A heresia pelagiana da negação da graça e do livre-arbítrio, por Diego Álvarez
O que Pelágio expressou sobre a necessidade da graça e as capacidades naturais de nosso livre-arbítrio [ lib. 1; cap. 1]
De acordo com o que disseram[1],
Pelágio afirmou que nenhuma graça interior (gratiam interiorem[2])
foi concedida, seja na parte do intelecto ou da vontade. Ele entendia, no
entanto, que pelo termo "graça", frequentemente usado em seus
escritos, referia-se apenas ao livre arbítrio (liberum arbitrium) criado
por Deus, seja pela lei, pela doutrina exterior, ou pela pregação do Evangelho,
por meio da qual Deus nos mostra o que devemos fazer ou evitar. Incluía também
o exemplo de Cristo, conforme relatado por Agostinho no livro "De
Gratia Christi contra Pelagium et Caelestium", capítulo 2, onde ele
diz: "Costumam dizer-nos que Deus nos forneceu, através de Seu exemplo
justo viver e ensinar corretamente, um modelo a ser seguido tanto em suas ações
quanto em seu ensino".
Esses autores afirmam ainda que
Pelágio negava toda cooperação atual de Deus, não apenas anterior às operações
das causas secundárias, mas também acompanhando-as, mesmo em relação aos atos
naturais. Ele admitia que Deus concedeu a eles o poder em sua criação para
operar sem a operação de Deus e cooperação posterior.
Entretanto, se os diferentes
estados de Pelágio forem cuidadosamente considerados, ficará evidente que ele
acabou admitindo uma graça maior do que sugere o argumento de Santo Agostinho.
Mesmo que afirmasse que, de acordo com o mérito, a graça é dada aos cristãos,
como afirma Santo Agostinho nas epístolas 106 e 107 e no livro "De Gratia
Christi contra Pelagium et Caelestium", capítulo 31, onde diz:
"Embora ele pense que a graça é dada aos cristãos de acordo com o mérito
deles". Para entender isso, é necessário considerar que Pelágio teve
quatro estados distintos em sua heresia.
No primeiro estado, ele negou
qualquer auxílio sobrenatural, seja ele natural ou de ordem sobrenatural,
confiando nas próprias faculdades humanas. No segundo estado, ele admitiu um
auxílio sobrenatural nas leis e na doutrina externa, ou mesmo no exemplo de
Cristo, mas o considerava dispensável, argumentando que o homem poderia mais
facilmente cumprir os mandamentos divinos por meio da graça. O terceiro estado
de heresia de Pelágio reconheceu uma graça interior, como a iluminação interna
da inteligência e a excitação interna da vontade, mas sempre negou que essa
graça, que ele admitia possuir, fosse absolutamente necessária. Ele a
considerava apenas como um meio mais fácil de cumprir os mandamentos divinos.
Este terceiro estado é confirmado pelas próprias palavras de Pelágio, conforme
relatadas por Agostinho no livro "De Gratia Christi contra Pelagium et
Caelestium", capítulo 7.
Mesmo que Pelágio tenha admitido a
graça interior para possibilitar a obediência ao livre arbítrio, ele a
considerava como algo que Deus mostra e revela, indicando o que devemos fazer,
mas não como algo que Deus concede e ajuda para que possamos agir. O argumento
de Agostinho é eficaz: a adoração não é devida à revelação da lei e da doutrina
apenas exteriormente, pois isso pode ser feito pelo ministério de um homem ou
de um anjo. Portanto, ao confessar que o Espírito Santo deve ser adorado porque
Ele nos revelou a doutrina, Pelágio está, por consequência, afirmando que o
Espírito Santo fala por meio de uma revelação interna, na qual somente Deus
instrui sobre o que deve ser feito e evitado.
Além disso, o próprio Pelágio, ao reconhecer que Deus opera em nós o desejo do que é bom, e enquanto estamos dedicados às paixões carnais, ele nos inflama com uma promessa gloriosa e nos ilumina com uma graça celestial multifacetada e inefável, está claramente concedendo que Deus opera uma revelação interior. Além disso, Agostinho, no mesmo livro, capítulo 24, contra Pelágio e Caelestius, conclui: "Então, que eles leiam e entendam, considerem e entendam não apenas a lei e a doutrina que ressoam em seus ouvidos, mas também a interna e oculta, operação maravilhosa e inexplicável de Deus nos corações dos homens, não apenas verdadeiras revelações, mas também boas vontades". Concluímos, portanto, que Pelágio, apesar de suas contradições, acabou por admitir a presença de verdadeiras revelações e negar que as boas vontades vêm unicamente de Deus.
O mesmo sentido de Pelágio é
inferido do mesmo Agostinho, nos capítulos 5, 11, 14 e 47 do mesmo livro, no
qual ele conclui: "Se, portanto, ele nos conceder, não apenas a
possibilidade, mas também o desejo e a ação, então, não só podemos, mas também queremos
e agimos divinamente auxiliados, para que, sem essa ajuda, nada de bom
desejemos ou façamos. E esta graça de Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso
Senhor, na qual nos torna justos pela Sua, não pela nossa justiça, de modo que
nossa justiça verdadeira, que é totalmente deixada a Deus, nos deixará,
acredito, sem controvérsia entre nós." Sinal inequívoco de que Pelágio
admitiu a graça interior e negou a ajuda por meio da qual Deus faz com que
queiramos.
O quarto estado da heresia
pelagiana, sob seu discípulo Caelestius, reconhece que essa graça é capaz de
conferir é absolutamente necessária para alcançar a consumação das virtudes
naturais. E desta forma, ele acreditava que estava mantendo o lugar da graça.
No entanto, como não quis admitir nenhuma graça interior para começar, não
deixou de afirmar, de acordo com o dogma pelagiano, que a graça é dada segundo
o mérito. Isso é confirmado por Santo Agostinho no livro "Contra duas
epístolas dos pelagianos", capítulo 8, onde ele diz: "Eles nos
objetam que dizer que Deus inspira o homem relutante e resistente, não tanto
quanto ao bem, mas também à sua própria imperfeição, e talvez, eles de alguma
maneira, desse modo, preservem o lugar da graça, para que o homem, sem ela,
possa ter o desejo do bem, mas o desejo imperfeito; no entanto, ele não poderá
facilmente tê-lo sem ela, mas, se tiver, será o começo da graça, à qual a
recompensa será dada para que ela possa ser deles. Por meio dessa insinuação,
eles desejam que a graça não seja gratuita." Portanto, Pelágio derivava
essa conclusão: se a graça de Deus antecede os méritos humanos e faz com que
queiramos e façamos o bem de bom grado, a liberdade do livre arbítrio humano é
destruída, e uma necessidade fatal é introduzida.
Pelágio frequentemente opôs essa
objeção a Santo Agostinho, como se vê no livro 2 contra duas epístolas dos
pelagianos, capítulo 5, onde Santo Agostinho responde às calúnias de Pelágio,
dizendo: "Não afirmamos que o que é dito para inverter, e resistir a Deus,
não se entenda quanto ao bem, mas também à sua imperfeição." E após citar
algumas palavras dos pelagianos, ele acrescenta: "Desses termos deles, ou
como eles pensam ou como querem ser pensados, são apresentadas como testemunhas
sob o nome de graça, porque dizem que a graça de Deus é dada não de acordo com
nossos méritos, mas de acordo com a misericórdia de Deus, que disse: 'Eu terei
misericórdia de quem eu tiver misericórdia e me compadecerei de quem eu me
compadecer'. E no livro 4 contra Julian, capítulo 8, no início, ele diz:
"Você diz que acusamos bons homens de fazerem boas ações por uma
necessidade fatal; após um curto tempo, acrescenta: "Você acusa sem razão,
nada deve ser esperado do livre arbítrio humano, contra aquilo que o Senhor diz
em Mateus 7: 'Pedi, e vos será dado; buscai, e achareis; batei, e
abrir-se-vos-á.' A mesma calúnia foi oposta a Jerônimo, como ele mesmo relata
na epístola a Ctesifonte contra os pelagianos, no versículo: 'Mas o que
está embaixo e acima está distante, destrói o livre arbítrio e a liberdade do
arbítrio humano'."
Daqui Pelágio deduzia, com
sucesso, que quando o Apóstolo diz em Filipenses 2 que "Deus opera em nós
tanto o querer quanto o efetuar", isso se refere à operação por meio da
iluminação da mente e da excitação da vontade perplexa, pela qual Deus persuade
que o que é bom é feito. Isso é mencionado por Santo Agostinho no livro "De
Gratia Christi Contra Pelagium et Cœlestium", capítulo 10, e na
Epístola 107 a Vitalis, pouco depois do início, no versículo: "O que
significa, então, que o Apóstolo diz que Deus opera em nós tanto o querer
quanto o efetuar".
Além disso, os pelagianos inferiam
em terceiro lugar que a causa da divina predestinação era dada em parte pelos
méritos próprios, ou seja, pelos méritos previstos, iniciados pelas forças da
natureza. Santo Agostinho atribui esse erro aos pelagianos no livro "De
Praedestinatione Sanctorum", capítulo 18, e São Tomás, na "Summa
Theologica", questão 9, artigo 23, na resposta ao incorpóreo. Este ponto é
mencionado por Santo Agostinho na Epístola 106, onde ele relata doze erros dos
pelagianos.
Finalmente, é observado que Pelágio nunca negou que fosse necessário que Deus influenciasse diretamente em nós para que pudéssemos agir no curso da ordem natural. No entanto, ele negou apenas que fosse necessário o auxílio de Deus para operar, para que pudéssemos operar, porque ele acreditava que a liberdade do arbítrio seria destruída se o homem não pudesse fazer nada sem Deus movendo e operando antes dele. Pelágio sabia muito bem que se o auxílio e o concurso de Deus fossem posteriores à determinação do arbítrio criado, de modo que a causalidade fosse verdadeiramente assim: "Porque Deus opera em nós, coopera o homem", a liberdade do mesmo arbítrio não seria prejudicada. Muitos doutores, especialmente aqueles instruídos na doutrina de Santo Agostinho, como Gaspar Casius Combricense, que participou do Sagrado Concílio de Trento, afirmam expressamente que Pelágio nunca negou a influência geral de Deus. As palavras de Casius são estas: "Pelágio não negava a influência geral. E um pouco depois: Ele confessava, é verdade, a graça da criação, na natureza humana, na vontade humana, e a influência geral de Deus comum a todos os gentios. Depois de algumas palavras: Ele nunca negou que a influência geral fosse necessária para que os homens façam o bem? Até agora não se sabe, nem se acredita sobre ele; porque ele não poderia ter conhecimento se ele mesmo não fosse primeiro iluminado. Como pode a causa secundária ser operada sem o concurso da causa primeira? Supondo, mesmo sem conceder, que Pelágio não tenha admitido a influência geral de Deus, não há dúvida de que admitiu o concurso ou auxílio de Deus subsequente à determinação da vontade criada, como evidenciado pelos lugares de Santo Agostinho mencionados anteriormente. Portanto, o mesmo Agostinho, no Enchiridion a Laurentio, capítulo 32, claramente pressupõe que os pelagianos pensavam que, por causa do dito, "É Deus quem opera em nós tanto o querer quanto o efetuar", deveria ser entendido que "É Deus quem quer e faz".
ALVAREZ, Diego. De auxiliis divinae gratiae et humani arbitrii viribus et libertate, 1621
[1]
A expressão usada por Álvarez aqui em latim é “quiam dixetum”, geralmente era
usado para iniciar uma apresentação das ideias do oponente. Nos debates acadêmicos,
é comum esses termos serem usado para mostrar a ideia ou descrição de algum pensamento
sem definitivamente designar a autoria destes, o uso aqui não se refere ao
pensamento de Pelágio em si, mas a leitura que os seus contemporâneos nos
legaram.
[2]
Se refere à graça (gr. χάρις) divina que atua no âmbito interno do indivíduo,
influenciando aspectos como a espiritualidade, a mente ou as disposições
internas. Esse termo é frequentemente utilizado entre os escolásticos nas discussões
teológicas sobre a relação entre a ação divina e a vontade humana,
especialmente em debates sobre questões como a predestinação, a natureza da
graça e a liberdade de escolha.
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