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DO MITO À FILOSOFIA??

 A filosofia é o exercício contínuo da razão sobre a realidade, em ordem a investigar os princípios mais fundamentais a partir dos quais as coisas existem e operam, bem como os fins para os quais se orientam. A definição apresentada tem por intenção destacar quatro aspectos em que a filosofia se fundamenta. O primeiro aspecto trata-se de sua humanidade, há uma relação entre a filosofia e o ser humano, dado que este é um animal de alma investigativa. Aristóteles em sua Metafísica, dirá logo no início que todos os homens por natureza propendem ao saber. Isto é parte da Imago Dei, quando o profeta Moisés destaca que o homem foi criado para submeter todas as coisas à sua autoridade [razão pelo qual ele nomeia todos os animais], as virtudes morais que são comunicadas por Deus na natureza humana, juntamente com a racionalidade, promove este caráter investigativo no homem para os fins que lhe foi determinado. Em segundo lugar, o fundamento da contínua investigação coexiste de dois modos: (1) interno, isto é, uma atividade que acompanha a experiência do indivíduo pensante; (2) externo, isto é, histórico, onde o indivíduo se insere na história do pensamento humano, ora absorvendo as ideias de seus antecessores, interagindo com elas e, de algum modo, as confrontando. De alguma forma, a experiência individual e a sua ingressão na história do pensamento são expressões do conceito de continuidade que a definição destaca. Um terceiro elemento encontra-se no objeto da filosofia. Os conflitos e dilemas que os filósofos formulam dizem respeito, em última análise, ao modo como a realidade é constituída e apreendida. Assim, investigam-na em sua estrutura móvel (física), examinando as mudanças, o movimento e as leis que regem o mundo sensível; em sua essência (metafísica), buscando compreender o ser em si mesmo, suas causas primeiras e finais; e em sua concepção no intelecto (lógica), ao estudar as formas do pensamento, os princípios do raciocínio e a validade das inferências. Mas o exame não se limita ao mundo externo ou ao pensamento abstrato: ele penetra também no íntimo da alma. A filosofia volta-se para a vida anímica (psicologia), interrogando-se sobre as faculdades racionais, volitivas e afetivas, bem como sobre a relação da alma com o corpo; analisa o próprio ato de conhecer (epistemologia), questionando a possibilidade, os fundamentos e os limites do saber humano; e, por fim, reflete sobre as consequências práticas desse conhecimento, seja no âmbito da conduta pessoal (ética), da organização coletiva (política e econômica) ou da relação última do homem com o transcendente (teologia). Fica evidente que os aspectos de ordem mais específica e particular das ciências mencionadas pertencem propriamente ao domínio das ciências particulares como a biologia, a geologia e outras disciplinas correlatas. Essas, de fato, investigam a realidade não em busca de seus princípios primeiros e universais, mas a partir deles, aplicando tais fundamentos ao estudo de objetos determinados e limitados do mundo natural. Por esta razão, por incrível que possa parecer, concordo com Gordon Clark em sua afirmativa de que a filosofia deu à luz às ciências particulares.
Dada a definição apresentada, torna-se evidente que a mobilidade das coisas, a sua unidade essencial, bem como a capacidade do intelecto humano de adequar-se a elas, seja por meio de conceitos, afirmações, raciocínios ou qualquer outro exercício cognitivo, já existiam antes mesmo do surgimento formal da filosofia. Todavia, tais realidades, embora vividas e experimentadas, não eram alvo de uma reflexão metódica ou de um questionamento sistemático. A consideração sobre esses elementos era, em grande parte, prática e imediata, voltada para a sobrevivência e para as demandas cotidianas, sem alcançar uma consciência crítica acerca dos princípios que os sustentam. Nesse contexto, a mitologia exerceu um papel de relevo e longe de ser apenas um erro ou uma ilusão coletiva, o mito representou a primeira tentativa de interpretar a realidade em chave transcendente, oferecendo respostas narrativas e simbólicas para os dilemas existenciais, estruturando a experiência humana e fornecendo um quadro de sentido em que o mundo, a natureza e a vida social podiam ser compreendidos, e ainda que suas explicações fossem parciais e muitas vezes carregadas de elementos fabulosos, cumpriam uma função pedagógica: catequizavam o imaginário, despertavam o senso de ordem e transmitiam a intuição de que o mundo está ligado a um princípio superior. Além disso, outras dimensões mais complexas da realidade, como a estrutura interna da alma, a natureza do conhecimento ou os fundamentos da moral, permaneciam quase invisíveis, eclipsadas pelas urgências concretas e pelas lutas inerentes ao simples ato de viver.
O aspecto mitológico no qual as civilizações antigas nasceram é frequentemente interpretado, por parte de muitos historiadores da filosofia, como uma expressão involutiva e até mesmo desprezível da condição humana. A crítica repousa, em primeiro lugar, no fato de que grande parte dos mitos estava vinculada a divindades e estruturas de poder e autoridade que se sobrepunham ao próprio homem, legitimando práticas e sistemas sociais que restringiam sua autonomia. Em segundo lugar, sustenta-se que o mito demonstrava certa incapacidade de lidar com os aspectos mais complexos da realidade sob uma perspectiva transcendental, oferecendo, assim, uma impressão de minimalismo ou simplificação excessiva diante de problemas que, mais tarde, seriam tratados com maior rigor pela lógica e pela razão.
Consequentemente, esse gênero narrativo foi gradualmente relegado à esfera do imaginativo, sendo tolerado enquanto expressão cultural, mas rechaçado nos círculos científicos, acadêmicos e filosóficos. Contudo, para nossa surpresa, a rígida distinção que hoje estabelecemos entre narração mito-poética e discurso dissertativo-lógico não existia entre os principais filósofos da Grécia Antiga. O que se tinha, antes, era o critério do verdadeiro e do falso. Basta notar que, no pensamento pré-socrático, ainda predominava uma estrutura de caráter imaginativo e narrativo ou poético, sem que isso fosse considerado incompatível com o exercício da razão. Platão, por sua vez, não desprezou os poetas, mas os utilizou criticamente; e, mesmo quando Aristóteles, com sua genialidade, estabeleceu uma separação entre os gêneros poético e filosófico, não descartou o primeiro como veículo formativo do homem. A grande verdade é que nunca houve uma transição da narrativa mito-poética para o discurso dissertativo-lógico, mas uma sobreposição desta para com aquela, em que ambas passam a se tornar modos distintos de enxergar a realidade.
Esse entrelaçamento entre narrativa e reflexão não se restringiu ao mundo pagão. Pode-se percebê-lo claramente também na pedagogia de Jesus Cristo. Em um contexto helenizado, no qual as figuras filosóficas já eram conhecidas inclusive entre os hebreus, o Senhor recorreu constantemente ao discurso narrativo, seja no apelo aos profetas antigos, seja na forma de parábolas, cuja eficácia repousava na força do imaginário coletivo. Tal recurso nunca deixou de exercer fascínio no espírito humano, pois é próprio do homem abstrair da história e da narração valores e intenções que lhe são inerentes. Essa marca, perceptível na literatura antiga, permanece viva até hoje, não apenas nos livros, mas também no cinema e na música, confirmando que o poético continua sendo um dos modos mais genuínos de formar, transmitir e preservar verdades universais.
A rejeição na modernidade foi inevitável, como eu disse, o mito estava intrinsecamente ligado a divindades e a estruturas de poder que ultrapassam nossa condição natural de controlar a realidade, algo que o humanismo, desde cedo, passou a detestar. Essas divindades, uma vez introduzidas na explicação do mundo, impunham por necessidade uma autoridade transcendente que exigia de nós, pobres mortais, obediência perfeita e absoluta, e conforme o modo determinado por tal divindade. O iluminismo e o ateísmo, por sua vez, repeliram veementemente tal exigência. Contudo, ao rejeitar o mito, rejeitou-se também toda referência explícita ao transcendente. Dessa forma, esferas mais complexas do saber humano, como a psicologia e a ética, foram progressivamente reduzidas ao âmbito puramente natural, numa tentativa de eliminar qualquer elemento que evocasse a dimensão superior que a realidade inevitavelmente impõe. Esse movimento desembocou no materialismo, que reconstruiu a teleologia não mais a partir de um fim objetivo, mas com substitutos frágeis: de um lado, o imperativo categórico kantiano, que sustenta a moralidade apenas na forma e sem fundamento ontológico; de outro, o ideal absoluto da dialética hegeliana, que dissolve a finalidade no processo histórico. Assim se ergueu toda a estrutura do pensamento contemporâneo: ou edificada sobre a negação do verdadeiro transcendente e sua substituição por sucedâneos racionais, ou, no extremo oposto, sobre a completa dissolução da objetividade moral, lançando no vazio toda noção de propósito e finalidade.
Se, por um lado, o mito jamais desapareceu por completo da formação do homem, por outro, com o advento do cristianismo ele perde algo fundamental: a autoridade. Em sua essência, o mito não passa de uma explicação transcendental imperfeita, presente entre os povos pagãos aos quais a revelação não foi transmitida de modo a esclarecer a verdade acerca do Deus vivo. Sua função, em certo sentido, foi apenas manter tais povos em alguma proximidade com os princípios morais mais elevados, ainda que de forma obscura. Israel, ao contrário, recebeu de Deus as tábuas da lei e estreitou a aliança com o Todo-Poderoso, tendo a revelação como guia seguro. Os pagãos, privados dessa revelação, buscaram aproximar a noção de divindade a partir de um processo de humanização. As perfeições divinas foram fragmentadas em múltiplos deuses, marcados por sentimentos e paixões caóticas, dependentes e derivados da própria natureza. E, à medida que o homem percebia nas divindades a sua própria imagem e semelhança, com as mesmas virtudes e vícios, começava também a questionar a legitimidade de sua autoridade: seriam esses deuses realmente superiores? Seriam eles, de fato, conhecedores das realidades transcendentais às quais os poetas os vinculavam, justiça, amor, bondade e sabedoria? Os primeiros filósofos (como Xenófanes) já criticavam a imoralidade dos deuses homéricos. Terá sido eles que deram início a todas as coisas? A partir daí, diante de uma sociedade um pouco mais avançada em sua estrutura social e econômica, as questões mais polêmicas tornaram-se mais necessárias para responder estas questões. De modo geral, o mito é uma expressão imperfeita de respostas transcendentais que as civilizações antigas tentaram elaborar a partir de uma noção comum de divindade que eles abstraiam da própria natureza.

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