pedro. Da mesma forma que um príncipe estabelece uma lei dizendo: “quem a cumprir receberá tal prêmio”. Resposta: isso é impróprio. Demonstramos acima que a eleição é de pessoas singulares. Segundo, o próprio Espírito Santo, no capítulo 11 da Epístola aos Romanos, trata e resolve essa questão ao dizer que Deus elegeu Israel e o rejeitou. Como então permanece firme a eleição? Responde-se que permanece firme porque “nem todos os que são de Israel são Israel” (Rm 9.6), e Deus rejeitou aqueles que não eram verdadeiramente Israel; mas não os que eram verdadeiramente seu povo.

I. Objeção, ao dizermos que Deus elegeu os homens tanto para a salvação quanto para os meios, e que Ele confere os meios aos eleitos, poder-se-ia objetar que Deus então elege o fim, mas não os meios. Seria como se um pai desejasse que seu filho fosse conselheiro e o enviasse à escola, mas sem necessariamente lhe fornecer os meios para isso. Assim também Deus, ao não conferir necessariamente os meios, anularia a liberdade do homem. Resposta: primeiro, isso pressupõe falsamente que a liberdade não pode coexistir com a necessidade da imutabilidade, o que é falso. Segundo, se Deus quer o fim, mas não quer os meios, então, com efeito, não quer seriamente o fim, o que é absurdo. Mas, se quer o fim, também quer os meios e, portanto, os realiza. Pois tudo quanto Deus quer, Ele realiza (Sl 115.3).

II. Deus abandona o homem a si mesmo. Pois o Espírito Santo atribui ao homem a confecção de sua salvação, conforme Fp 2.12, e assim os homens seriam, de certo modo, os próprios salvadores. Resposta: primeiro, o Espírito Santo nunca atribui o nome de “Salvador” a ninguém senão exclusivamente a Cristo, conforme Atos 4.12. Segundo, quanto à passagem de Fp 2.12, "efetuai a vossa salvação", não significa que se deva realizar a salvação por mérito, satisfação ou aquisição, pois nenhum fiel pode realizar sua própria salvação nesse sentido, dado que “não há outro nome” (At 4.12). Se se pergunta: de quem é a salvação? Não é, porventura, daquele que está perdido? Mas esse que se perdeu não pode ser causa da sua própria salvação, nem ao menos ao se aproximar dela ou ao participar dela — e é esse o sentido da passagem. Aproximamo-nos da salvação pela fé, assim como a fé acolhe todas as promessas de Deus, inclusive a da salvação.

III. Mesmo que se conceda que os meios são conferidos, não o são a cada indivíduo. Qual seria então o propósito da distinção entre graça suficiente e graça eficaz? Resposta: primeiro, os que imaginam essa distinção se contradizem. Pois, se a alguns é dada graça suficiente, como não será ela também irresistível, preservando a liberdade da vontade? Segundo, até os dominicanos ridiculari­zam essa distinção. Pois graça suficiente é aquela à qual nada falta. Logo, requer três graus de suficiência: primeiro, que se possa fazer o que Deus quer; segundo, que se queira o que Deus quer; terceiro, que se efetive o que Deus quer. Ora, se alguma graça chamada "suficiente" não contém esses três graus, como pode de fato ser chamada suficiente?

A eleição, quanto à razão do fim, isto é, enquanto está na intenção divina, não é ato de misericórdia, mas de beneplácito e de poder absoluto de Deus; contudo, enquanto está na execução, é também ato de misericórdia.

Quanto ao aspecto da intenção, isso é certo; pois ainda não havia pecadores considerados como tais, para serem deixados na queda. Quanto ao aspecto da execução, isso também é certo; pois, como diz o Espírito Santo na Epístola aos Efésios, capítulo 1: “Escolheu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante d’Ele.” Ora, se nos escolheu para que fôssemos santos e irrepreensíveis, então nos escolheu quando ainda não éramos santos nem irrepreensíveis, ou seja, pecadores. Logo, é por misericórdia.

 

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