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terça-feira, 12 de agosto de 2025

A CESSAÇÃO DA PROFECIA ANULA O USO FEMININO DO VÉU? DE MANEIRA NENHUMA


Resposta ao apóstolo da teologia de boteco, o conhecido cessacionista patético brasileiro.

Método: Não vislumbro outro modo de expor uma posição e oferecer-lhe a devida resposta senão nos moldes de nossa ilustre tradição, a qual sempre soube lidar com disputas teológicas contra os mais diversos opositores e detratores. A diferença é que, outrora, a grandeza e a destreza das objeções eram ricas em significado lógico e teológico, riqueza esta que tanto carece em muitos que hoje levantam questões polêmicas e respondem de si mesmo sem amparo em piedade alguma transmitida no passado. Seguirei a seguinte ordem: (1) exporei as objeções de meu oponente (videtur quod); (2) em seguida, apresentarei uma breve contradita, que servirá de base para minha resposta (sed contra); (3) por fim, concluirei respondendo às três objeções possíveis.

O uso da cobertura por parte da mulher cessou? Parece que sim,

Pois o Apóstolo diz: “Toda mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a sua cabeça” (1Co 11.5). Ora, a profecia e as línguas estão enumeradas entre os dons carismáticos temporários (cf. 1Co 12.10), os quais, segundo 1Co 13.8, “hão de cessar”. Logo, cessando tais dons, cessa também a obrigação ligada a eles.

Contudo,

O mesmo Apóstolo fundamenta o uso do véu na ordem da criação ao dizer que “o homem não deve cobrir a cabeça, pois é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem” (1Co 11.7), e ainda apela à presença dos anjos (v. 10) e ao costume das igrejas (v. 16). Ora, princípios de criação e da adoração celestial são permanentes, não cessando com dons temporários. Logo, a obrigação não se vincula essencialmente à profecia.

EXPOSIÇÃO DOS ARGUMENTOS

Em primeiro lugar, devemos abstrair a razão intrínseca do argumento cuja proporção o objetor estabelece ao fazer cessar o uso do véu por haver nele uma relação textual com a profecia. Tal razão se encontra no seguinte princípio: se uma instrução bíblica se apresenta no contexto de dons carismáticos temporários, ela só é válida enquanto tais dons existirem. Não é injusto abstrairmos esse princípio, pois, se não fosse assim, qual seria o fundamento para negar o uso do véu pelo simples fato de o dom de profecia ter cessado? Ora, não foi o próprio opositor que afirmou, valendo-se do texto bíblico, que “a mulher que ora e profetiza” deve usar véu, e, logo em seguida, concluiu que, tendo cessado tal dom, o uso do véu se tornou inválido? Que injustiça, então, haveria no princípio de razão intrínseca que infiro da explicação desse opositor? Quero crer que fui justo em considerá-lo, sem qualquer desonestidade.

Contudo, tal princípio de razão intrínseca revela-se falso, pois contradiz as próprias convicções do próprio objetor. Pois, pelo mesmo critério, o silêncio feminino nas assembleias (1Co 14.34-35) também se encontra no contexto dos dons carismáticos (capítulos 12–14). Se a obrigação do uso do véu caiu em decorrência do cessar da profecia, então igualmente cairia a proibição de falar para as mulheres. Além disso, a ordem e a edificação no culto (1Co 14.26-40) estão inseridas nesse mesmo contexto; logo, poderíamos abolir a necessidade de ordem na reunião, uma vez que as orientações estariam vinculadas a dons que cessaram. Da mesma forma, a Ceia do Senhor (1Co 11.17-34), ensinada dentro do mesmo bloco de práticas cultuais, poderia ser considerada “contextual” e, portanto, não mais obrigatória. Talvez alguém o defenda, alegando que meu raciocínio é falacioso por não considerar as especificidades de cada caso. Contudo, respondo com a mesma objeção: o autor reduz o uso do véu ao dom da profecia, sem levar em conta, sequer na mesma sentença, a razão subjacente, a oração, que é um elemento ordinário e mandamento explícito, nem o argumento da ordem criacional que Paulo estabelece (vv. 7-9), onde se fundamenta a distinção entre honra e desonra mencionada no texto (v. 3). Tampouco considera a relação do uso do véu com a presença dos anjos (v. 10) e, pasme, o costume da igreja, que Paulo deixa claro não ser objeto de contenda (v. 16). É curioso observar como certos argumentos se sustentam em visões tão estreitas que fariam inveja a um microscópio mal calibrado. Restringir a discussão a um único versículo, desconsiderando o contexto imediato e os fundamentos complementares, revela não apenas um desleixo hermenêutico, mas também uma superficialidade preocupante. E já que o objetor insiste em limitar sua abordagem a esse fragmento isolado, permitam-me descer ao seu nível retórico, não para me rebaixar, mas para desmascarar esse sofisma primário e deixar claro que tal argumento não procede de um verdadeiro teólogo, pelo menos, não quando o contexto é cuidadosamente considerado. Aqui quero me alongar um pouco para mostrar como esse princípio revela ainda mais o quão infundado se mostra meu opositor enquanto professor de teologia, pois ele sequer considerou que a associação entre duas coisas pode ocorrer de modos diversos, segundo a lógica mais básica: (1) per se, por uma necessidade essencial, isto é, a associação ocorre quando uma coisa depende completamente de outra para existir ou ter valor; (2) per accidens, por uma razão concomitante, circunstancial na relação, explicando, elas estão associadas por coincidência no tempo ou contexto, mas uma não depende da outra para existir ou ter valor. São coisas que podem ocorrer juntas, mas não são essencialmente ligadas; (3) per institutionem, de dependência institucional, ou seja, a associação ocorre quando uma coisa é formalmente estabelecida como parte essencial de outra por uma regra, norma ou instituição; (4) per significationem, de sinal ou coisa significada, essa associação ocorre quando um sinal (como um símbolo ou ritual) aponta para uma realidade maior. O sinal tem sentido porque representa essa realidade. Se a realidade que o sinal representa deixa de existir, o sinal perde seu propósito ou significado, a menos que seja reinterpretado ou reinstituído de outra forma. Dado estas regras claras de relação, voltemos ao argumento do opositor que faz uma relação direta do uso véu com o dom de profecia.

Caro leitor, essa relação pode ser per se, isto é, essencial? De maneira nenhuma, pois se assim fosse, os homens também deveriam usar véu, algo que o texto claramente nega. Seria, então, uma associação per accidens? Poderíamos, sim, admitir essa possibilidade se a referência à “mulher que ora e profetiza” fosse uma descrição literal do que acontecia na igreja primitiva. Contudo, creio que Paulo emprega essa expressão numa relação retórico-argumentativa com o versículo anterior (“todo homem que ora e profetiza”, v. 4). Assim, há duas possibilidades: ou Paulo não se refere ao exercício público da mulher no culto, mas a outro momento específico, conforme Calvino explica, quando diz que “o apóstolo espera das mulheres conduta modesta não só no local onde toda a congregação se reúne, mas também em outras reuniões formais, como as domésticas”; ou então está usando uma situação hipotética. No primeiro caso, a associação seria per accidens, mas tal associação não sustenta a ideia de que, cessando o dom da profecia, cessa também o uso do véu. Poderia ser uma associação per institutionem? Tampouco, pois o próprio apóstolo, capítulos depois, proibirá a mulher de falar no culto, associando a fala à autoridade e fundamentando-se na autoridade veterotestamentária (1Co 14.34), algo que demonstrarei com mais detalhes adiante. Por fim, restaria a associação per significationem; porém, essa também não procede, pois o véu não é um sinal da autoridade feminina no exercício de orar e profetizar, mas um símbolo de submissão. Vejam meus queridos, é notório que tais distinções são basilares, não apenas para a lógica mais elementar, mas para qualquer tratamento sério da teologia. No entanto, é deveras curioso e até digno de certa compaixão que o opositor nem ao menos se dê ao trabalho de considerá-las. É como se, num tribunal de lógica e exegese, ele aparecesse munido apenas de um martelo e, diante da complexidade das questões, decidisse que tudo se resume a pregar pregos, desconsiderando ferramentas básicas como o nível, a régua e o compasso. Assim, amigos e leitores atentos, somos convidados a testemunhar esse triste espetáculo. E, se alguém supõe que a célebre frase de Spurgeon, “chegará o dia em que, em vez de pastores alimentando ovelhas, teremos palhaços entretendo bodes”, aplica-se apenas aos pentecostais, engana-se redondamente. Tal realidade manifesta-se também entre os reformados, com uma diferença sutil: enquanto alguns pentecostais simplificam a sã doutrina (isto quando a ensinam) na prática, certos reformados a empobrecem no intelecto. Que Deus, em sua infinita graça, ilumine as mentes daqueles que se perdem nesses desvios e os reconduza ao caminho firme da razão e da tradição. Porém, como mencionei inicialmente, limitei-me a desmontar a razão intrínseca do argumento, que serve de alicerce para o castelo de areia que o opositor, com ousadia ingênua, tentou erguer. Agora que a base foi varrida pela maré da lógica, sigamos adiante para desmantelar os frágeis torreões que ainda restam, antes que essa construção precária desmorone por si só, deixando apenas um rastro de constrangimento maior do que qualquer refutação bem articulada poderia causar.

O uso do véu como signo da submissão feminina

Ao examinarmos as Escrituras, percebemos que o véu está intrinsecamente ligado à submissão, sendo uma das expressões mais claras de modéstia e honra feminina. No Antigo Testamento, encontramos esse padrão no exemplo de Rebeca que, ao avistar Isaque ao longe, “tomou o véu e se cobriu” (Gn 24.65). Até mesmo as prostitutas da antiguidade oriental, como deduzimos do relato de Tamar, usavam o véu em certos contextos. Cansada de esperar pelo filho de Judá, Tamar “despiu as vestes de sua viuvez, cobriu o rosto com um véu e se disfarçou” (Gn 38.14). Judá, ao vê-la, “teve-a por meretriz, pois ela havia coberto o rosto” (Gn 38.15). Da mesma forma, ao profetizar a queda da Babilônia, Isaías declara: “Tira o teu véu” (Is 47.2), associando esse ato, no versículo seguinte, à vergonha que seria revelada (Gn 47.3). Esses exemplos evidenciam que o véu simbolizava modéstia e respeito, refletindo a submissão exercida pela mulher. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo, dirigindo-se à comunidade gentílica de Corinto, escreve: “Eu vos louvo porque, em tudo, vos lembrais de mim e retendes as tradições, assim como vo-las entreguei” (1Co 11.2). Esse elogio, surpreendente em meio às muitas críticas que Paulo dirigiu e ainda dirigiria àquela igreja, pode ser comparado a um teólogo de Westminster que, ao observar uma igreja presbiteriana em seu culto, começasse por elogiá-la por sua adesão à Confissão de Fé e aos catecismos, antes de apontar, com severidade, a hipocrisia e a desobediência em relação ao que foi ensinado. Contudo, um ponto crucial emerge aqui: o que Paulo apresenta a seguir não é apenas uma prática local, mas uma tradição e um costume observado em todas as igrejas de Deus (1Co 11.16).

Será que o nosso sapientíssimo opositor percebeu a clara noção de transmissão de costumes e tradições no texto de Paulo? O apóstolo inicia o discurso da perícope tratando de “tradição” e o encerra apontando para a mesma direção, recurso que, na exegese, se denomina envelope. Se alguém quiser interpretar o versículo inicial como uma referência ao modo como aquela igreja se comportava no passado, interpretação seguida por Calvino, não me atreverei a dirigir-lhe críticas severas; afinal, não ouso falar de forma leviana contra um exegeta de tão alta estatura. Pelo menos tento. Ainda assim, concordo mais com outra posição: a de que Paulo emprega ironia justamente para introduzir o assunto do véu e, ao final, pelo próprio conteúdo dessa ironia, confirmar e autenticar a prática do seu uso. Contudo, atentem para isto: quando o nosso ilustre opositor relaciona o uso do véu ao dom de profecia, anula por completo o sentido da submissão que o véu sinaliza, pois, a profecia é, em si mesma, uma expressão de autoridade e, segundo a sua própria definição, nada menos que a recepção de uma revelação divina. Nisso, admito que concordo com ele; ainda que, mesmo aqui, seja visível como empobrece o significado, até porque ele lê as Escrituras como quem monta um quebra-cabeça de 1.000 peças com apenas 3 na mesa… e ainda se gaba de ter visto o quadro inteiro, chega até dizer que ninguém jamais estudou como ele. Concordo: ninguém realmente estudou assim, e há bons motivos para não repetir a experiência.

Ora, é certo que Paulo afirma: “Ele mesmo [Cristo] concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres” (Ef 4.11). Notem que todos esses ofícios estão intrinsecamente ligados à Palavra. A Escritura também declara: “O que profetiza fala aos homens edificando, exortando e consolando” (1Co 14.3). E, no mesmo contexto, o apóstolo equipara o dom de profecia à instrução, ao dizer: “Prefiro falar na igreja cinco palavras com entendimento, para instruir outros, a falar dez mil palavras em outra língua” (v.19). Portanto, é correta a visão do objetor de que a profecia consiste na comunicação e transmissão de revelação. Concordo. Contudo, essa transmissão pode ocorrer tanto de forma extraordinária quanto ordinária. Ou seja, ainda que o dom extraordinário (revelação imediata) tenha cessado, a função ordinária de “profetizar” (ensinar, exortar e consolar pela Escritura) permanece viva e necessária na Igreja por meio de seus ministros. Seja qual for a objeção que o opositor levante, ele terá de negar o sentido ordinário do dom para atingir a minha definição. Timóteo recebeu de Paulo a seguinte exortação: “Até à minha chegada, aplica-te à leitura, à exortação, ao ensino” (1Tm 4.13). Aqui, o apóstolo ordena que o evangelista leia publicamente as Escrituras e as pregue à Igreja. Tanto que prossegue: “Não negligencies o dom que há em ti” (v.14). Não esqueçamos que Paulo está instruindo um pastor, naquele contexto, sobre como proceder “na casa de Deus” (1Tm 3.15), ou seja, no culto público. O mesmo padrão se vê quando Paulo entra na sinagoga de Antioquia da Pisídia, as Escrituras dizem que “Depois da leitura da Lei e dos profetas, os chefes da sinagoga lhes mandaram dizer: Irmãos, se tendes alguma palavra de exortação para o povo, dizei-a” (At 13.15). Observem: em um culto público, a leitura das Escrituras era seguida por palavras de exortação. E o texto prossegue: “Paulo, levantando-se e fazendo com a mão sinal de silêncio, disse...” (v.16). Sabemos que Paulo pregou o que lhe fora revelado e, ao fim, foi convidado a continuar pregando ali. Compare-se isso com a regulamentação que o próprio apóstolo dá ao culto cristão: “Se, porém, vier revelação a outrem que esteja assentado, cale-se o primeiro” (1Co 14.30), e a menção, logo em seguida, à instrução e consolação.

Em um determinado momento, reagindo a um vídeo do Rev. Hernandes Dias Lopes, o opositor recorreu ao verbo grego ποκαλύπτω para sustentar que, por associação a Ef 3.3-5, a profecia deveria ser entendida exclusivamente como algo imediato e totalmente novo, e não, nas palavras dele, como “saber as informações que se vai transmitir a partir do texto revelado”. Ora, se esse raciocínio fosse seguido à risca, qualquer pessoa minimamente inteligente se tornaria continuísta ao perceber que o termo também é usado para a iluminação dos eleitos de Deus (Mt 11.25-27); para expor a hipocrisia legalista (Lc 12.2); para a manifestação visível do Filho de Deus (Lc 17.30) e do filho da iniquidade (2Ts 2.3); para um esclarecimento divino diante de nossa imperfeição (Fp 3.15); e até em relação direta com a pregação (Jo 12.38; 1Co 2.10). Sim, é verdade que o termo ποκαλύπτω pode, em certos contextos, referir-se a uma revelação imediata, nova e extraordinária (Gl 1.16; Ef 3.5; 1Pe 1.12). Mas seu sentido é mais amplo: significa manifestação clara, evidente e inegável — e não se limita a fenômenos extraordinários. Restringi-lo exclusivamente ao aspecto milagroso é amputar o campo semântico do termo. A ironia é que a situação fica ainda mais constrangedora para o ilustre opositor quando ele próprio lê em seu catecismo (o que, aliás, prova que antes de se aventurar na teologia polêmica convém ser devidamente catequizado) que Cristo exerce a função de Profeta “revelando à Igreja, em todos os tempos, pelo seu Espírito e Palavra, por diversos modos de administração, toda a vontade de Deus em todas as coisas concernentes à sua edificação e salvação” (CMW, questão 43). Pergunto: o ofício profético de Cristo cessou, então? [para saber mais do dom de profecia, vá ao meu artigo sobre o cessacionismo] Evidentemente que não. O que cessou foi apenas o aspecto extraordinário pelo qual apóstolos e profetas lançaram o fundamento da Igreja. Novamente, quero advertir, especialmente os que estão dando os primeiros tropeços na teologia, e mais ainda o meu nobre opositor: se a sua “teologia” se sustenta apenas em um ou dois versículos arrancados do contexto, faça um favor a si mesmo (e ao mundo): jogue essa tralha no lixo. Doutrina bíblica de verdade não é coleção de figurinhas de versículos, mas compreensão da progressividade da revelação, da unidade pactual, dos elementos de continuidade e descontinuidade entre as administrações do pacto. Ignorar o conjunto das Escrituras para abraçar meia frase isolada fará de você exatamente isso: um mau teólogo… e, pior ainda, um mau teólogo confiante. Quer desgraça maior que essa? É como querer julgar um banquete apenas pelo cheiro do guardanapo, e ainda sair convencido de que é chef.

Voltamos ao texto, e lemos que “o homem que ora e profetiza” e, à luz do contexto mais amplo das Escrituras e do pensamento paulino, fica evidente que ele está falando aqui dos ministros, sejam os que exercem a função ordinária ou extraordinariamente. Quando a situação das viúvas começou a exigir demais da Igreja, os apóstolos instituíram o diaconato dizendo “quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da Palavra” (At 6.4) e, claramente isto se estende aos ministros que assumem a função apostólica, ainda que não tenha a singularidade deste ofício e nem os mesmos dons resultantes deste ministério fundacional, mas eles são chamados “despenseiros dos mistérios de Deus” (1Co 4.1) e administram os sacramentos, assim como os ministros (Mt 28.18-20), pelo que a função de profecia é de autoridade. Por esta razão, o versículo que diz “a mulher que ora e profetiza” ou trata-se de um artifício retórico apenas para ilustrar o ponto que Paulo quer demonstrar ali, ou se trata de como a mulher deve-se comportar em outras situações fora do culto solene, fico com o primeiro, Calvino fica com o segundo.

CONCLUSÃO

Acredito que até aqui foi o suficiente para demonstrar o erro e proclamar a verdade, mas ainda há uma coisa muito importante a ser dita para calar a voz do engodo abjeto que tem sido defendido como verdade, o uso do véu procede da esfera natural, por mais corrompida que ela estivesse sido. O nosso querido objetor sente um gosto de mel na boca ao ter que ler “porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva” (1Tm 2.13) e não hesitará em dizer que há um princípio criacional aqui que impede que mulheres exerçam autoridade, falando no culto público, para o ensino da Igreja. Ele não considerou que Paulo usa o mesmo argumento criacional ao defender o uso do véu na Igreja de Corinto? Isto também serve a todo e qualquer incoerente reformado que rejeita o uso do véu na atualidade, Paulo não apela para a questão cultural, mas para a criação. E assim como é vergonhoso ao homem uso comprido do cabelo, semelhantemente a mulher é vergonhoso não usar o véu. Ora, creio que de tudo o que foi dito aqui, o cerne da objeção de nosso opositor foi respondido, creio que com sucesso. E se o senhor, opositor, chegou até o final deste artigo sem rir de minhas respostas, talvez seja porque percebeu que, desta vez, quem estava sendo motivo de riso era o senhor mesmo, todavia se agora o senhor riu ótimo! Significa que, mesmo quando está perdendo, o senhor ainda consegue se divertir, embora, nesse caso, o palhaço não seja eu. Perdoe-me, caro leitor, o tom adotado; mas não posso rebaixar a doutrina da verdade apenas para poupar a suscetibilidade de alguém cujo caráter demonstra que o próprio ego lhe é mais precioso que qualquer confronto genuíno e bem-intencionado.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

DA REPROVAÇÃO DIVINA, POR JOHANNES MACCOVIUS


LOCI COMMUNES, cap. XXVII, De reprobatione

A reprovação é o decreto eterno de Deus, pelo qual, desde a eternidade, segundo o seu puríssimo beneplácito, Deus determinou permitir que certos indivíduos, que lhe eram possíveis de serem criados, caíssem em pecado, permanecessem nesse estado de queda e fossem eternamente condenados.

O objeto da reprovação, sob a perspectiva do seu fim, conforme está na intenção divina, é o homo creabilis, passível de queda.

Demonstro isso com as seguintes razões:

I. Deus permitiu o pecado com um propósito definido. Portanto, antes que o homem pecasse, ele já estava ordenado a um fim, ao qual se chega por meio do pecado. Ora, pelo pecado, chega-se (a menos que Deus nos liberte por meio de Cristo) à morte eterna. Logo, a morte eterna será o fim da reprovação. Assim, alguns homens foram ordenados à morte eterna antes mesmo do pecado. Inversamente, se foram ordenados, então foram considerados ou como já criados ou como possíveis de serem criados. Não antes disso, pois isso implicaria agir sem um propósito definido. Portanto, tal ordenação ocorre posteriormente.

II. Deus imputou o pecado de Adão a toda a posteridade humana que dele descende naturalmente. Logo, Ele o fez com um fim determinado. Mas que fim poderia ser atribuído, senão que Deus decretou que a pena de alguns manifestasse a sua justiça, enquanto a libertação de outros da pena revelasse a sua misericórdia, antes mesmo do pecado? Assim, Deus quis manifestar a sua misericórdia ou a sua justiça, considerando os homens ou como já criados ou como possíveis de serem criados, não antes disso, como se fosse antes da manifestação; portanto, tal decreto é posterior.

Sob a perspectiva do fim, conforme se manifesta na execução, o objeto da reprovação é o homo condendus, criado, permitido a cair em pecado e já caído.

Demonstramos isso com base em Romanos 9, onde se diz que há vasos preparados para a destruição. Se são preparados para a destruição, logo são criados; e, se criados, Deus, ao criá-los, também decretou criá-los, pois Deus não realiza nada no tempo que não tenha decretado desde a eternidade. Além disso, se foram criados para a destruição, foram também permitidos a cair em pecado e já estão caídos. A razão é que o destino de destruição não poderia existir sem que esses eventos tivessem ocorrido.

Primeira objeção: Não se pode deduzir do texto que os vasos foram preparados para a destruição por Deus. Resposta: Ao contrário, isso é claramente deduzido do versículo 21 do mesmo capítulo. Além disso, o Espírito Santo ensina isso de forma suficientemente clara em Provérbios 16: “Tudo o que Yahweh fez, fez para si mesmo, até o ímpio para o dia do mal.

Segunda objeção: Parece duro que Deus tenha criado homens para a condenação eterna. Resposta: Não se trata de questionar o que parece duro à razão humana, mas o que as Escrituras ensinam. Certamente, as Escrituras o ensinam claramente nos textos por nós indicados.

Terceira objeção: Se Deus ordenou alguns para a destruição, logo também para o pecado, uma vez que Deus não pode punir ninguém senão por causa do pecado. Resposta: Isso também é expressamente ensinado pelas Escrituras, como se vê em Atos 2:23, Atos 4:27-28, 1 Pedro 2:7-8 e na Epístola de Judas, versículo 4.

Portanto, o pecado não é a causa da reprovação.

Há controvérsia entre as partes a esse respeito, pois alguns ensinam que o pecado é, de forma absoluta, a causa da reprovação; outros, porém, fazem uma distinção e afirmam que a reprovação deve ser dividida em negativa e positiva.

Para que isso seja compreendido, é necessário saber que a reprovação negativa consiste em não ser eleito, o que se explica pelo fato de não estar inscrito no liber vitæ (livro da vida), conforme Apocalipse 13:8. Pois, assim como a nossa eleição é explicada em Lucas 10:20 por estar escrito nos céus, a reprovação é declarada por não estar escrito. Daí derivam as expressões pelas quais os réprobos são descritos como não sendo as ovelhas de Christós e não tendo sido dados a Christós, conforme João 10 e 17. Já a reprovação positiva é a ordenação para a destruição e para os meios que a ela conduzem. Que alguns são ordenados a um fim é evidente em Romanos 9:22; quanto aos meios, isso é claro em 1 Pedro 2:7-8, Romanos 9:33 e Judas 4. Alguns afirmam que o pecado é a causa da reprovação positiva, mas não da negativa. Contudo, ambos os lados erram, pois, como já demonstramos anteriormente na doutrina sobre os decretos em geral, não se pode atribuir nenhuma causa ao decreto de Deus ou à vontade divina.

De fato, há consenso entre os teólogos de que a reprovação negativa não tem nenhuma causa além do beneplácito de Deus. No entanto, muitos sustentam que a causa da reprovação positiva é o pecado. Contra esses, portanto, deve-se argumentar com os seguintes argumentos.

I. A rejeição e a reprovação, no que diz respeito aos meios de salvação, são atribuídas unicamente ao beneplácito de Deus, conforme Mateus 11:25-26. Quanto ao fim, nenhuma causa pode ser apresentada para a reprovação além do beneplácito de Deus, como se vê em Romanos 9:11 e seguintes.

II. Se Deus decretou não conceder a vida a muitos, ou decretou o contrário, ou deve ser considerado como não tendo definido nada de forma certa e afirmativa a respeito deles, o que é absurdo. Pois todos os homens, sendo criaturas de Deus, devem necessariamente ser ordenados por Ele aos seus fins. Nem mesmo um pardal ou um fio de cabelo cai na terra sem a vontade de Deus; seria, então, concebível que tantos homens se precipitassem na destruição sem o decreto e a vontade de Deus? Assim argumenta Whittaker em seu sermão Cygnea à assembleia de Cambridge sobre a predestinação, a constância da graça divina e a certeza da salvação, com base em 1 Tessalonicenses 2.

III. A reprovação é o próprio decreto de Deus. O decreto, por sua vez, é a vontade de Deus, e a vontade de Deus é o próprio Deus. Buscar, portanto, a causa da reprovação é buscar a causa do próprio Deus fora de Deus.

IV. O Espírito Santo, ao tratar desse assunto, recorre ao poder absoluto de Deus, como em Romanos 9:20. Se houvesse outra causa para a reprovação além dessa, o Espírito Santo a ela recorreria e com ela convenceria os homens obstinados.

V. A razão é extraída da Epístola aos Romanos 9. O Apóstolo, a partir da perspectiva dos que não são eleitos, pergunta: “Há injustiça da parte de Deus?” E, em seguida, “Por que Ele ainda se indigna? Quem pode resistir à Sua vontade?” Isso demonstra claramente que a vontade de Deus é a causa dessa distinção, pela qual alguns são eleitos e outros reprovados, sendo ela a única causa. Pois Deus pode, sem qualquer suspeita de injustiça, ordenar a destruição não por causa do pecado, mas porque toda a distinção depende de Sua mente e vontade, e nenhuma razão pode ser concebida para resistir a essa vontade. Perguntam, então, com que direito Deus pode se indignar? O Apóstolo não responde que Deus se indigna por causa do pecado cometido, como se o pecado fosse a causa da reprovação; antes, ensina que não se deve contender com Deus, como se dissesse: “É justo tudo o que agrada a Deus; não disputes contra Ele, pois nada alcançarás com essa contenda, exceto agravar tua condenação. Quem és tu para exigir de Deus a razão das coisas por Ele realizadas ou deliberadas?

VI. A razão é extraída do mesmo capítulo 11 da Epístola aos Romanos. Paulo exclama: “Ó profundidade (báthos)!” Isso confirma essa sentença, pois não é de tal profundidade que não possa ser penetrada a ideia de que Deus odeia os homens por causa do pecado, mesmo antes de nascerem. Pelo contrário, é plenamente compatível com a razão divina que Ele não tolere o que é contrário à Sua natureza. Também não é contrário à razão que Deus escolha, porventura, perdoar alguns, concedendo-lhes favor. A verdadeira profundidade (báthos) e abismo da distinção divina está em que alguns são reprovados sem consideração do pecado, enquanto outros, não mais dignos, são predestinados à vida e à felicidade, de modo que toda a razão da distinção seja remetida exclusivamente à vontade de Deus. Dirás: “Então a reprovação é absoluta, como afirmam os adversários.” Resposta: Se por absoluta se entende que não tem causa, concedemos que é absoluta, pois as razões que apresentamos o demonstram claramente. Mas se por absoluta se entende que não considera os meios pelos quais se executa, isso negamos. Pois Deus não condena aqueles que ordenou à destruição sem pecado, já que uma pena justa não pode existir sem uma culpa precedente. Deus, sendo justíssimo, não pode punir alguém justamente sem que este tenha pecado. Assim, Abraão, em Gênesis 18, dirige-se a Ele com estas palavras: “Destruirás também o justo com o ímpio? Longe de Ti fazer tal coisa, entregando à morte o justo com o ímpio, de modo que o justo seja tratado como o ímpio. Longe de Ti! O Juiz de toda a terra não fará justiça?” Dirás: “Não pode Deus afligir alguém, como aquele de João 9, cujos pais não pecaram, nem ele mesmo, para que nascesse cego?Resposta: Uma coisa é ser simplesmente afligido; outra é ser punido. Deus pode afligir sem causa, como se vê nesse exemplo, mas não pode punir sem causa, pois a pena é um ato do Juiz justíssimo.

VII. Aqui adicionamos, em particular, a razão enfatizada por Twisse: os méritos de Cristo são tão determinantes para a predestinação quanto os pecados de quaisquer pessoas para a reprovação. Contudo, nem mesmo os méritos de Cristo são a causa da predestinação dos eleitos, como já demonstramos anteriormente. Portanto, tampouco os pecados são a causa da reprovação. Contra isso, porém, algumas objeções são levantadas, as quais devem ser esclarecidas.

I. Objeção, as Escrituras afirmam que Deus, ao reprovar Esaú, o odiou; logo, isso seria por causa do pecado, pois Deus não odeia ninguém senão por causa do pecado. Resposta: Os teólogos distinguem entre o ódio negativo e o positivo. Pelo ódio positivo, dizem, Deus não odeia ninguém exceto o pecador; pelo ódio negativo, porém, Ele pode odiar mesmo aquele que não pecou, ao não querer conceder-lhe a vida eterna, como quer para outro. Cameron, em seu Myrothecium (p. 192), critica essa distinção, argumentando que aqueles que interpretam “odiei” como “não amei” de forma privativa, e não positiva, não consideram suficientemente a natureza de Deus. Ele observa que as Escrituras desconhecem esse ódio privativo ao tratar do ódio com que Deus persegue os réprobos. Os homens, diz ele, odeiam (ou seja, não amam) seus semelhantes por três razões principais: 1) por não os conhecerem; 2) por, mesmo conhecendo-os, não se lembrarem deles ou não pensarem neles; 3) por se comportarem com indiferença em relação a eles. Contudo, nenhuma dessas razões pode ser aplicada a Deus, que é omnisciente, não pode deixar de conhecer os homens, de se lembrar deles ou de ser indiferente a eles. Resposta à crítica: Não se pode negar que Deus, desde a eternidade, não quis conceder a vida eterna a alguns; assim, não vejo por que esse ato não poderia ser chamado de ódio negativo. Quanto às objeções de Cameron, não parece correto afirmar que Deus não pode se comportar com indiferença em relação aos homens. Embora isso seja verdadeiro para os homens já criados, é falso quando se considera os homens como objetos da vontade divina na predesti­na­ção. Era livre a Deus querer conceder a vida eterna a uns e não a outros, de modo que aqueles destinados à salvação poderiam, se assim Lhe aprouvesse, ter sido destinados à condenação, e vice-versa. Portanto, essa acusação é insuficiente para invalidar a distinção. Mais relevante é a observação de que esse ódio não pode ser considerado meramente negativo. Como Whittaker argumenta em seu tratado sobre a predestinação, o decreto de não conceder a vida, ou de não ter misericórdia, que os escolásticos chamam, não sem razão, de reprovação negativa, implica uma afirmação. Se Deus decretou não dar a vida a muitos, ou decretou o contrário, ou deve ser considerado como não tendo definido nada de forma certa e afirmativa, o que é absurdamente inconcebível. Pois todos os homens, sendo criaturas de Deus, devem ser divinamente ordenados aos seus fins. Nem um pardal ou um fio de cabelo cai sem a vontade de Deus; seria, então, concebível que tantos homens se precipitassem na destruição sem o decreto e a vontade divina? Portanto, esse ódio pode ser considerado também positivo, ao destinar à destruição eterna aqueles a quem Deus não quis conceder a vida eterna. Assim, à objeção inicial, responde-se: Deus não odeia, exceto os pecadores, se o ódio for entendido como vontade de punir, presente em Deus; mas, se for entendido como vontade de destinar à destruição, então Ele pode odiar mesmo aqueles que não são concebidos como pecadores, pois por essa vontade foram destinados à destruição e, consequentemente, ao pecado.

II. O ato de Deus pelo qual destinou alguns, por Seu decreto, à destruição eterna é um ato de justiça; logo, pressupõe o pecado como causa meritória. Resposta: Twisse, em Vindiciae Gratiae et Potestatis Dei (p. 157, parte 2), responde a esse ou semelhante argumento: nem todo ato justo de Deus requer uma causa meritória; isso se aplica apenas ao ato justo de Deus como juiz, mas não como Senhor da vida e da morte. Deus nos fez senhores da vida em relação às criaturas inferiores, que tratamos segundo nosso arbítrio, até mesmo matando-as, sem que isso seja injusto, embora não haja demérito da parte delas.

III. Não é verossímil que Deus tenha ordenado o homem à destruição sem nenhuma causa, pois Ele não deseja a morte do pecador e, portanto, odeia e rejeita o pecado. Resposta: No texto original, não se diz “não deseja”, mas “não se deleita”. Alguém pode não se deleitar com algo e, ainda assim, querê-lo. Por exemplo, Deus não se deleita com o pecado, mas o quer por uma vontade permissiva; caso contrário, o pecado não existiria.

IV. Mateus 7:8-9. Argumentam que, se um homem age assim em relação a outro homem, como Deus não agiria assim em relação ao homem, conforme Cristo aplica a Deus no versículo 11? Resposta: 1) O texto diz “aquele que pede”. Os réprobos, porém, não pedem. 2) Não há paridade na comparação entre Deus e os homens. Um pai humano é obrigado a fazer o bem a seu filho em tudo, mas Deus não é obrigado a nada em relação a ninguém, conforme Romanos 11:35. Por isso, diz-se que Deus tem misericórdia de quem quer.

V. Como Deus age no tempo, assim decretou desde a eternidade. Ora, no tempo, Ele condena por causa do pecado; logo, desde a eternidade, decretou condenar por causa do pecado. Resposta: A expressão “por causa de” não deve ser vinculada a “decretou”, mas a “condenou”. O sentido é: Deus decretou condenar por causa do pecado, ou seja, decretou que o pecado seria a causa da condenação. Não decretou, porém, que o pecado fosse a causa do decreto, pois tal formulação seria absurda.

VI. Romanos 9 afirma que não há injustiça em Deus. Portanto, Ele não reprova ninguém à destruição sem causa, pois a justiça implica que ninguém seja punido sem justa causa, conforme Gênesis 18. Resposta: O texto trata da justiça vindicativa de Deus, não de Seu poder absoluto, do qual deriva a destinação à destruição.

VII. Se o homem caído é o objeto da reprovação, então ele foi reprovado por causa da queda. Resposta: Nega-se a consequência. Embora o homem caído seja o objeto da reprovação, não se segue que a queda seja sua causa; antes, a queda é a causa da condenação.

VIII. Se assim for, segue-se que até infantes ainda pendentes do seio materno podem ser reprovados, o que apela à consciência de pais e mães. Resposta: Não se deve considerar o que a consciência de um ou outro suporta, mas o que a consciência regulada pela Palavra de Deus ensina. A Palavra de Deus ensina claramente que alguns infantes são reprovados. Isso é certo, primeiramente, para aqueles que são estranhos ao fœdus (aliança) de Deus, pois ninguém é salvo sem estar na aliança. Mesmo entre os que nascem na aliança, não há dúvida, como se vê nos exemplos de Ismael e Esaú, bem como daqueles que, sendo ímpios, nascem de pais piedosos.

IX. Se assim for, os réprobos se ocupam em vão com o estudo das boas obras, de Cristo e dos meios de salvação. Resposta: A objeção parte de uma premissa falsa, a saber, que os réprobos se dedicam ao estudo das boas obras. Deus, que decretou deixar o homem em sua queda, também decretou deixá-lo em sua condição animal e carnal. Tal pessoa não pode se dedicar às boas obras, conforme Romanos 8:8, Jeremias 13:23 e Mateus 7:18. Além disso, tal pessoa é propensa e inclinada a todo tipo de pecado, como se vê em Gênesis 6:5 e 8:21. Daí decorre a resposta à objeção contrária: “Se és eleito absolutamente, ainda que caias em todo tipo de crime e não creias, serás salvo.” Resposta: Presume-se que haja eleitos que não sejam regenerados ou que, sendo regenerados, não se dediquem às boas obras. Contudo, Deus promete, em Ezequiel 36, que removerá o coração de pedra, e, em Romanos 8, afirma que os filhos de Deus são guiados pelo Espírito de Deus.

X. Se Deus ordenou à pena e aos meios pelos quais ela seria infligida, segue-se que Ele decreta a pena antes do pecado (entendido como prioridade de natureza). Mas a pena pressupõe o pecado, e não o contrário. Resposta: Uma coisa é intencionar, outra é infligir. Deus intenciona a pena primeiro, mas não a inflige. A pena é um termo relativo, cuja natureza permite que um elemento exista antes do outro.

Portanto, a destinação à destruição não pode ser um ato da justiça vindicativa.

Razão: Porque, ao destinar à destruição, Deus também destina ao pecado e à sua perseverança; assim, esse ato precede o pecado, já que o pecado segue apenas a destinação. Piscator, respondendo ao argumento de Vorstius, que pretendia provar que Deus não destina ninguém à destruição a menos que seja pecador, com base nas palavras de Abraão em Gênesis 18, “O Juiz de toda a terra não fará justiça?”, faz uma distinção e afirma: Aqui se comparam, por assim dizer, dois tipos de justiça divina de naturezas distintas. Nas palavras de Abraão, menciona-se a justiça judicial ou vindicativa de Deus, como é evidente nas palavras subsequentes, “O Juiz de toda a terra não exercerá a justiça?”. Já na consequência, trata-se da destinação de certos homens à morte eterna e aos pecados pelos quais são conduzidos a ela, cuja justiça é de um gênero diferente, pois se fundamenta no supremo e absoluto poder de Deus, conforme ensina Paulo em Romanos 9:14-15.

A reprovação pode ser considerada de duas formas: absoluta e comparada. A reprovação absoluta é aquela que foi definida acima por nós. A reprovação comparada ocorre quando Deus destina um indivíduo a um grau maior de destruição em relação a outro.

Nem todos os condenados, de fato, são submetidos ao mesmo grau de pena; um sofre uma pena maior que outro.

A reprovação, ou seja, o decreto de reprovar, implica necessariamente a ocorrência de pecados. Contudo, a reprovação não é a causa dos pecados.

Primeira razão: Não pode haver lugar para uma destruição justa sem que o pecado a preceda, pois Deus não condena ninguém senão por causa do pecado. Assim, se Deus ordenou alguns à destruição eterna, também ordenou ao pecado, sem o qual a destruição, como pena justa, não poderia ser imposta à criatura. Segunda razão: Deus decretou, desde a eternidade, permitir o pecado. Como demonstramos anteriormente, Deus não altera Seus decretos, e a permissão do pecado implica necessariamente sua ocorrência, conforme também provado acima. Objeção: Aquilo que necessariamente se segue é o efeito daquilo que o precede. Portanto, como o pecado necessariamente segue a reprovação, seria um efeito do decreto reprobatório. Resposta: Essa afirmação é falsa. Pode haver um consequente necessário, como, por exemplo, o que Deus prevê ocorre necessariamente, pois, do contrário, Sua presciência seria falível. Contudo, Deus não é a causa de tudo o que prevê. Ele certamente prevê o pecado, e o pecado não pode deixar de seguir Sua presciência, mas nem por isso a presciência de Deus é a causa do pecado, nem o pecado é um efeito da presciência. Portanto, a premissa maior é particular. Nem tudo o que se segue é um efeito de uma causa; há também o consequente que segue seu antecedente. Por exemplo, a infância segue a infância inicial, e o meio-dia segue a aurora, mas esses posteriores não são efeitos dos anteriores.





sábado, 17 de maio de 2025

A CESSAÇÃO DOS DONS EXTRAORINÁRIOS


A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso.

1Co 12:8

DEFINIÇÃO DE CESSACIONISMO

O cessacionismo define-se como a doutrina que, pressupondo a suficiência das Escrituras, nega que os dons extraordinários sejam normativos na Igreja. Em virtude do conhecimento revelacional de Deus ao seu povo, estes dons tiveram o propósito de capacitar os homens na entrega, confirmação e registro da revelação divina. Isto porque nenhuma religião pode florescer sem a ideia de revelação, tendo em vista que a piedade é o relacionamento dos homens com Deus, o conhecimento de Dele torna-se necessário para que todos os aspectos da vida devota e piedosa sejam cultivados e desenvolvidos. Perceba que há revelação como consequência de nossa necessidade de se relacionar com Deus, isto certamente foi impresso pelo próprio Criador, como diz Turretini, todas as nações (mesmo as bárbaras) concordam em que é bom para o homem buscar alguma sabedoria celestial, além daquela que a razão chama de o guia da vida. Muitos ateus sustentam que essa necessidade da religião se deu por conta da manipulação de homens primevos sobre os mais fracos para a manutenção de seu poder, Turretini afirma, entretanto, que ainda que seja verdade que homens astuciosos têm inventado muitas coisas na religião, com o fim de inspirar reverência no povo comum, e com isso manter sua mente mais obediente, jamais teriam atingido seu propósito a não ser que já existisse, na mente humana, um senso inerente de sua própria ignorância e impotência. João Calvino diz o mesmo, leia-se:

“Sem dúvida, confesso que, a fim de manterem o espírito mais obediente a si, homens astutos têm inventado muita coisa em matéria de religião, para com isso infundirem reverência às pessoas simples e causar-lhes terror. Isso, no entanto, em parte alguma teriam conseguido se a mente humana já não tivesse sido imbuída dessa firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emerge a propensão para a religião.”

O relacionamento entre o homem e Deus pressupõe que o aquele o conheça, mas tal é o abismo entre os dois, como a finitude e corruptibilidade da criatura, que nem mesmo a própria criação inteira nos garante uma revelação assertiva de Deus, pelo menos, não de modo salvífico. Por esta razão, os divinos de Westminster iniciam a confissão dizendo que

“Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda.”

O ponto de partida em que o cessacionismo se sustenta é a finalidade divina de revela-se ao seu povo, esta é a essência da edificação do corpo de Cristo, o aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus (Ef 4.12-13). A partir daqui a revelação pode ser vista de duplo modo: (1) geral ou natural, aquela que encontramos na natureza, cujos atributos invisíveis de Deus são percebidos; (2) especial ou sobrenatural, aquela que no tempo e nas circunstâncias por Ele determinadas, manifestou-se de modo extraordinário, específico e redentivo ao seu povo. Assim, Turretini conclui dizendo que “era necessário que a imperfeição da primeira revelação (feita inútil e insuficiente pelo pecado) fosse suprido por outra mais clara (não só quanto ao grau, mas também quanto à espécie), não somente para que Deus usasse mestres mudos, mas também para que sua santa voz declarasse a excelência de seus atributos e abrisse o mistério de sua vontade para nossa salvação”. Esqueçamos, portanto a primeira revelação, aquela geral e natural que, a todos cercam com claras evidências dos atributos criativo, providencial e governador de Deus sobre todas as coisas, e foquemos nesta revelação específica, sobrenatural e extraordinária.

Após isto, o registro desta revelação aponta as modalidades em que Deus se revelou, Paulo diz que “havendo Deus, outrora, falado muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho” (Hb 1.1-2), pelo que vemos uma economia, uma administração divina em seu modo de revelar-se e falar com o seu povo. Logo depois exaltar o Filho de Deus, nos exorta sobre o perigo da negligência àquilo que nos fora anunciado inicialmente pelo Senhor, confirmado pelos que a ouviram e tendo o testemunho divino por sinais, prodígios e vários milagres (Hb 2.3-4). O conceito relacional entre Deus e o homem pode ser visto de dois ângulos: (1) de Deus para o homem, temos a revelação; (2) do homem para Deus, temos a obediência, o dever que Ele requer à sua vontade revelada (CMW, 91). A síntese da revelação bíblica consiste nisto: o registro daquilo que Deus quis revelar de si, a confirmação desta revelação por intermédio de sinais, a resposta daqueles que receberam o conhecimento de Deus e a interação divina com estas respostas. Entretanto, vemos que Deus designou ofícios para que esta revelação fosse transmitida ao povo, designou aos que receberam esta responsabilidade autoridade divina como também, por inspiração do Espírito Santo, registraram àquilo que é suficiente para a salvação, por isto, somos edificados sobre o fundamento[1] dos apóstolos e profetas, sendo Cristo Jesus, a pedra angular (Ef 2.20).

ESPECIFICIDADE DA REVELAÇÃO ESPECÍFICA

O jogo de palavras é proposital. Podemos dizer que se trata de uma definição mais precisa da revelação específica de Deus aos homens. Pontuemos, inicialmente:

O homem e sua natureza finita. A primeira questão a ser considerada introdutoriamente é que o homem não foi criado com uma perfeição intelectual tal como o próprio Deus. Quando estudamos teontologia (doutrina do Ser de Deus) vemos que o conhecimento de Deus é arquetípico[2], intuitivo[3], imediato e simultâneo[4].  O homem não, o homem conhece as coisas não como Criador, mas como parte da criação, não como um arquiteto que planeja o imóvel, mas como o comprador. Deus conhece como causa primeira, isto é, como aquele que dá existência e definição às coisas. O homem, sendo causa segunda, conhece apenas a partir do que já foi criado. Portanto, é impossível (seja na condição de estado original, seja após a queda, seja regenerado ou glorificado) o conhecimento perfeito de Deus em função ontológica e metafísica, pois Deus é infinito, a mente humana, é finita (Jó 7.17; 14.1-2; Sl 8.4-5; 144.3; Pv 24.32). Deus conheci a si mesmo em si mesmo, nós o conhecimento por aquilo que Ele revela, dentro das limitações de nosso próprio intelecto (seja ele em estado original, corrompido, regenerado ou glorificado). Fica claro a partir daqui nosso próximo ponto.

A incompreensibilidade de Deus. Afinal, se Deus é infinito em seu ser, perfeito em seu operar, fora do tempo e do espaço, sua transcendência precisa ser acentuadamente mencionada. Pois é a doutrina que fala que Deus está assentado nas alturas, no seu trono, sendo um Deus separado da sua criação e independente dela[5]. Deus não está preso às mesmas categorias que os seres humanos, isto é, tempo e espaço, por isso não deve ser medido por elas[6]. A escolástica faz uma separação de ordem entre Deus e suas criaturas[7]. Por esta razão lemos na Escritura "Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Pois, quem conheceu a mente do Senhor? Quem se tornou seu conselheiro?" (Rm 11.33-34; Cf. Jó 26.14; 36.26; 37.5; Is 55.8,9).

A queda do homem de seu estado original. Já não bastasse a limitação em que o homem estava naturalmente sujeito, por ser criatura, mais limitado ainda tornou-se ao cair de seu estado original. O homem em estado de queda não quer conhecer[8] a Deus, como diz o apóstolo Paulo, “por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável” (Rm 1.28) e isto é mais claro ainda nos recortes que Paulo se usa do Antigo Testamento para falar da condição deplorável do ser humano (Rm 3.10-18)[9]. Paulo associa a prática do pecado à ignorância pela dureza do coração (Ef 4.17-19) e logo depois lemos “mas não foi assim que aprendestes a Cristo” (v.20) e ele explica este aprendizado em termos da regeneração (vos despojeis do velho homem, v.22).

O caráter redentivo da Revelação. O catecismo maior e breve de Westminster afirma isso ao dizer que o fim principal e supremo do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre (Ap 4.11; Rm 11.36; 1Co 10.31; Sl 73.24-28; Jo 17.21-24). Qual o problema? O pecado. A vontade de Deus fora quebrada, as leis são desobedecidas e o diagnóstico apostólico do homem natural é claro: “não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3.11), são “entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza de seu coração” (Ef 4.18), trata do homem que “não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhes são loucura e não pode entendê-las” (1Co 2.14). Portanto, Cristo é a solução para esse problema, sendo inocente, Ele se torna pecado por nós, a justiça dele nos é imputada pela fé, somos santificados por meio de sua Palavra e esperamos o seu retorno para a nossa glorificação. Mais que isso, Cristo nos torna participante de seu corpo, distribui dons para seus membros, aperfeiçoa e edifica organicamente a sua Igreja “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13). E quem está por trás de toda essa obra? Quem aplica a obra de Cristo em nosso coração? Quem eficazmente rompe as barreiras da incredulidade, da dureza e da resistência depravada do homem, inclinando sua mente e sua vontade ao Evangelho de Cristo? Aos que leem a Bíblia, não foi preciso pensar muito para responder que é o Espírito Santo. Essa é a promessa da dispensação da graça administrada por Cristo, “porei dentro de vós o meu Espírito, e fareis que andeis em meus estatutos, e guardeis as minhas ordenanças, e as observeis” (Ez 36.26), pois tendo Deus estabelecido a circuncisão como sinal da aliança na antiga dispensação, garantiu “o Senhor teu Deus circuncidará o teu coração” (Dt 30.6) e isto se confirma com o Apóstolo Paulo ao escrever que hoje, “fostes circuncidado não feita por mãos no despojar do corpo da carne, a saber, a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11) e em outro lugar diz que “ a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne” (Fp 3.3). O Espírito Santo é a garantia de que Cristo está com seu povo (Mt 28.19,20; At 3.21; Mt 18.19, 20; Jo 14. 16-17; 2Co 6.16; 1Co 3.16), John Owen afirma que Ele garantiu a seus discípulos que a sua presença com eles pelo seu Espírito era melhor do que a sua presença física[10]. Portanto, não há cristianismo autêntico sem uma experiência genuína com o Espírito Santo, não existe cristão sem conversão, não existe crentes sem fé e arrependimento como também não se pode entender a Sagrada Escritura em sua natureza mais íntima e pactual sem a operação eficaz do Espírito.

Após essas pontuações, devemos considerar melhor o que é revelação. O teólogo reformado Gerard van Groningen explica em seu livro A revelação messiânica no Antigo Testamento que revelação sugere tirar o véu, abrir, tornar acessível o que, de outra forma, permaneceria desconhecido, indicando atividade intencional, inteligível e teleológica[11]. Em sua outra obra, O progresso da revelação no Antigo Testamento, ele esclarece dizendo que a revelação acontecia quando havia uma manifestação do que estava na mente do nosso Deus trino. Revelar quer dizer descobrir o que está escondido. É abrir a mente e o coração e expressar o que está neles. Esse conteúdo expressado é revelação quando não era conhecido antes que a abertura ou atividade reveladora acontecesse[12]. Com isto, van Groningen sumariza a revelação em elementos distintos: a palavra de Deus, sua ação, a resposta humana (seja em palavra ou ação), a interpretação da relevância e efeito desta resposta.

O teólogo brasileiro Paulo Brasil afirma que cada ato revelacional implica em um ato histórico, deixemo-lo falar e já introduzir a distinção entre a revelação objetiva e subjetiva que pretendemos usá-la mais adiante:

Revelação objetiva são os atos históricos de Deus, manifestados na própria história. Isto é, cada ato revelacional implica em um ato histórico. Exemplo: Jesus veio a este mundo. Isso é um ato histórico. Esta é uma revelação objetiva. Revelação subjetiva (Iluminação) é a revelação histórico-objetiva que é trazida ao entendimento do indivíduo, a regeneração, conversão. O que permanece hoje é a iluminação, pois a revelação objetiva cessou, pois não existe mais revelação histórica. Ela se encerrou com o Cânon. O que temos hoje é a iluminação que é trazida ao homem por meio da pregação histórico-objetiva de Deus que continua sendo proclamada e salvando o povo na história. Como Deus fez no Antigo Testamento, fez também no Novo Testamento e durante toda a história. O Velho Testamento junto com seus atos históricos não apenas revelava Deus historicamente (objetivamente), mas revelava Deus subjetivamente a um povo que Ele mesmo estava salvando. Paralela à idéia da revelação, está a idéia de conversão e salvação — Deus se revelava para redimir.[13] [grifo meu]

Isto demonstra um elemento importante do período revelacional: tanto o falar e o agir de Deus tal como o falar e o agir de seu povo em resposta à esta palavra constituem elemento da revelação divina. E nisto podemos ver que Moisés, ao iniciar o livro de Deuteronômio, recapitula tudo aquilo que foi ensinado ao povo iniciando seu discurso com a palavra de Deus (Dt 1.6), narrando os eventos decorridos da peregrinação do povo como parte da revelação divina e, portanto, do conhecimento de Deus. Paulo reforça isto ao dizer que “estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa” (1Co 10.11).

Outra coisa importante para a compreensão deste relacionamento entre Deus e o homem está no conceito de Aliança. Há um relacionamento pactual entre Deus e o homem, por esta razão, enxerga-se a dinâmica entre a palavra e ação de Deus concorrendo com a resposta humana.[14] Millard Erikson confirma o aspecto pessoal da revelação específica. Um Deus pessoal se apresenta a pessoas, e isso pode ser visto de várias maneiras. Deus se revela informando seu nome. Nada é mais pessoal do que um nome. Quando Moisés perguntou o que deveria dizer ao povo de Israel quando lhe perguntasse quem o enviara, Javé respondeu revelando seu nome: "EU SOU O QUE SOU [OU EU SEREI O QUE SEREI]" (Êx 3.14). Além disso, Deus firmou alianças pessoais com indivíduos (Noé, Abraão) e com a nação de Israel. E observe-se a bênção que Arão e seus filhos deveriam pronunciar ao povo: “O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor levante sobre ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6.24-26)[15]. Logo, o conhecimento de Deus para a salvação só faz sentido dentro de uma hermenêutica pactual, pois como diz Geerhardus Vos, “conhecer” pode significar “amar”, “separar em amor” no idioma bíblico. Porque Deus deseja ser conhecido dessa maneira, ele fez que sua revelação acontecesse no meio da vida histórica de um povo. O ambiente da revelação não é uma escola, mas um “pacto”. Falar sobre a revelação como uma “educação” para a humanidade é uma maneira racionalista e não escriturística de falar. Tudo o que Deus desvendou de si mesmo veio em resposta às necessidades religiosas práticas de seu povo à medida que essas emergiam no curso da História[16].

Finalmente, há quatro características importantes a destacar da revelação, antes de encerrarmos esse tópico: o caráter orgânico, progressivo, histórico e adaptável.

O caráter progressivo da revelação. A revelação não se deu em um instante, ela acompanha o desenvolvimento da redenção na história e, nas palavras de Vos, é intérprete da redenção[17]. Esse caráter progressivo da atividade reveladora de Deus é a base para discernirmos se um dado profeta falou verdadeiramente as palavras de Deus[18]. A revelação confirma ou amplia-se com o desenvolvimento da redenção, mas nunca pode se contradizer. Por esta razão, os falsos profetas podem promover atos idênticos ou maiores, mas se a palavra dita não condiz com a revelação divina, os atos não procedem de Deus.

O caráter histórico da revelação. Esta progressão orgânica da revelação se dá no tempo. Deus não revelou Sua vontade de maneira abstrata ou filosófica, mas dentro da realidade concreta da história humana. A revelação de Deus vem à humanidade de acordo com o processo histórico, de modo que homens e mulheres possam compreender e aplicar a mensagem duradoura das relações pactuais ao tempo em que vivem[19].

O caráter orgânico da revelação. Há uma conexão de toda a Escritura, pois ela não foi elaborada em um instante, mas acompanhou todos os eventos da providência divina que, suficientemente, nos forneceu material para, através daquilo que foi registrado nas Sagradas Escrituras, pudéssemos aprender a vontade de Deus. Portanto, a mensagem inteira foi dada, nas palavras de Groningen, em forma embrionária[20], no sentido de que se desenvolve de forma unificada e interdependente, como um organismo vivo. Essa forma orgânica da revelação, somado ao fato que ela tem um caráter redentivo e debaixo de um pacto entre Deus e o homem, implica em uma unidade que reflete o plano redentor de Deus, reforçando a ideia de que toda a Bíblia é testemunha da mesma mensagem de salvação, mesmo que suas partes sejam reveladas gradualmente.

A adaptabilidade da revelação. Dado as administrações do pacto, a revelação se torna adaptável ao período, isto é, não somente as pessoas podiam aplicar a revelação à sua própria vida, mas a revelação também foi dada de tal modo que se constituía em força integral, controladora e plasmadora nas circunstâncias em que os recipientes dessa revelação viviam[21].

Isso nos dá uma noção panorâmica de que revelação é aquele conhecimento pactual que Deus fornece ao seu povo e que consiste naquelas modalidades, períodos e maneiras que Deus se comunicava e manifestava a sua vontade objetivamente de modo infalível, inerrante e autoritativo tanto nas palavras, como nos eventos, como também na significação de ambas as coisas em sua gradual progressão, tendo em vista a redenção dos eleitos, sua manutenção na fé e na santificação para a glória de Deus[22].

Não é imprudente inferir com base em todas estas evidência que a revelação possui uma coerência interna e forte objetividade, não descentralizada à interesses pessoais, mas com uma finalidade divina específica com frutos redentivos que, tendo sido dado aos profetas e apóstolos e, sendo registrado por uma inspiração divina que não só torna as Escrituras infalível como autoritativa à Igreja, tem um princípio e um fim ordenado ao verdadeiro conhecimento de Deus e a piedade, não sendo, portanto, contínua. A revelação como instrumento redentivo está completa, pelo que nos resta é sua proclamação, não adição.

O DESENVOLVIMENTO DA REVELAÇÃO

A revelação divina consiste em duas partes essenciais: a lei de Deus e seu evangelho. Essas partes não são antagônicas, mas são aspectos em que a revelação se apresenta a nós, lemos o apóstolo Paulo dizer que “a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo” (Gl 3.24) e em outro lugar afirma que “o fim da Lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4). Elas não são sucessivas, porém simultâneas, isto é, Cristo estava presente no tempo em que a Lei era tutora, “porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2.17), isto mostra que Cristo e Sua graça estavam presentes já no tempo da Lei, e que a Lei nunca foi um fim em si mesma. Da mesma forma que a Lei nos é presente ainda hoje para revelar a nós o padrão que Deus requer daqueles que crêem em Cristo para a sua salvação. Se há Lei sem Evangelho, temos apenas condenação; o Evangelho sem Lei resulta em graça sem necessidade de arrependimento. Por esta razão, o desenvolvimento da revelação é embrionário, pois embora o aspecto redentivo tenha sido um pouco obscurecido em sombras e tipos na antiga administração do pacto, a redenção estava presente ali e Deus a administrava conforme o seu beneplácito. Na antiga administração da graça, em síntese, vemos de modo progressivo:

(1)   o estabelecimento do pacto de Deus com seu povo, com o registro da vontade preceptiva de Dele na Lei (Gn 17.7; Ex 19.5-6; Dt 4.13; 5.1-3; 29.1; Sl 147.19-20; Rm 3.2; Hb 8.6; Ne 9.13-14);

(2)   a resposta do povo à Deus, ora obedecendo ora desobedecendo esta vontade divina, negligenciando-a e, por vezes, corrompendo-a (Dt 6.4-9; Js 24.14-22; Jz 2.11-17; 1Sm 8.7-8; 2Rs 17.7-23; Is 1.2-4; Jr 7.23-26; Ez 20.5-13; Sl 106.6-39);

(3)   a promessa divina de juízo pela desobediência, como a garantia de redenção de seu povo, incluindo os gentios (Lv 26.14-46; Dt 28.15-68; Is 10.20-23; Is 11.10-12; Jr 31.31-34; Ez 36.22-28; Am 9.11-12; Ml 1.11; Lc 2.32; Ef 2.11-13).

Este triplo aspecto da antiga dispensação da graça envolvia três ofícios que se concretizará de modo perfeito na pessoa de Cristo: real, sacerdotal e profético (Zc 6.13; Sl 110.1-4; At 3.22; Hb 5.5-6; Ap 19.16; Lc 4.18-21). No ofício real, Davi e seus descendentes são chamados para o cuidado do povo de Deus, como o dever de zelar e fazer a Lei de Deus ser ouvida e obedecida (2Sm 7.12-16; Sl 72.1-4; 78.70-72; 1Rs 2.3-4; 2Cr 34.29-33; Dt 17.18-20; Jr 23.5-6). No ofício sacerdotal, as imperfeições da realeza e seus súditos, são compensados pelos sacrifícios e o culto a Deus, onde não somente têm seus pecados expiados, como são ensinados a obedecerem a Lei, isto é, os preceitos divinos são transmitidos ao povo, os levitas aqui estão responsáveis pelo culto (Lv 4.20; 16.6-10; Nm 3.5-10; 2Cr 17.7-9; 30.16-22; Ml 2.7; Ed 7.10; Dt 33.10; Ne 8.7-8; Hb 10.1-4). O ofício profético está estritamente ligado à Palavra de Deus, algo que é análogo à função sacerdotal, porém com elevação e autoridade, visto que ela procede diretamente de Deus, não apenas em seu conteúdo, mas no modo de transmiti-la (Dt 18.15-18; Jr 1.9; 26.2; Ez 3.4; Am 3.7-8; Is 6.1-8; 1Rs 17.1; Zc 7.12; 2Pe 1.21). Na plenitude dos tempos, estes ofícios se tornam perfeitos na pessoa de Cristo, sendo Ele o Leão da Tribo de Judá, que nada deixou fora de seu domínio (Hb 2.8), o tal sumo sacerdote que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus (Hb 8.1) e, consequentemente, o único meio pelo qual Deus fala hoje ao seu povo (Hb 1.2). Devemos, no entanto, considerar o ofício profético no desenvolvimento progressivo da revelação até Cristo, sua relação com o ofício apostólico no Novo Testamento após a assunção de Cristo, e sua presença provisória no início da Igreja (esta última é o problema que promove as mais complexas divergências entre reformados e carismáticos).

O ofício profético no Antigo Testamento

A revelação teve os seus agentes na história da salvação, e os profetas foram os que Deus vocacionou e separou para falar aquilo que Ele os ordenara. Nas Escrituras, Abraão foi o primeiro a ser chamado de profeta[23], quando Abimeleque, após ser advertido que Sara era sua esposa, é ordenado pelo Senhor há restituí-la a seu marido; é importante notar que o conceito aqui atribuído a Abraão é associado à atividade intercessória, pois disse Deus “ele é profeta e intercederá por ti” (Gn 20.7). A associação de profeta com o verbo interceder é interessante e já nos informa, no início da revelação bíblica, o caráter de mediação que este ofício desenvolverá na figura de Moisés e no clímax da monarquia de Israel. Embora o termo hebraico פָּלַל em seu sentido mais simples significa julgar (Genesius dirá que sua raiz significa rolar, revolver), o tronco verbal hitpael considera a ação do verbo como intermediária entre dois polos, por esta razão, e.g. lemos que יִּתְפַּלֵּ֥ל אַבְרָהָ֖ם אֶל  אֱלֹהִ֑ים וַיִּרְפָּ֨א אֱלֹהִ֜ים אֶת ־אֲבִימֶ֧לֶךְ (Gn 20.17) — e, orando Abraão, sarou Deus Abimeleque — e em Moisés, a situação se repete quando ele intercede pelo povo de Israel, וַיִּתְפַּלֵּ֤ל מֹשֶׁה֙ אֶל־יְהוָ֔ה וַתִּשְׁקַ֖ע הָאֵֽשׁ (Nm 11.2) — então Moisés intercedeu diante do SENHOR, e o fogo se apagou — e quando Deus secou a mão de Jeroboão, ele implora ao profeta, הִתְפַּלֵּ֣ל בַּעֲדִ֔י (1Rs 13.6) — ora em meu favor. Logo a ideia inicial de profeta na Bíblia está associada ao conceito de intercessor (cf. Êx 8.8; 8.28; 9.28; 10.17; Nm 21.7; 1Sm 12.19), mas ainda no patriarca, vemos como estes vocacionados por Deus era de tal forma próximos de Deus que lemos o Senhor afirmar “ocultarei a Abraão o que estou para fazer...?” (Gn 18.17). E a razão empregada por Deus para revelar a sua obra à Abraão repousa no pacto que havia feito ele (v.18) e anuncia o seu juízo sobre Sodoma e Gomorra (v.20-21) e quando lemos o autor da carta aos Hebreus, lemos que “Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança” (Hb 11.8). O propósito de Deus se revelar a Abraão tem um caráter redentivo, e não apenas para ele, mas para “Isaque e Jacó, herdeiros com ele na mesma promessa” (v.9). Note como, logo no início, toda a estrutura do pacto em seu estado mais desenvolvido, já é percebido em Abraão, pois é tido como um sacerdote e como um rei, visto que ele oferece sacrifícios, lidera um exército e tem a promessa de domínio sobre as nações e reis e a sua descendência (Gn 22.3; 14.13; 17.5-6)[24]. A idolatria de Israel no Egito configurou a quebra do pacto abraâmico (Js 24.14), foi em Moisés que o pacto foi restaurado os ofícios foram bem constituídos no povo.

O povo de Israel que tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espelhavam na terra do Egito estavam sobre o domínio e autoridade de Faraó, sendo submetidos à trabalho escravo, e neste contexto, Moisés aparece. O seu nascimento foi marcado por um cuidado extraordinário, uma vez que Faraó ordenou a morte de bebês hebreus, o garoto recém nascido agora se encontra nos braços da filha dele. Após matar um egípcio em favor de um conterrâneo, Moisés foge para Midiã e, após muito tempo, recebe o chamado divino para livrar o povo das mãos do Rei do Egito. Matthew Henry nos informa que assim como as profecias haviam cessado por muitas gerações antes da vinda de Cristo, para que o ressurgimento e perfeição delas através deste Grandioso Salvador e Profeta pudessem ser os mais extraordinários, também a visão havia cessado (ao que parece) entre os patriarcas por algumas gerações antes da vinda de Moisés, para que as manifestações de Deus a ele, para a salvação de Israel, pudessem ser mais bem-recebidas[25]. O caráter do chamado de Moisés é fortemente associado ao conceito de mediador, uma vez que Deus diz “te constituí como Deus sobre Faraó” (Êx 7.1), ele é revestido de uma autoridade divina para executar o seu chamado, ou seja, tu serás mais poderoso que ele, impor-te-ás sobre ele[26], demonstrando que Moisés, assim como todos os demais profetas do Antigo Testamento, são vozes vivas de Deus na terra, constituídas por Ele para falar ao seu povo. Esta autoridade divina dada ele responde à pergunta de Moisés “quem eu sou?” (Êx 3.11), pois Deus seria com Ele (v.12), embora Moisés perguntasse o nome de Deus, seriam as suas obras e o pacto divino que o faria saber quem Ele é, pelo que Deus responde dizendo Eu sou o que Sou (v.14) e logo em seguida, diz “O Senhor, o Deus de Abrão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. Em contraste com a idolatria tão combatida por Deus e declarada fervorosamente contra a sua vontade, note o caráter litúrgico que Deus está sinalizando para Moisés, uma vez que é dito “servireis a Deus neste monte” (v.12) e, ao declarar quem Ele era, Deus afirma “assim serei lembrado” (v.15)[27]. O termo para lembrado aqui é זִכְרִי e significa invocado[28], isto porque a ideia de זֵ֫כֶר aponta para lembrança, memória, menção. Moisés será, portanto, usado por Deus como transição de seu povo da idolatria para o culto ordenado e prescrito por Deus (Êx 19.3-6; Dt 4.10-14; 5.1-33; 12.1-32; Hb 3.2-5) e não poucas vezes, vemos profetas contra o povo de Israel justamento por causa da idolatria (Is 1.2-4; Jr 2.11-13; 7.8-10; Ez 6.4-6; Os 4.12-14; Mq 1.7; Zc 10.2), tendo por causas mais excelentes a influência de outros povos e falsos profetas (Dt 13.1-5;18.20-22; Jr 14.14-15; Jr 23.16-32; Ez 13.2-9;).

Quanto à autoridade profética, destacamos o poder miraculoso que esses homens possuíam em determinados períodos da revelação. Nenhum homem seguiria um pastor de ovelhas para rebelar-se contra um grande rei de uma nação poderosa, rumo ao deserto, sem um destino certo, a menos que esse pastor demonstrasse, de forma extraordinária, a autenticidade de seu chamado. Nem mesmo Moisés se julgou capaz disso, pois disse a Deus: “... não crerão em mim, nem darão ouvidos à minha voz, mas dirão: O Senhor não te apareceu” (Êx 4.1). Como se não bastasse, após convencer Moisés de seu chamado à terra do Egito, assegura-lhe dizendo: “Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te ei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo” (Êx 4.21) e mais a frente, a credibilidade de Moisés não apenas é fragilizada diante de Faraó, mas diante do povo, visto que eles foram alvo de mais dura servidão (Êx 5.6-9). O conflito em que Moisés se encontrou o fez questionar novamente “por que me enviaste?” (v.22), este mesmo conflito, criado pelo próprio Deus, tem um propósito: “agora, verás o que hei de fazer a Faraó; pois, por mão poderosa, os deixará ir e, por mão poderosa, os lançará fora de sua terra” (6.1) e ratificando, mais a frente, a sua aliança (v.2-5), assevera “vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, e vos livrarei da servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento” (v.6). O versículo posterior é ainda mais pontual, pois associa a obra de Deus, seus feitos por meio de Moisés com uma finalidade redentiva: “tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus” (v.7). Fica claro que o ministério de Moisés é singular na história da redenção e o seu modo de executar sua vocação é extraordinária em virtude do caráter redentivo a qual estava ordenado pelo próprio Deus. Os milagres eram também autoritativos, pois Deus os usa contra o povo ao dizer “todos os homens que viram a minha glória e os meus sinais que fiz no Egito e no deserto, e me tentaram estas dez vezes, e não obedeceram à minha voz, não verão a terra de que a seus pais jurei” (Nm 14.22,23).

O testemunho bíblico destaca Moisé, pois “nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, com quem o Senhor houvesse tratado face a face” (Dt 34.10). A expressão פָּנִים אֶל־פָּנִים face a face não pode ser usada para identificar um conhecimento absoluto de Deus em termo metafísicos e ontológicos, pois isto já nos é impossível, como já fora dito. Leia-se que Deus diz “boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas” (Nm 12.8), assinalando que o modo de Deus se revelar à Moisés é claro e sem rodeios. Acerca de outros profetas lemos “se entre vós há profetas, eu, o Senhor, em visão a ele, me faço conhecido ou falo com ele em sonhos” (v.7). Por mais que ambos não tivessem perfeitamente o conhecimento de Deus, tal como Ele é em essência, o modo como Deus fala a Moisés é perfeito em virtude da finalidade que Ele se revela aos homens, enquanto aos demais profetas, vemos um caráter mais enigmático. E tal é a autoridade de Moisés sobre o povo de Deus, que ele não somente age em termos de sinais e prodígios, mas o seu ensino e autoridade não deve ser contestado. O período mosaico, portanto, foi o estabelecimento do pacto com o povo de Israel, a figura de Moisés é o ponto central em que desenrola o livramento do povo, o estabelecimento da lei, o culto a Deus e as promessas (Rm 9.4,5; Êx 4.15-16; 7.1,2; 19.9; Nm 7.89; 12.8; Dt 5.22-28), onde Deus mostra os sinais e prodígios como credenciais da autoridade profética (Êx 7.3; 10.1,2; Nm 14.11,22; Dt 4.34; 6.22; 7.19; 11.3; 26.8; 29.3; 34.11; Js 24.17). Esta singularidade do legislador de Israel é identificada e geralmente mencionada após a sua morte (Dt 34.9-12; Js 1.2-17; Js 3.7; 4.10-14; 8.31-35; 9.24; 11.12,15,20,23; 12.6; 13.8; 14.5,6,10; 17.4; 18.7; 20.2; 21.2,8. 22.2,5,9; 23.6; 24.5).

No ministério de Moisés é possível observar uma preocupação importante: os falsos profetas. Enquanto ele estabelece a religião, normatiza o culto a Deus e a instrução de seu povo dizendo “tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhes acrescentarás, nem diminuirás” (Dt 12.32), a seguir ele adverte “quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los, não ouvirás as palavras desse profeta” (13.1-3), o que é curioso: os milagres que autentificam a vocação profética não pode divergir do ensino profético até então fundamentado e estabelecido. A singularidade de Moisés aqui é mais acentuada, pois Moisés, sob orientação de Deus, se coloca como o padrão do que é verdadeiro ou falso. Tal critério é tão firmemente posto, que nem mesmo sinais, prodígios ou maravilhas que viessem a ocorrer por meio dos falsos profetas deveriam ser levados em conta. A característica atribuída ao falso profeta é a soberba (18.22), pois toda a ousadia de mudar os padrões da verdadeira religião em virtude de um sinal ou prodígio realizado não pode ser encarado de outra forma. Mas a história de Israel, tanto no período dos Juízes como na monarquia é marcada por inconstâncias por parte do povo judeu e a profecia seguirá o seu curso, não mais no estabelecimento do pacto, mas em sua manutenção e aperfeiçoamento, a formação de um texto normativo progride no avanço da revelação e aquilo que foi advertido por Moisés como erro e pecado, depois de muito tempo, é normatizado na monarquia de Israel e relativizado em Judá, sendo um tempo de apostasia generalizada, corrupção espiritual e ameaça à continuidade da aliança.

Os profetas são usados por Deus para ensinar a Lei, chamar o povo ao arrependimento e exortá-los do juízo de Deus. A ideia principal do Antigo Testamento se sumariza na inimizade do culto ao Verdadeiro Deus contra a idolatria, é nisto que o pacto foi fortemente violado pelo povo de Israel. Neste contexto, os profetas Elias e Eliseu são levantados de forma mais extraordinária para demonstrar a fraqueza dos falsos deuses adorados pelo povo de Deus. Elias ao profetizar a ausência de chuva (1Rs 17.1), invoca a maldição de Deus sobre os israelitas, não dele mesmo, mas prometido pelo próprio Deus no estabelecimento da aliança. Guardai-vos, que o vosso coração não se engane, e vos desvieis, e sirvais a outros deuses, e vos inclineis perante eles; E a ira do SENHOR se acenda contra vós, e feche ele os céus, e não haja água, e a terra não dê o seu fruto, e cedo pereçais da boa terra que o SENHOR vos dá, dirá Deus (Dt 11.16,17) e mais a frente ratifica e os teus céus, que estão sobre a cabeça, serão de bronze; e a terra que está debaixo de ti, será de ferro. O SENHOR dará por chuva sobre a tua terra, pó e poeira; dos céus descerá sobre ti, até que pereças (28.23,24).

A profecia de Elias se revela no Novo Testamento como uma oração do profeta (Tg 5.17) e diante de um pedido de efeitos devastadores na terra de Israel, as Escrituras dizem que Deus o sustentou durante todo o período da seca[29]. Em um primeiro momento, Deus o manda para um ribeiro, onde corvos são ordenados por Deus para sustentarem o profeta (1Rs 17.4), os efeitos devastadores da oração de Elias fez com que o rio secasse, e por ordem divina foi para Sarepta, ordenando uma viúva para cuidar do profeta (17.7-9), alimentando extraordinariamente uma viúva “assim diz o Senhor Deus de Israel: A farinha da panela não se acabará, e o azeite da botija não faltará até ao dia em que o Senhor dê chuva sobre a terra” (v.14), posteriormente, o filho desta mulher adoece “até que nele nenhum fôlego ficou” (v.17). Note que o questionamento da viúva deixa implícito o modo como ela enxerga a adversidade que lhe sobrevém “vieste tu a mim para trazeres à memória a minha iniquidade, e matares a meu filho?” (v.18). A percepção que o ministério profético transmitia em sua época era de completo perigo, pois eles eram representantes de Deus e não podiam ser ofendidos e nem mesmo irritados, a palavra do profeta era palavra do próprio Deus, seja na benção, seja na maldição. Petrus Vermigli ao comentar essa porção em sua obra Melachim, diz que talvez essa doença tenha tido causas naturais, mas Deus se valeu delas, tanto para manifestar seu poder como para confirmar a doutrina e pregação de Elias[30]. Com a morte de seu filho, ela não lança em rosto a ele o benefício da hospitalidade que lhe prestara, nem o acusa de ingratidão ou de crueldade. Estas não são palavras de uma mulher arrogante e altiva, mas de alguém abatido, modesto e penitente, que se julga indigna de ter vivido com Elias[31]. Ela entendeu que seus pecados foram a causa da calamidade que lhe fora infligida, e que a justiça de Elias foi a ocasião. Suas palavras não são apenas cheias de dor, mas também de piedade. Pois não é pequena parte da religião e da santidade confessar que não se está isento de pecados. Isso ela soube, e ao mesmo tempo sentiu a presença de Deus em Elias, que não deixa os pecados impunes[32]. Disto se deduz a natureza santa do ministério profético, a justiça que esses homens transmitiam em sua conduta que, de certo modo, dado a porção do Espírito, era de certa forma, extraordinária. O final da história se conclui com a finalidade revelacional cumprida, quando a mulher diz “Nisto conheço agora que tu és homem de Deus e que a palavra do Senhor na tua boca é verdade” (v.24)

O anúncio da chuva é dado com uma ordem: “Vai, apresenta-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra” (1Rs 18.1). O texto introduz uma informação, Jezabel destruiu os profetas do Senhor (v.4) e Acabe, rei de Israel, estava em busca de Elias. Ao encontrar-se com Acabe e sugerir que o povo de Israel e os profetas de Baal fossem reunidos, ele exorta o povo dizendo “até quando coxearás entre dois pensamentos?” (v.21). A sequência dos eventos que sucederão neste enredo tem a finalidade descrita por Elias em sua oração “manifeste-se hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou o teu servo, e que conforme à tua palavra fiz todas estas coisas” (v.36). Aos que estão atentos ao artigo, percebem que o verbo usado aqui para o verbo manifestar é o termo hebraico para conhecer. O profeta continua a sua oração dizendo: “responda-me, Senhor, responda-me, para que este povo conheça que tu és o Senhor Deus, e que tu fizeste voltar o seu coração” (v.37). Vermigli nos aponta que as orações desse homem tinham três partes principais. Primeiramente, ele pede que o próprio Jeová seja reconhecido e recebido como o verdadeiro e único Deus. Em segundo lugar, ele suplica que o seu ministério seja confirmado, de modo que seja tido por um verdadeiro ministro da Palavra de Deus. Por fim, roga para que o coração do povo se converta a Deus, afastando-se das falsas devoções. O fim principal é a glória de Deus — a saber, que o conhecimento de Deus se propague no mundo; em seguida, considera-se a salvação dos homens[33].

Para nosso propósito aqui, acredito que foi demonstrado o suficiente sobre o ofício profético como ligada à estrutura pactual: Deus se revela com propósito redentivo, estabelecendo uma relação de aliança que abrange não apenas indivíduos, mas sua descendência e, por fim, as nações (Gn 12.3). Toda esta estrutura revelacional está sendo, sob inspiração divina, registrada e preservada para o estabelecimento de um modo objetivo e autoritativo de regra de fé e prática.

O ofício profético na pessoa de Jesus Cristo

A autoridade profética é dada a Jesus Cristo plenamente, uma vez que o Pai usou de sombras para tipificar as verdades espirituais, Cristo é a luz de todos esses enigmas. A vontade de Deus é mais clara e perfeita na pessoa de Cristo, uma vez que Ele mesmo dirá o que Isaías profetizou a seu respeito “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração de vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4.18-19). Cheio do Espírito, ele vence a tentação do Diabo (Lc 4.1), ensinava nas sinagogas (v.14), demonstra superioridade em sua doutrina (v.32), expulsava demônios (v.36) e o que se dizia a seu respeito cada vez mais se divulgava, e grandes multidões afluíram para o ouvirem a serem curadas de suas enfermidades (5.15). Tendo o silêncio divino se estendido por muito tempo em Israel, o sussurro de Joao Batista no deserto agora torna-se em barulho ensurdecedor na pessoa de Cristo, pois seu ensino e manifestação claramente fez Nicodemos confessar dizendo que “ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3.2). Enquanto na terra, ele continuou o exercício de seu ofício profético através de instruções pessoais, em discursos, parábolas e exposições da lei e dos profetas; e em tudo isso ele ensinou concernente à sua própria pessoa e obra, e concernente ao progresso e comunicação de seu reino[34]. Berkhof salienta que era dever dos profetas revelar a vontade de Deus ao povo. Isto podia ser feito na forma de instrução, admoestação e exortação, promessas gloriosas ou censuras severas. Eles eram os monitores ministeriais do povo, os intérpretes da lei, especialmente nos seus aspectos morais e espirituais. Era seu dever protestar contra o mero formalismo, acentuar o dever moral, fazer ver a necessidade do serviço espiritual e promover os interesses da verdade e da justiça. Se o povo se afastava das veredas do dever, eles tinham que chamá-lo de volta à lei e ao testemunho, e anunciar o iminente terror do Senhor sobre os ímpios. Mas a sua obra também estava intimamente relacionada com as promessas da graça de Deus para o futuro. Era seu privilégio descrever as coisas gloriosas que Deus tinha em depósito para o Seu povo[35]. Cristo Jesus cumpre isto com mais elevada excelência, pois ele é a Palavra de Deus (Jo 1.1-2), o verdadeiro e último Profeta, não apenas por falar em nome de Deus, mas por ser Deus falando aos homens (Mt 7.28-29). Uma vez que os milagres estão, segundo Berkhof, relacionados com a economia da redenção, uma redenção que com freqüência eles preguram e simbolizam[36], notamos como Cristo torna isto mais claro quando, questionado pelos discípulos de João Batista sobre se Ele era o Messias (uma questão vinculada a redenção do povo, no pensamento judaico), Cristo diz “Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres, anuncia-lhes o evangelho” (Lc 7.22). As ações e as palavras de Jesus constituíam sinais indubitáveis de que ele era o Messias a quem João Batista e outros judeus piedosos esperavam, e de que o reino de Deus já estava em ação na história, mudando o destino de uma humanidade perdida em suas misérias e necessitada de restauração.[37] E “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando todo tipo de doenças e enfermidades” (Mt 9.35). O caráter redentivo dos milagres é demonstrado quando Jesus repreende severamente às cidades impenitentes “nas quais ele operava numerosos milagres, pelo fato de não terem se arrependido” (Mt 11.20).

Esse ministério profético de Jesus Cristo (que nos basta dizer até aqui em virtude do amplo e vasto conhecimento que todos têm de seu ministério e propósito) estender-se-á aos seus apóstolos, uma vez que são separados por Cristo para levarem a mensagem do Evangelho como fundamentos onde a Igreja se alicerçará posteriormente (Ef 2.20).

O ofício apostólico no Novo Testamento

A extensão da revelação específica dentro da nova administração do pacto, por meio de Cristo, embora tivesse a presença temporária de profetas, que interpretavam a lei e, de modo extraordinário, autoritativo e eficaz, apresentavam a vontade de Deus, nos apóstolos vemos uma vocação direta e semelhante aos profetas do Antigo Testamento. Os apóstolos são aqueles que Deus comissionou para a fundação da Igreja neotestamentária em sua doutrina, ensino e tradição, pelo que lemos que Cristo “depois de haver dado mandamentos por intermédio do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera, foi assunto aos céus” (At 1.2). A autoridade profética de Cristo é conferida a eles pelo poder do Espírito Santo e muitos sinais e feitos extraordinários eram realizados pelos apóstolos (2.43).

Em a grande comissão, Jesus diz “toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que tenho ordenado a vocês” (Mt 28.18). A primeira coisa a destacar é que a missão dos apóstolos é dada em virtude da autoridade de Cristo, que não é apenas aquele segundo Adão, pela qual representa a nova humanidade por ele restaurada, mas o mediador pelo qual a aliança entre Deus e esses eleitos são reconciliados. O escritor aos Hebreus nos explica que "Deus, que várias vezes e de diversas maneiras falou aos pais pelos profetas, falou-nos nestes últimos dias pelo seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, por quem fez também o universo." (Hb 1:1-2). O ápice da revelação é Cristo, pelo que muito atualmente (principalmente os que querem desordenadamente a contínua revelação e manifestação do Espírito, sem levar em consideração a economia de seu plano redentivo) problematizam a revelação de Deus aos apóstolos, sugerindo que, dado que a manifestação e revelação se estendeu até mesmo depois de Cristo, não seria errado a sua extensão até os tempos contemporâneos. O problema surge da incapacidade, destes novos teólogos, de imprimir o modo como a revelação de Deus se dá no Antigo Testamento ao Novo. Quando Moisés é chamado por Deus fica claro que nele se sumariza toda a estrutura da Lei, dos Profetas e dos Salmos, isto porque ele era o mediador-padrão da aliança, porque Deus disse a Moisés “vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar” (Êx 4.12, perceba como isso é comum no ministério profético: Dt 18.18; Nm 23.5; Is 49.2; 50.4; Jr 1.1; Ez 3.27; Zc 8.9), lembre-se que Deus já havia dado os sinais para realizar diante do povo e de Faraó e no final da Lei é mencionado a sua singularidade como profeta em Israel (Dt 34.10-12). Os eventos, sua explicação, assim como Deus revela a sua vontade em função do que foi feito são partes da revelação. E embora Cristo seja pessoal e historicamente a perfeita revelação de Deus, ele mesmo não aplicou, explicou e interpretou toda a revelação de si mesmo aos seus discípulos (pelo menos naquele momento), pelo que lemos Jesus afirmar “tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora” (Jo 16.12).[38] Uma vez que Cristo seria morto, ressuscitado e elevado aos céus, o Espírito viria e explicaria todos aqueles atos redentivos, assim como advertiria a Igreja, por meio deles sobre como deveriam proceder em resposta à sua obra. João Calvino, comentando este texto diz que:

... ele [Cristo] os convida a serem joviais e corajosos, seja qual fosse sua presente fraqueza. Mas como nada mais havia senão a doutrina em que pudessem confiar, Cristo os lembra de que a confiara à capacidade deles. No entanto, para levá-los a esperarem que logo depois obteriam uma instrução muito superior e mais abundante, é como se quisesse dizer-lhes: “Se o que ouvistes de mim ainda não for suficiente para confirmar-vos, sede um pouco mais pacientes; pois antes de muita delonga, tendo desfrutado do ensino do Espírito, de nada mais necessitareis; ele removerá de vós toda ignorância que ainda vos resta[39].

 O derramar do Espírito Santo prometido por Joel deve ser entendido por essa perspectiva. Embora não houvéssemos detalhado os diversos modos em que Deus se revelou no período da revelação progressiva do pacto, se o leitor leu até aqui, não resta dúvidas de que os modos revelacionais de Deus eram visões, sonhos, teofanias etc., tudo isso sob medida e oficiais medianeiros de Deus para com o povo, porém quando lemos a promessa de Jeremias dizendo "Porém este será o pacto que eu farei com a casa de Israel depois aqueles dias, diz o Senhor: Eu colocarei minha lei no seu íntimo, e a escreverei nos seus corações, e serei o seu Deus, e eles serão meu povo. E eles não ensinarão mais cada homem a seu próximo e cada homem a seu irmão, dizendo: Conhecei ao Senhor; porque todos conhecerão a mim, desde o menor até o maior deles, diz o Senhor, pois eu perdoarei a sua iniquidade, e não me lembrarei mais do seu pecado." (Jr 31:33-34) e mais a frente "E eu lhes darei um coração, e um caminho, para que eles possam me temer para sempre, para o seu bem, e dos filhos após eles. E eu farei um eterno pacto com eles, que eu não me desviarei de fazer-lhes o bem. Mas eu colocarei meu temor nos seus corações, para que eles não se afastem de mim." (Jr 32:39-40), ou quando lemos Ezequiel profetizar dizendo "Um novo coração também vos darei, e um novo espírito eu colocarei dentro de vós, e eu tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos darei um coração de carne. E eu colocarei o meu espírito dentro de vós, e vos farei andar nos meus estatutos, e guardareis os meus juízos, e os fareis." (Ez 36:26-27) e vemos a indicação do autor aos Hebreus apontar Cristo como o cumprimento destas profecias (Hb 8.1-13), a ideia de Joel aqui não é descrever o modo como Deus se revelará, mas enfatizar a extensão desta revelação na Nova Aliança, contrapondo a inferioridade com que Deus se manifestava na antiga dispensação, por esta razão diz ele: "E acontecerá que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos sonharão sonhos, e vossos jovens verão visões. E também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu espírito." (Jl 2:28-29)[40].

O caráter profético aplica-se ao ministério dos apóstolos, pois a eles foram ordenadas as palavras que ensinassem (Mt 28.18) como foi a base da Igreja em seu ensino (At 2.42), logo, a continuidade da revelação neles e, evidentemente os sinais. Note que Paulo não se desvia desta linha ao relacionar a sua autoridade à condução dos gentios na piedade, uma vez que ele diz "… eu não ousaria falar alguma coisa que Cristo não tenha feito por mim, para fazer dos gentios obedientes, por palavras e por obras, pelo poder dos sinais e maravilhas, através do poder do Espírito de Deus; …" (Rm 15.18,19) e finalizando a sua epístola diz “… àquele que é poderoso para vos confirmar, segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério mantido em segredo desde o início do mundo, mas que agora se manifestou e pelas escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, se fez conhecido a todas as nações para obediência da fé” (Rm 16.24,25), aos Gálatas, lemos “eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1.12), é interessante que Paulo usa o Espírito Santo e suas extraordinárias operações para questionar se isto é feito pelas obras da Lei ou pela pregação do evangelho (Gl 3.5), usando a evidência dos milagres para demonstrar a transição da antiga para a nova dispensação da graça, como vemos na epístola aos Hebreus “Deus também lhes foi por testemunha, com sinais e maravilhas, e com diversos milagres e dons do Espírito Santo, de acordo com sua própria vontade?” (Hb 2:4), assim como usa para validar o seu ministério apostólico, pois ele se defende de seus acusadores dizendo "… os sinais de um apóstolo foram manifestos entre vós com toda a paciência, por sinais, maravilhas e poderosos feitos" (2Co 12:12). Aos Colossenses, Paulo assevera que se tornou ministro "… segundo a dispensação de Deus, que me foi concedida para convosco, para cumprir a palavra de Deus;" (Cl 1:25) e qual a finalidade de tudo isto? Ele explica dizendo “a quem anunciamos, admoestando a todo o homem, e ensinando a todo o homem em toda a sabedoria; para que apresentemos todo o homem perfeito em Cristo Jesus;” (Cl 1:28). Por esta razão, se o fundamento da Igreja é a doutrina profética e apostólica, é necessário que essa doutrina tivesse sua inteira infalibilidade antes que a Igreja começasse a existir[41]. Por meio do ministério extraordinário dos profetas e apóstolos, o Espírito entregou o cânon de Cristo por inspiração, constituindo a comunidade da nova aliança; por meio do ministério comum dos pastores, o Espírito guia a igreja por iluminação à medida que ela é formada e normatizada por essa constituição[42].

CONCLUSÃO

Este breve artigo tem uma proposta [modesta e introdutória], trazer os fundamentos bíblicos da teologia reformada sobre o cessacionismo, pois sendo que os dons visam um fim proveitoso, estes dons extraordinários se ordenam à finalidade redentiva de edificar a Igreja no conhecimento da verdade, sendo, portanto, de natureza fundacional e não contínua na Igreja. Eles não estão associados ao montanismo, ao anabatismo e ao pentecostalismo, mas à Igreja de Jesus Cristo em seu período inicial, que pelo poder do Espírito, demonstrou aos judeus a nova dispensação da graça que havia chegado pela obra de Cristo e a entrada dos gentios a esta obra salvadora, conforme o plano divino estabelecido da eternidade.



[1] O termo fundamento usado aqui em grego é θεμέλιος que aponta para a ideia de fundação, portanto, não é imprudente inferir daqui a singularidade deste período revelacional que se desenvolve em todo o Antigo e Novo Testamentos [há um debate sobre a natureza desta construção gramatical τν ποστλων κα προφητν, que pode ser lida em Wayne Grudem, O Dom de Profecia no Novo Testamento e Hoje (São Paulo: Vida Nova, 2014) — pág. 423-443]. Isto porque, a ideia de fundamento já estava claramente latente na Lei e nos Profetas, uma vez que lemos que Moisés é orientado por Deus a escrever uma canção que seria um testemunho contra o povo da Aliança, o profeta declara que “Ele é a rocha! Suas obras são perfeitas” (Dt 32.4) e como vemos a ideia de edificação associado ao templo, a Casa do Senhor (1Rs 5.17; 6.1; Es 5.16), o profeta Isaías usa analogamente o mesmo conceito para anunciar a pedra que poria em Sião como alicerce, pedra preciosa de esquina, de firme fundamento (Is 28.16, a expressão firme fundamento aqui é o termo hebraico מוּסָ֣ד posta duas vezes denotando ênfase e tendo como sentido básico a noção de estabelecimento, fundação. O fundamento que Deus coloca em Sião é seguro, inabalável e divinamente estabelecido — não há dúvida quanto à sua confiabilidade) e mais a frente prediz que os alicerces com safira (Is 54.11) e ainda neste texto lemos “teus filhos serão ensinados do Senhor” (v.13), a mesma que esmiuçou o ferro, o bronze, a prata e o ouro no sonho de Nabucodonosor (Dn 2.45).

[2] Sendo Deus a fonte primária do qual todas as coisas procedem, fica evidente que ele possui conhecimento das coisas criadas e possíveis em sua essência de modo primário, como diz Berkhof, Ele conhece o universo como ele existe em Sua própria idéia anterior à sua existência como realidade nita no tempo e no espaço (Teologia Sistemática [recurso eletrônico], pág. 92), análogo ao arquiteto que conhece o prédio que constrói antes mesmo daquele que entrará e comprará o imóvel edificado.

[3] Isto significa que Deus não adquire conhecimento por meio de observação, raciocínio ou aprendizado, mas o possui de forma imediata e inerente. Ao descobrir o valor de uma variável em uma equação, precisamos de um processo de isolamento por parte da incógnita, Deus faz isso sem nenhum processo, mas imediatamente. Enquanto um médico precisa realizar exames para diagnosticar uma doença, Deus já conhece o estado do paciente sem necessidade de qualquer mediação

[4] Por simultâneo, queremos dizer que o conhecimento de Deus não tem sucessão ou passagem de tempo, mas, como afirma o reverendo Dr. Héber Campos, Deus vê todas as realidades em sua totalidade e não pouco a pouco, ou de modo sucessivo (O Ser de Deus e seus atributos, 2002, pág. 223).

[5] CAMPOS, 2002, pág. 17

[6] Ibid, pág. 17

[7] Johannes Maccovius diz que há uma diferença entre a ordem transcendental e predicamental. Esta diz respeito à ordem das criaturas, que está sujeito às categorias da realidade criada e lembre-se, aqui Maccovius reflete o pensamento de Aristóteles das categorias: substância (οσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (πο, ubi), tempo (πότε, quando), posição (κεσθαι, situs), posse (χειν, habitus), ação (ποιεν, actio), paixão (πάσχειν, passio). Enquanto Deus, transcende todos esses predicamentos ou categorias, por isto o nome, ordem transcendental, pois ele transcende todas essas coisas – para mais informações deste assunto, consultar o livro Discurso Escolástico: distinções, regras teológicas e filosóficas; tradução por Frankle Bruno e Francisco Tourinho — São Luís, MA. Editora Theophilus, 2023, pág. 235-6)

[8] Quando lemos as Sagradas Escrituras, notamos como o conhecimento está intimamente ligado ao relacionamento; peguemos o exemplo dos filhos de Eli que, segundo as Escrituras, “não se importavam com o Senhor” (1Sm 2.12), a expressão “se importavam” é o verbo hebraico יָדְע֖וּ de יָדַע que significa “conhecer”. Essa expressão aparece muitas vezes na Escritura muito mais que mero conhecimento intelectual, usado também como eufemismo para relação sexual (Gn 4.1,17; 19.5 [a ARA traz a ideia de abuso sexual neste texto]; 1Rs 1.4). Isaías descreve que dado o castigo de Deus sobre o Egito seguido de sua redenção e lemos “E o Senhor se dará a conhecer ao Egipto e os egípcios conhecerão ao Senhor naquele dia, e o adorarão com sacrifícios e ofertas, e farão votos ao Senhor, e os cumprirão” (Is 19.21). Note que o conhecimento segue-se a uma reação positiva dos egípcios para com Deus, indicando culto sincero e relacional “adorarão... farão votos... cumprirão”. O salmista diz “Seja Deus gracioso para conosco, e nos abençoe, e faça resplandecer sobre nós o rosto, para que se conheça na terra o teu caminha, e, em todas as nações, a tua salvação” (Sl 67.1-2), novamente vemos o conhecimento atrelado, à salvação, redenção e, portanto, um relacionamento genuíno com Deus. Quando o povo quebrou o pacto com Deus, entregando-se a impiedade, Deus diz pela boca do profeta “O boi conhece o seu proprietário, e o jumento, o cocho posto pelo dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ah, nação pecadora, povo carregado de maldade, descendência de malfeitores, filhos que praticam a corrupção! Deixaram o SENHOR, desprezaram o Santo de Israel, afastaram-se dele.” (Is 1:3-4). Não nos percamos, os exemplos são vários, mas podemos sumarizar a ideia de conhecimento ao conceito de relacionamento, interação e obediência. Podemos dizer também que o conhecimento está estritamente ligado à ideia de eleição, quando lemos o apóstolo dizer “Deus não rejeitou o seu povo, ao qual conheceu de antemão” (Rm 11.2), note que o verbo conhecer aqui (em grego προέγνω, de προγινώσκω; LouwNida: escolher ou selecionar antes de algum outro evento) está em contraponto com o verbo rejeitar.

[9] Note o versículo 17: κα δν ερνης οκ γνωσαν (lit. e o caminho da paz não conhecem), onde o verbo γνωσαν é uma tradução da Septuaginta para יָדָ֔עוּ.

[10] OWEN, John. O Espírito Santo; 1.ª Edição; eBook. Os Puritanos, 2013 — pág. 49

[11] GRONINGEN, 1995, pág. 54, 55

[12] GRONINGEN, 2006, pág. 13

[13] BRASIL, Paulo. A igreja no Velho Testamento. 1ª ed. [Transcrição da palestra proferida pelo Pr. Paulo Brasil por ocasião do SIMPÓSIO REGIONAL OS PURITANOS em Recife/fevereiro/2006] Recife, PE. Os Puritanos, 2013 — pág. 17

[14] O aspecto providencial de Deus nesse período não pode ser esquecido; não deve lidar com essa concorrência como que se houvesse um sinergismo em termos de salvação, uma vez que a iniciativa do pacto e o ato redentivo veio de Deus ao povo.

[15] ERIKSON, Millard. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015 (pág. 165)

[16] VOS, Geerhardus. Teologia bíblica, antigo e novo testamentos; traduzido por Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2010 — pág. 20

[17] VOS, 2010, pág. 16

[18] GRONINGEN, 1995, pág. 59

[19] Ibid, pág. 59

[20] Ibid, pág. 59

[21] Ibid, pág. 60

[22] A partir desta investigação, temos um fundamento para aquilo que os divinos de Westminster estabeleceram ao dizer que “todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela” (CFW 1.6).

[23] A expressão hebraica usada neste contexto para se referir ao profeta é נָבִיא que significa porta-voz, orador. Gisbertus Voetius [Selectarum disputationum theologicarum, Ultrajecti: apud Joannem à Waesberge, II, pág. 1038] dirá que é um termo que concorda com os caldeus ou sírios e os árabes, os quais, após Maomé, chamam especialmente o seu profeta אלנביא. Ocorre também no Targum o termo נְבִיוּת (Nm 11.29; Pv 30.1), o conceito era amplamente conhecido na antiguidade oriental como alguém intimamente ligada aos deuses. Em grego a expressão comum, relativa ao termo hebraico, é προφτης, do verbo πρόφημι que em sentido geral aponta a ideia de intérprete ou declarador [An Intermediate Greek-English Lexicon — Henry George Liddell/Robert Scott, 1889]. Porém, há outros termos que podem são sinônimos nas Escrituras que apontam para os profetas: רֹאֶה é um termo alternativo (1Sm 9.9) que significa aquele que vê, Samuel e Asafe são chamados de videntes (1Cr 9.22; 2Cr 29.30). Os profetas Elias e Eliseu são chamados de אִישׁ אֱלֹהִים homem de Deus” (1Rs 17.24; 2Rs 4.9).

[24] SMITH, Ralph Allan. Estrutura pactual da Bíblia [recurso eletrônico], 1ªed. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2020 — pág. 22

[25] HENRY, Matthew. Comentário Bíblico de Matthew Henry: Antigo e Novo Testamento (6 vols). Rio de Janeiro: CPAD, 2006 (1:232)

[26] FARRAGINIS, D. A. In Exo annotationvm particula, per Leonem luda er Galparem Megandrum ex ore Zwingli er aliorum Tiguri Deuterotarum comportata. Tiguri: Ex edibus Christophori pros chauer, 1537. — pág. 56

[27] O termo servir (hb. תַּעַבְדוּן) aqui é o mesmo para adorar. Ralph Smith salienta o significado deste verbo עבד como termo aplicado ao escravo caseiro e ao súdito ou vassalo de um suserano. Entretanto, a ênfase não é tanto na condição servil do adorador como na função de executar a vontade do senhor. O vassalo habita a casa ou o reino do senhor. No contexto de adoração, a palavra se refere à condição humilde e ao desempenho fiel do trabalho dado ao adorador [Ralph L. Smith, Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida Nova, 2001 — pág. 302].

[28] WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento, uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015 — pág. 411

[29] O objetivo da política e das ações de Acabe e Jezabel era promover Baal como a divindade nacional de Israel, em lugar de Yahweh. A disputa da qual Elias sai vencedor diz respeito a qual divindade é rei — qual é a mais poderosa. No material cananeu disponível na literatura antiga (particularmente as informações fornecidas pelas tábuas ugaríticas), Baal é o deus da tempestade e dos relâmpagos e é responsável pela fertilidade da terra. Ao reter a chuva, Yahweh está demonstrando o poder de seu senhorio na área específica da natureza em que Baal supostamente dominaria. Dar esse aviso de antemão a Acabe é o meio pelo qual o senhorio e o poder de Yahweh estão sendo retratados. Se Baal é o provedor da chuva e Yahweh anuncia que irá contê-la, a disputa está em andamento. WALTON, John H. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2018 — pág. 488

[30] VERMIGLI, Pietro Martire; WOLPHIUS, Johannes. Melachim, id est, Regum libri duo posteriores cum commentarijs. Tiguri: Excudebat Christophorus Froschoverus, mense Martio, 1571 — pág. 141

[31] Ibid, pág. 141

[32] Ibid, pág. 141

[33] Ibid, pág. 151

[34] Charles Hodge, Teologia Sistemática, trad. Valter Martins, 1a edição. (São Paulo: Hagnos, 2001), 829.

[35] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, trad. por Odayr Olivetti [recurso eletrônico]. (Campinas: Luz Para o Caminho, 1990), 568.

[36] Ibid, 275

[37] Darío Andrés López Rodríguez, “Lucas”, in Comentário Bíblico Latino-Americano, org. C. René Padilla et al., trad. Cleiton Oliveira et al., 1. ed. (São Paulo: Mundo Cristão, 2022), 1301.

[38] A expressão grega ο δνασθε βαστζειν ρτι pelo contexto, não se refere à incredulidade típica dos ímpios, mas a uma limitação pedagógica dos próprios discípulos, análoga àquela circunstância, pois momentos antes, Jesus ao falar do Espírito da Verdade que eles receberiam para a compreensão daquilo que faltava ensinar, disse que “o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece” (14.17), logo depois, ele reforça o caráter redentivo a qual o Espírito Santo iria ser designado a eles, não os deixando órfãos, nem ignorantes, mas nutriria a relação entre eles e Deus, levando-os obedecer os seus mandamentos, pelo que novamente diz, “mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (v.26). Diante disto, embora o verbo βαστάζω tenha a ideia de tomar com as mãos, levar e suportar em seu sentido mais primário, a ideia de suportar no texto indica aceitação, próximo do sentido do verbo δέχομαι, pelo que lemos ψυχικς δ νθρωπος ο δέχεται τ το Πνεύματος το Θεο·pois, o homem carnal não aceita as coisas do Espírito de Deus (1Co 2.14). O grande problema com esse ponto de vista pode estar associado a questão da regeneração, mas respondemos que embora Pedro dissesse que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo (e isso só foi possível por meio da revelação do Pai), será que havia ali, naquele momento a compreensão total, plena e cabal de toda a revelação dessa verdade? O próprio Jesus diz que eles conhecem o Espírito (Jo 14.17), mas Jesus precisava ser glorificado para que algo ainda mais amplo e completo fosse anunciado. Tomé, discípulo de Cristo, só acreditou na ressurreição de seu mestre após vê-lo com suas mãos cravadas (Mt 16.17). Os discípulos na hora da morte apresentam uma fraqueza que os fazem fugitivos perante aquela dura e pesada adversidade que Jesus Cristo enfrentava (Mc 14.50). Ora, se os próprios fatos já testaram duramente a fé dos discípulos, revelando sua fragilidade, quanto mais difícil seria para eles suportar o peso de tais verdades antes mesmo de testemunharem sua realização. Mas vale especificar que a prioridade do texto é ressaltar a incapacidade de um entendimento claro das verdades cristãs àquela altura, “Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.14). Embora já regenerados e crentes, os discípulos ainda não podiam assimilar os desdobramentos da cruz e da nova aliança, pois tais verdades estavam condicionadas à realização dos eventos salvíficos.

[39] CALVINO, João. O evangelho segundo João (Vol. 2). São José dos Campos, SP: Fiel, 2015 — pág. 155

[40] Os diversos modos de profecia, que não eram catalogados como tipos ou gêneros, mas tudo entendido como a clara manifestação de Deus a pouco homens para ministrarem ao povo de Deus, deixa de ser algo de ofício, e passa a ser algo que vai habitar nos corações de seus filhos, pelo que João diz "Porém a unção que vós recebestes dele permanece convosco, e não tendes necessidade de que homem algum vos ensine; mas como a mesma unção vos ensina todas as coisas, e é verdade, e não mentira, como ela vos ensinou, vós haveis de permanecer nele. E agora, filhinhos, permanecei nele; para que, quando ele se manifestar, possamos ter confiança, e não sejamos envergonhados diante dele em sua vinda." (1Jo 2:27-28). O apóstolo associa essa unção ao perfeito entendimento das coisas relativas à salvação em detrimento daqueles que, por meio de elementos fora da tradição apostólica, queriam se denominar superiores, os antigos gnósticos. Ora, uma vez que desde o princípio, a ideia de revelação está associada ao conhecimento de Deus, tendo em vista às coisas relativas à redenção, sugerir uma relação à parte deste pressuposto bíblico, está claramente fora de cogitação. Perceba o aspecto contínuo do verbo μένω no texto, sugerindo através da expressão μένετε ν ατ a ideia de continuidade da permanência do Espírito nos crentes. Anteriormente, o apóstolo diz “vós tendes a unção do Santo, e sabeis todas as coisas” (1Jo 2.20).

[41] CALVINO, João. As Institutas, 1.7.2

[42] Horton, Michael. Doutrinas da fé cristã (1ªed.). Cultura Cristã, 2016 — pág. 923

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