terça-feira, 2 de abril de 2024

PROLEGÔMENOS (1) | DEFINIÇÃO, NATUREZA, TIPOS E FONTES DA TEOLOGIA SAGRADA

 


Há três elementos que são essenciais para a iniciação de uma ciência: (1) o objeto a ser estudo; (2) a fonte pelo qual se estuda o objeto; (3) o método mais eficaz para a determinada ciência. Dado o objeto de estudo, pressupõe a partir dele, princípios e pressupostos com o qual a ciência se fundamentará para a investigação do sujeito. Estabelecido o objeto de estudo, isto é, o sujeito a qual a ciência se dedica a estudar, os métodos e as fontes devem contribuir para a compreensão do objeto e, por isto, surge a necessidade de uma disciplina propedêutica à própria ciência. Esta disciplina com o qual se esclarece o sujeito, suas fontes e métodos denomina-se prolegômenos.

Coexiste juntamente com os elementos essenciais de uma iniciação, um desafio ainda maior, a saber, se esta ciência que o iniciante irá investigar é mesmo o assunto com o qual se agrada e quer se dedicar integralmente. Certamente, o aluno não entra em uma faculdade sem ao menos saber de que assunto trata sua formação e qual a finalidade para que se formará. Aqui o esforço é triplo: (1) qual o assunto de nossa formação? (2) qual a finalidade de se formar nela?  (3) e quais são os requisitos essenciais de um estudante sobre aquela determinada formação? Percebam, e logo mais será explicado, que não se deve confundir o objeto com o assunto, nem mesmo a fonte com a finalidade, e nem mesmo o método com os requisitos. Embora estejam, respectivamente, associados uns aos outros, não são unívocos (iguais) por definição. O objeto, a fonte e o método são elementos intrínsecos da ciência, enquanto o assunto, a finalidade e os requisitos são elementos extrínsecos.

DEFINIÇÃO DE TEOLOGIA

O debate em torno do assunto, que os escolásticos denominavam sujeito da disciplina, tem em vista a insatisfação moderna com a definição etimológica e histórica da palavra teologia, os antigos tinham por princípio aristotélico que, segundo as leis do método acurado, o uso e o verdadeiro sentido dos termos devem antes ser explicados, pois palavras são os tipos das coisas, devendo informar algumas coisas concernentes ao termo “teologia” antes de sua abordagem propriamente dita[1]. A palavra teologia[2] pode-se dizer em dois sentidos: amplo e estrito.

Sentido Amplo corresponde ao aspecto subjetivo do objeto, tendo em vista que o homem carrega em si um sensus divinitatis com o qual compreende a existência de um ser divino. Esta compreensão carrega em si dois elementos:

(1) o aspecto inato, com o qual atributos de Deus são tão claramente seus que não são questionados como propriedades de seu Ser;

(2) o aspecto adquirido, com o qual de modo discursivo o homem chega ao conhecimento do ser divino, dentro das delimitações de sua própria razão.

Neste sentido amplo, o homem compreende a divindade de modo corrompido, devido a sua natureza caída e neste caso, não deve ser tratado propriamente como ciência, pois tem em vista um objeto ideal. De acordo com Pannemberg, o termo designa o Logos que traz notícia a respeito da divindade em discurso e canto dos poetas (A República 379 a 5s.), neste caso, não se tratando de uma reflexão filosófica, mais uma descrição mitológica dos gregos da antiguidade[3]. Os pagãos da antiguidade desenvolveram as bases de suas religiões em histórias poéticas ou contos populares que se desenvolveram no seio das comunidades de sua nação, por exemplo, a mitologia grega que obteve forte influência do literato Homero mostra claramente que o homem é criativo na difusão de ideias, conceitos e enredos sobre a divindade, fragmentando-a em vários deuses, atribuindo a eles qualidades e defeitos humanos e suas atividades no mundo. Aristóteles, por sua vez, usa o termo para nomear a disciplina que hoje é mais conhecida como metafísica. Turretini diz que o Filósofo divide a filosofia teórica em três partes: física (physikên), matemática (mathêmatikên) e teológica (theologikên)[4].

Sentido estrito compreende a teologia como o estudo do Deus verdadeiro, com o qual se revela por meio de sua Palavra, portanto, o conceito aponta para uma ciência, pois trabalha com um objeto real e não apenas um conceito subjetivo intrínseco ao homem. Nele, o homem compreende a divindade a partir de duas causas:

(1) causa instrumental, que é a revelação divina com o qual objetivamente Deus torna-se conhecido ao homem;

(2) causa eficiente, que é a própria operação do Espírito Santo que regenera, habilita e santifica o homem com o conhecimento de Deus.

Após a ascensão de Cristo aos céus, os apóstolos comunicam e transmitem o ensino de Cristo, pregando o Evangelho e seguem como testemunhas fiéis de Jesus Cristo, e já nesse período, alguns fatores contribuíram para que os apóstolos se empenhassem na defesa do Evangelho, os judeus que se opuseram a pregação e buscaram combater os ensinos dos apóstolos (At 2.5-13; 4.1-4; 5.17-21; 7.54-60), o que desencadeou os discursos de Pedro, a defesa dele e João no Sinédrio, a prisão destes e o discurso de Estevão que causou a sua morte. Os que se convertiam ao Evangelho, tentavam introduzir os costumes judaicos, como impô-las aos gentios (At 15.1-5) e os apóstolos já alertavam sobre a existência de falsos mestres, crentes e profetas (Gl 1.6-9; Fp 3.17-19; 1Tm 4.1-5; 2Pe 1-22; 1Jo2.18-26; 4.1-6; 2Jo 7-11; Jd 3-4).

A partir do século II, com a morte dos apóstolos, os seus discípulos continuaram a resistir as heresias presente na Igreja, mas principalmente, contrastar as doutrinas do paganismo da época com a doutrina cristã, esses pais foram denominados de pais apologistas. O início da teologia, no período denominado patrístico, foi efeito dos ataques pagãos e judaicos às doutrinas cristãs, como também a existência de mestres falsos dentro da Igreja promovendo o erro e a mentira. Com efeito, a filosofia pagã foi a primeira opção a ser usada pelos Pais da Igreja para solidificar uma teologia cristã e, com a influência crescente do Cristianismo pelo número de conversões, a teologia se atrelou a filosofia grega, especialmente, a neoplatônica. Contudo, precisa-se ressaltar que o sujeito dos discursos patrísticos era, majoritariamente, sobre a pessoa de Cristo. Turretini dirá que João é enfaticamente intitulado de “teólogo”, visto que ousadamente asseverou a deidade do Verbo (tên tou logou theotêta, cf. Ap 1.2). Os demais pais aplicaram a Gregório de Nazianzo o título de “teólogo”, visto que ele demonstrou a divindade de Cristo em vários discursos. Por isso eles fazem certa distinção entre teologia (theologias) e economia (oikonomias). Com o primeiro termo designavam a doutrina da divindade de Cristo; com o segundo, a doutrina de sua encarnação. Theologein lêsoun é, para eles, o discurso sobre a divindade de Cristo (Eusébio, Ecclesiastical History 5.28 [FC 19:343; PG 20.512]; Basílio, o Grande, Adversus Eunomium 2 [PG 29.601]; Gregório de Nazianzo, Oration 31*.26, “On the Holy Spirit” [NPNF2, 7:326; PG 36.161] e Oration 38*.8, “On the Theophany” [NPNF2, 7:347; PG 36.320])[5].

A definição de teologia com o qual a teologia cristã se compromete a definir é de sentido estrito, mas pode-se definir a teologia de dois modos, a saber: (1) pela causa formal; (2) pela causa final.

Causa Formal a teologia é definida pelo seu objeto. Com isto, pode-se dizer que a teologia é aquilo que sua etimologia diz. Deve-se ter como objeto da teologia aquilo cujo termo aponta para nossa investigação. Ora, a biologia não pode ser outra coisa senão o estudo da vida e dos seres vivos, nem mesmo antropologia ter outro objeto de estudo, senão o homem e assim por diante. Certamente pode haver exceções, todavia, é da natureza dos estudiosos de um determinado assunto denominar sua investigação pelo objeto em que suas pesquisas se centralizam. E com isto, não só denominam a ciência, como também se denominam como investigadores de um determinado assunto, sujeito, ou mais claramente, do objeto de estudo, por isso as derivações biólogos, antropólogos e, no caso da discussão, teólogos (ou divinos).

Muitos autores definiram a teologia pela sua causa formal, isto é, apontando a definição para o sujeito da disciplina. Thomae Charmes diz que a teologia é um hábito da mente pelo qual, a partir de verdades reveladas imediata ou mediadamente, ou pelo menos a partir de uma única verdade revelada, diversas conclusões sobre Deus e assuntos divinos são deduzidas por meio de raciocínio[6]. Tomás de Aquino tende para a mesma ideia quanto, em resposta a uma objeção que acusa a teologia pela multiplicidade de assunto, afirma que deve-se afirmar que tudo o mais de que esta doutrina sagrada trata está compreendido no próprio Deus; não como partes, espécies ou acidentes, mas como a Ele se ordenando de algum modo[7]. Antes mesmo disso, ela já havia dito que na doutrina sagrada, tudo é tratado sob a razão de Deus', ou porque se trata do próprio Deus ou de algo que a Ele se refere como a seu princípio ou a seu fim. Segue-se então que Deus é verdadeiramente o assunto desta ciência[8].

Causa Final a teologia é definida pela sua finalidade. Logo, a ciência é definida pela sua necessidade de ser. Os nossos teólogos são os que mais propriamente a usam, a saber, comecemos com Johannes Maccovius que define a teologia como uma disciplina que trata do modo correto e feliz de viver eternamente[9]. Johannes Alsted em seu compêndio de teologia cristã, afirma que a teologia é a faculdade ou doutrina que torna o homem sábio e prudente para a salvação eterna[10]. Alsted não define a ciência pelo seu objeto, mas pela sua finalidade ao estudante, apontando claramente como que a revelação deve ser vista e investigada. Turretini define a teologia de modo a colocar as duas causas na definição da ciência sagrada afirmando que ela indica “um sistema ou corpo de doutrina concernente a Deus e às coisas divinas reveladas por ele, para sua própria glória e a salvação dos homens”[11].

A NATUREZA DA TEOLOGIA

Ao referir-se à natureza[12] da teologia, deve questionar o seu gênero e a que hábito da mente pertence. Com isto, Turretini diz que quanto ao gênero, deve-se distinguir entre a teologia enquanto objetiva ou subjetiva.

Objetiva, tratando a ciência do ponto de vista daquilo que é ensinado. Também é chamada de sistemática, em relação às partes e ao método de tratamento, é distribuída de várias maneiras, especialmente em didática e elêntica, ou positiva e escolástica. A primeira não está tão vinculada às regras lógicas, enquanto a segunda procede mais disciplinadamente com um método muito útil e antigo[13].

Subjetiva, tratando a ciência do ponto de vista do hábito da mente[14]. É um hábito sobrenatural; não simples, mas composto: daí ter vários nomes, como ciência, sabedoria e prudência (2Pe 3:18, Tg 3:17, Dt 4:6). Turretini dirá que considerando que ela trata de Deus como a causa primeira, assemelha-se à sabedoria. Considerando que ela contém os primeiros princípios, assemelha-se à inteligência. Considerando que ela demonstra conclusões, assemelha-se ao conhecimento. Considerando que ela dirige ações, assemelha-se à prudência. Considerando que ela edifica a igreja, assemelha-se à arte. Por isso, na Escritura, estes termos se lhe aplicam indistintamente: “inteligência” (SI 119.34,73*), “conhecimento” (SI 119.66; Is 5.13), “sabedoria” (1 Co 2.6,7), “prudência” (SI 119.98*). E. frequentemente, no livro de Provérbios (caps. 1 a 5), ela é chamada “arte”, visto que a doutrina da fé é chamada obra e construção sobre as quais se deve labutar (1 Co 3.11; 2Co 6.1)[15].

Ainda sobre a natureza da teologia, resta-nos perguntar se ela é uma disciplina teórica ou prática, isto é, a natureza da ciência quanto a seu tipo. Houve teólogos que defenderam a teologia como disciplina teórica, isto é, especulativa, como por exemplo, Henry de Ghent, Durandus e Joannes Rada. Em compensação, os escotistas geralmente acreditavam que ela era prática. Outros à tinham como afetiva, por criam que a teologia deveria conduzir o homem à caridade. Os tomistas ainda que pendesse para o aspecto especulativo, acreditava que a teologia era mista, opinião que é sustentada por Maccovius e Turretini, como boa parte dos escolásticos reformados. Há boas razões para acreditarmos nesta afirmação:

(1) a natureza do objeto, pois embora a teologia tenha um objeto que conduz à prática, a prática opera em torno dele;

 (2) a natureza da ciência, dado que as ciências inferiores podem ser estritamente especulativas ou práticas, mas a teologia, por ser de uma ordem superior, pode abranger tanto o aspecto especulativo quanto o prático;

(3) a finalidade do estudo, pois pode ser chamada de prática em relação ao seu fim último ou ao seu objeto. Embora aborde questões práticas, também trata de questões teóricas que constituem as doutrinas da fé cristã;

TIPOS DE TEOLOGIA

Já foi anteriormente exposto que a teologia pode ser definido em sentido amplo, onde existe um conhecimento natural, em parte verdadeiro e em parte falso, da divindade, e em sentido estrito, onde o conhecimento de Deus objetivamente é investigado. Procede desta distinção dois modos de ciência teológica: a teologia falsa e teologia verdadeira.

Teologia falsa é aquela que consiste em uma divindade formulada pela mente humana corrompida pelo pecado privada da verdade revelada. Disto, Alsted coloca neste gênero quatro tipos:

(1) a teologia dos pagãos, pois corrompem a glória de Deus e atribuem a criatura (Rm 1: 19-25), geralmente ela é dividida em duas: mítica, se fundamentam em mitos e contos populares, e filosófica, por meio da demonstração lógica

(2) a teologia dos judeus, que corrompem quase tudo do Velho Testamento com delírios talmúdicos e cabalísticos;

(3) a teologia do islâmicos, que têm a sua teologia compreendida no Alcorão, cheio de inúmeras futilidades e blasfêmias;

(4) a teologia dos pseudos-cristãos, ou hereges: como os arianos, anabatistas e semelhantes. Estes ou negam a Cristo ou, conservando o seu nome, distorcem e pervertem o ensino teológico.

Teologia verdadeira consiste na revelação divina que nos instrui sobre o ser e a vontade de Deus. Quanto a teologia verdadeira, podemos distingui-la entre:

(1) teologia arquetípica, isto é, aquela independente, infinita e totalmente perfeita, no intelecto divino;

(2) teologia ectípica, aquela análoga a primeira, no intelecto humano e, por isto, finita. Esta última divide-se em três:

(a) a teologia da união, que é o conhecimento das coisas divinas comunicadas à carne de Cristo;

(b) a teologia da visão, que é o conhecimento das coisas divinas nos anjos bem-aventurados e nas almas consagradas no céu;

(c) a teologia da revelação, que é o conhecimento das coisas divinas comunicado ao gênero humano nesta vida.

A teologia da revelação possui dois modos, que a teologia clássica a denominou de duplex veritatis modus (os dois modos de verdade):

(1) natural, que se ocupa com aquilo que pode ser conhecido de Deus, é tanto inata (das noções comuns implantadas em cada um) quanto adquirida (a qual as criaturas adquirem discursivamente).

(2) sobrenatural, pois seu primeiro princípio é a revelação divina no sentido estrito e é feita pela palavra, não por intermédio de criaturas.

FONTE DA TEOLOGIA

A fonte de uma ciência é aquele elemento que torna a investigação possível, pois é por ela que o objeto será investigado. Disto precisamos investigar quatro elementos adjacentes à ciência teológica antes mesmo de examinarmos a fonte da teologia: divindade, adoração, religião.

A divindade consenso universal que os homens tendem a ter como axioma, pelo qual os homens naturalmente concebem a ideia de um Deus. Hodge compreende que esse conhecimento inato que o homem tem de Deus se deve à nossa constituição como seres sensitivos, racionais e morais[16]. Calvino, por sua vez, chama esse conhecimento de sensus divinitatis e diz que Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade, da qual, renovando constantemente a lembrança, de quando em quando instila novas gotas, de sorte que, como todos à uma reconhecem que Deus existe e é seu Criador, são por seu próprio testemunho condenados, já que não só não lhe rendem o culto devido, mas ainda não consagram a vida a sua vontade[17]. A ideia de um criador é claramente demonstrada quando se parte do princípio de que a ordem das coisas se exige que haja um ordenador, como também os efeitos devem possuir causa. Dado que a natureza desta causa primeira transcende os limites do próprio ser humano, a ideia de divindade rapidamente sugere os conceitos de reverência e adoração, com o qual os homens são levados a servirem o seu Criador, glorificando-o de modo devido, isto porque há esta necessidade interna das criaturas, justamente por serem suas criaturas e Ele o seu Criador, sendo assim, o modo como os homens entendem a adoração e reverência a Deus denomina-se religião. Em suma, conclui-se que religião, adoração e reverência são termos que derivam da noção de divindade.

Dado que os homens apresentaram as mais vários modelos de religião, nisto vemos quão degenerado e alienado o homem se tornou de seu Criador, inventando para si os deuses de seu coração, aliado à sua vontade e em conformidade com suas próprias ideias. Nisto também vemos a inimizade em que se colocam ao Deus Verdadeiro, pois não somente estabelecem os próprios paradigmas da adoração que fazem, como acham odioso os paradigmas revelados por Deus, desprezam a natureza de seu ser, atribuem as criaturas e, às vezes a si mesmos, negando a sua Soberania. Concluímos, portanto, que a essência da falsa religião é contra o conhecimento de Deus, seus preceitos e sua lei, como também uma aversão a Ele e seu culto. A verdadeira religião, porém, direciona toda a mente fiel a Deus ao verdadeiro conhecimento de seu Ser e suas obras, e ensina os crentes ao culto ordenado e instituído por Deus. Se, de fato, a religião consistentemente implica uma relação com Deus, segue-se que essa divindade deve existir para a mente do crente, deve revelar-se e, portanto, deve ser, em alguma medida, cognoscível. Ou a religião é uma ilusão ou ela deve ser baseada na crença na existência, revelação e cognoscibilidade de Deus[18].

Nisto se fundamenta a teologia, uma ciência sagrada e sobrenatural que estuda ao Deus Verdadeiro e a sua relação com as criaturas, por Ele criadas e dirigidas. Nesta ciência estão contidas a história de redenção em que seu Ser e suas obras nos são reveladas, os preceitos pelos quais quer que andemos, suas promessas e ameaças, e a nossa real condição diante de Deus, tanto no estado original, quanto no estado caído, como também no estado regenerado e finalmente, glorificado. A revelação fundamenta o dogma, e as sistematizações dogmáticas ao ensinadas aos crentes, compreende-se por doutrina. De modo que toda a doutrina cristã se fundamenta na revelação divina, que em sua natureza, é dogmática e, portanto, autoritativa.

Revelação é aquele conhecimento transmitido por Deus aos profetas em que a religião se fundamenta e, portanto, a teologia procura estudar e sistematizar a fim de, naquilo que foi revelado, extrair o genuíno conhecimento de Deus. Em sentido mais elaborado, o conceito de "revelação" não significa mera transmissão e um conjunto de conhecimentos, mas sim a manifestação pessoal de Deus na história. Deus tomou a iniciativa por intermédio de um processo de autorrevelação, que atinge seu ápice e plenitude na história de Jesus de Nazaré[19]. A religião é essencialmente distinta da ciência, da arte e da moralidade, e isso acontece porque ela coloca o ser humano em relação não com o mundo ou com os demais seres humanos, mas com um poder sobrenatural, invisível, externo, embora ela possa conceber esse poder[20], e esta relação do homem com o sobrenatural é sustentada pela crença de um Deus pessoal, que se revela[21] e comunica-se com o homem. A revelação é de dois tipos:

(1) revelação geral, Deus revela-se a todas as criaturas pela sua criação sendo, como Erikson afirma, a comunicação que Deus faz de si mesmo a todas as pessoas, em todas as épocas e em todos os lugares[22], a qual podemos dividir o conhecimento que ele propõe por duas vias, a saber, a via intuitiva (conhecimento inato) e a via dedutiva (conhecimento adquirido).

(2) revelação especial, Deus se manifesta e se faz conhecido especificamente a pessoas e registra essa revelação para que ela se estenda ao seu povo, portanto, envolve a comunicação e as manifestações particulares de Deus a respeito de si para certas pessoas, em determinadas épocas, as quais se encontram à disposição hoje somente mediante a consulta a determinados escritos sagrados[23].

Os teólogos puritanos debateram entre si se todo conhecimento de Deus antes da Queda do homem era natural ou sobrenatural, mas todos concordavam que Adão possuía uma teologia natural. A confissão de Fé de Westminster afirma que “ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo[24]”.

Em suma, claramente, a fonte da teologia procede da revelação, geral e especial, Deus se torna conhecimento por meio de suas obras e pelos modos como ele se comunicou aos apóstolos e profetas.


[1] TURRETINI, François. Compêndio de teologia apologética (Vol.1). São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2011 [pág. 39]

[2] Etimologicamente, a palavra é composta pelos termos θεός (theos, Deus) e λόγος (logos, estudo ou discurso) que juntas significam “discurso de Deus”. Ao que parece, portanto, a teologia tem como sujeito de sua investigação, o Ser de Deus e todas as coisas em relação a ele.

[3] PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática (Vol. 1). Wolfhart Pannenberg; tradução: Ilson Kayser - Santo André; São Paulo: Editora Academia Cristã Ltda; Paulus, 2009 [pág. 25]

[4] TURRETINI, 2011 (Vol. 1, pág.40)

[5] TURRETINI, 2011 (Vol.1, pág. 40,41)

[6] CHARMES, Tomae. Ord. Capucin. SS. Theol. Profess., "Theologia Dogmatica, Cui Suis Locis Interjecte Accesserunt Annotationes et Additiones Asteriscis Distincte, Necnon Tractatus de Divina ac Supernaturali Revelatione, Opera J.-A. Albrand, Superioris Seminarii Parisiensis Missionum ad Exteros Ad Usum Sacre Theologiae Candidatorum," Tomus Primus, Liv , Parisiis: Apud Ludovicum Vivès, Bibliopolam, Via Vulgo Dicta Cassette, 23, 1856 – pág. 2

[7] AQUINO, Tomás. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. (Sum. Theol. I, q.1, art.8)

[8] Ibid, Sum. Theol. I, q.1, art.8

[9] MACCOVIUS, Ioannis. Communes Theologici: Ex omnibus ejus, quae extant, Collegiis, Thefibus per Locos Comm. disputatis, Manuscriptis antiquis, recentioribus, undiquaque sollicite conquisitis, collecti, digesti, aucti, Indice Capitum, Rerumque locupletati; Operâ & Studio Nicolai Arnoldi, SS. Theol. Doct. & Professoris in Academia Franequerana. (Editio postrema, ab innumeris pene mendis, quibus priores scatebant, repurgata). Amstelodami: Apud Ludovicum & Danielem Elzevirios, Arnoldi, N., & Veexte, E. (1667) – pág. 1

[10] ALSTED, Johann Heinrich. Compendium Theologicum, Exhibens Methodum SS Theologia Octo Partibus Absolutam, & Tribus Indicibus Instructam. Hanoviae: Sumptibus Conradi Eifridi, 1624 [pág. 2]

[11] TURRETINI, 2011 (Vol.1, pág. 41)

[12] A natureza de uma ciência deve ser definida como aquilo que o estudo é em sua essência, isto é, quais os elementos essenciais de nossa investigação. Podemos já deduzir, pela natureza do objeto, que a teologia não se trata de uma disciplina natural ou filosófica, mas sobrenatural e dependente do próprio objeto que investiga, pela necessidade da revelação.

[13] MARCK, Johannes. (1824). Christianæ Theologiæ Medulla Didactico-Elenctica, ex Majori Opere, Secundum Ejus Capita, et Paragraphos, Expressa. Philadelphia: Typis et Impensis J. Anderson, 13, N. Seventh Street – pág. 17

[14] Por hábitos da mente, deve-se ter em mente as distinções propostas por Aristóteles que são cinco: (1) a inteligência, em que o indivíduo divide as coisas na realidade distinguindo uma coisa de outra; (2) conhecimento, que a partir da inteligência, conclui verdades por meio de demonstração; (3) sabedoria, com o qual se conclui as coisas por meio dos primeiros princípios e causas últimas da realidade; (4) prudência, que é o hábito que dirige a prática humana ligadas a virtude; (5) a arte, com o qual os homens são dirigidos à prática visando algo que lhes é externo e com determinada finalidade.

[15] TURRETINI, 2011 (Vol.1, pág. 60)

[16] HODGE, Charles. Teologia sistemática; tradução Valter Martins – São Paulo, SP. Hagnos, 2001 (pág. 143)

[17] Institutas, 1.3.1

[18] BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada (Vol. 1) / traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012 (pág. 285)

[19] MCGRATH, Alister. Teologia sistemática, histórica e filosófica; tradução Marisa K. A. de Siqueira Lopes. São Paulo: Shedd, 2005 (pág. 247)

[20] BAVINCK, 2012 (pág. 285)

[21] Sobre os deuses, nas assim chamadas religiões naturais, C. P. Tiele nos diz que eles “se revelam por seus oráculos e profetas e por sinais e maravilhas que são observados ou supostamente observados na natureza, especialmente na abóbada celeste ou em algum desvio do curso ordinário dos eventos. Apesar disso, todas essas revelações, embora não sejam totalmente abandonadas e embora surjam novamente em uma forma modificada, são eclipsadas pela única grande revelação que é considerada como o resumo de toda a lei de Deus”. (C. P. Tiele, Elements of the Science of Religion, 2 vols. (Edimburgo e Londres: William Blackwood & Sons, 1897-99), 1, 131; apud BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada (Vol. 1) / traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2012)

[22] ERIKSON, Millard. Teologia sistemática / tradução Robinson Malkomes, Valdemar Kroker, Tiago Abdalia Teixeira Neto. - São Paulo: Vida Nova, 2015 (pág. 140)

[23] Ibidem, pág. 140

[24] CFW 1.1


domingo, 17 de março de 2024

DA TEOLOGIA SAGRADA, SEU OBJETO DE ESTUDO E SUA FINALIDADE ÚLTIMA PARA O CRISTÃO

 



O início de uma ciência está na delimitação de seu objeto, pois, no objeto é possível determinarmos os métodos mais eficazes para exaurirmos toda as informações possíveis dele. O cristianismo sempre se empenhou no conhecimento de Deus, de tal modo que, desde os pais da Igreja (que desenvolveram um conhecimento mais místico, pastoral e apologético da religião cristã) até nossos contemporâneos, fica claro nosso pressuposto de que Deus é o objeto do estudo que, já na patrística denominou-se teologia. Contudo, foi no século XIX que os teólogos, influenciados pela decadente filosofia moderna, especialmente das ideias de Immanuel Kant, começaram a questionar esse pressuposto que sendo abandonado com o tempo, resultou na decadência da própria ciência sagrada, com o advento do liberalismo.

DEFINIÇÃO DO TERMO

O debate em torno do assunto, que os escolásticos denominavam sujeito da disciplina, tem em vista a insatisfação moderna com a definição etimológica e histórica da palavra teologia, os antigos tinham por princípio aristotélico que, segundo as leis do método acurado, o uso e o verdadeiro sentido dos termos devem antes ser explicados, pois palavras são os tipos das coisas, devendo informar algumas coisas concernentes ao termo “teologia” antes de sua abordagem propriamente dita[1].

A origem do termo teologia na Antiguidade pagã

Etimologicamente, a palavra é composta pelos termos θεός (theos, Deus) e λόγος (logos, estudo ou discurso) que juntas significam “discurso de Deus”. Ao que parece, portanto, a teologia tem como sujeito de sua investigação, o Ser de Deus e todas as coisas em relação a ele. O termo passou a ser usado na história do pensamento humano para se referir a toda reflexão que tivesse a divindade como seu objeto. De acordo com Pannemberg, o termo designa o Logos que traz notícia a respeito da divindade em discurso e canto dos poetas (A República 379 a 5s.), neste caso, não se tratando de uma reflexão filosófica, mais uma descrição mitológica dos gregos da antiguidade[2]. Os pagãos da antiguidade desenvolveram as bases de suas religiões em histórias poéticas ou contos populares que se desenvolveram no seio das comunidades de sua nação, por exemplo, a mitologia grega que obteve forte influência do literato Homero mostra claramente que o homem é criativo na difusão de ideias, conceitos e enredos sobre a divindade, fragmentando-a em vários deuses, atribuindo a eles qualidades e defeitos humanos e suas atividades no mundo. Aristóteles, por sua vez, usa o termo para nomear a disciplina que hoje é mais conhecida como metafísica. Turretini diz que o Filósofo divide a filosofia teórica em três partes: física (physikên), matemática (mathêmatikên) e teológica (theologikên)[3].

O uso do termo no cristianismo primitivo

Após a ascensão de Cristo aos céus, os apóstolos comunicam e transmitem o ensino de Cristo, pregando o Evangelho e seguem como testemunhas fiéis de Jesus Cristo, e já nesse período, alguns fatores contribuíram para que os apóstolos se empenhassem na defesa do Evangelho, os judeus que se opuseram a pregação e buscaram combater os ensinos dos apóstolos (At 2.5-13; 4.1-4; 5.17-21; 7.54-60), o que desencadeou os discursos de Pedro, a defesa dele e João no Sinédrio, a prisão destes e o discurso de Estevão que causou a sua morte. Os que se convertiam ao Evangelho, tentavam introduzir os costumes judaicos, como impô-las aos gentios (At 15.1-5) e os apóstolos já alertavam sobre a existência de falsos mestres, crentes e profetas (Gl 1.6-9; Fp 3.17-19; 1Tm 4.1-5; 2Pe 1-22; 1Jo2.18-26; 4.1-6; 2Jo 7-11; Jd 3-4).

A partir do século II, com a morte dos apóstolos, os seus discípulos continuaram a resistir as heresias presente na Igreja, mas principalmente, contrastar as doutrinas do paganismo da época com a doutrina cristã, esses pais foram denominados de pais apologistas. O início da teologia, no período denominado patrístico, foi efeito dos ataques pagãos e judaicos às doutrinas cristãs, como também a existência de mestres falsos dentro da Igreja promovendo o erro e a mentira. Com efeito, a filosofia pagã foi a primeira opção a ser usada pelos Pais da Igreja para solidificar uma teologia cristã e, com a influência crescente do Cristianismo pelo número de conversões, a teologia se atrelou a filosofia grega, especialmente, a neoplatônica. Contudo, precisa-se ressaltar que o sujeito dos discursos patrísticos era, majoritariamente, sobre a pessoa de Cristo. Turretini dirá que João é enfaticamente intitulado de “teólogo”, visto que ousadamente asseverou a deidade do Verbo (tên tou logou theotêta, cf. Ap 1.2). Os demais pais aplicaram a Gregório de Nazianzo o título de “teólogo”, visto que ele demonstrou a divindade de Cristo em vários discursos. Por isso eles fazem certa distinção entre teologia (theologias) e economia (oikonomias). Com o primeiro termo designavam a doutrina da divindade de Cristo; com o segundo, a doutrina de sua encarnação. Theologein lêsoun é, para eles, o discurso sobre a divindade de Cristo (Eusébio, Ecclesiastical History 5.28 [FC 19:343; PG 20.512]; Basílio, o Grande, Adversus Eunomium 2 [PG 29.601]; Gregório de Nazianzo, Oration 31*.26, “On the Holy Spirit” [NPNF2, 7:326; PG 36.161] e Oration 38*.8, “On the Theophany” [NPNF2, 7:347; PG 36.320])[4].

AS INFLUÊNCIAS MODERNAS NA DELIMITAÇÃO DO OBEJTO DE ESTUDO DA TEOLOGIA

Todas as definições estavam, de certo modo, sendo conduzidos pela revelação divina, que toma como pressuposto a existência de Deus e a possibilidade de conhecê-lo. A revelação era o sustentáculo de todo o corpo de doutrinas existentes até então, e sendo uma ciência de natureza sobrenatural, era denominada a rainha das ciências. Com isto, a teologia não somente tinha uma finalidade em si mesma, como também um efeito marcante na vida dos estudantes de teologia, a saber, a piedade na qual devemos alcançar a fim de alcançar a Deus. O teólogo reformado Johannes Alsted em seu compêndio de teologia cristã, afirma que a teologia é a faculdade ou doutrina que torna o homem sábio e prudente para a salvação eterna[5]. Alsted não define a ciência pelo seu objeto, mas pela sua finalidade ao estudante, apontando claramente como que a revelação deve ser vista e investigada. Todavia, o surgimento do Iluminismo e a rejeição ao período escolástico configurou uma rejeição à metafísica, retirando Deus da ciência teológica como seu centro e tornando-o um Ser como um aspecto subjetivo ao homem religioso.

As novas bases epistemológicas da filosofia moderna

A epistemologia é um ramo filosófico que se preocupa em estudar a origem e natureza do conhecimento. De modo geral, o conhecimento era entendimento como a compreensão de uma realidade criada por Deus, experimentada pelo homem inicialmente, e aos poucos, essa mesma realidade era colocada dentro dos conceitos formais e abstratos desenvolvidos no intelecto humano, a lógica compreendia três operações dentro do próprio intelecto e fazia tanto da experiência quanto da razão, elementos formais e fundamentais para o conhecimento. Enquanto o período medieval consistia em dar a fé a devida razão de ser, conciliando-a com o intelecto humano, o período moderno foi a época de tensão entre a razão humana e o sentimento religioso. Essa tensão criou um dualismo entre os místicos (pietistas) e os racionalistas (iluministas). 

O iluminismo, encantado pelas novas descobertas científicas, decidiu acreditar que toda a realidade poderia ser entendido sem as luzes da religião, aliás, chamavam o período anterior de “era das trevas” por colocar a religião como elemento efetivo da ciência. O teólogo holandês Herman Bavinck explica dizendo que o iluminismo era um movimento que, virando suas costas a todo tipo de supranaturalismo, imagina encontrar neste mundo tudo aquilo que a ciência e religião, pensamento e vida, podem vir a se indagar[6]. Por outro lado, o pietismo foi uma resposta ao racionalismo iluminista presente na Europa, enfatizando a experiência e a devoção pessoal do crente, colocando este aspecto subjetivo como o centro de todo o conhecimento de Deus. Em suma, podemos afirmar justamente com Michael Horton que, o pietismo e o racionalismo conspiraram para tirar a ortodoxia de cena ao jogar a razão contra a fé, a doutrina contra a experiência prática e a moralidade, os meios de graça externos (a igreja e seu ministério formal da Palavra e do sacramento) contra a vida interior do cristão individual[7].

A força que mais contribuiu para a desconstrução da teologia sagrada foi Immanuel Kant. O primeiro obstáculo presente na filosofia kantiana consiste na sua epistemologia fenomenológica, onde não há uma real adequação do intelecto à coisa em si, mas apenas a apreensão humana da coisa enquanto percebível e manifestado ao homem. Kant nega a possibilidade de um conhecimento real das coisas, colocando todo o conhecimento humano à mera percepção dos fenômenos externos a eles. Dado que é transcendental toda pesquisa que não se ocupa dos objetos do conhecimento, mas dos modos de cognição, distintos da experiência, como também afirma que as percepções são matéria do conhecimento[8], Kant admite que ainda que seja possível um conhecimento intelectual, toda a base deste conhecimento está limitado à experiência sensível. O filósofo tomista Carlos Nougué, na primeira aula de sua escola diz:

Raciocinemos, se com Duns Scot pomos a vontade acima do intelecto, da inteligência. Se com o nominalismo a nossa inteligência já não faz aquilo para que ela é feita, ou seja, descobrir não as diferenças acidentais das galinhas, mas que todas elas são galináceas, têm a essência galinácea. Se não é para isso, o que nos resta? A dúvida metódica de Descartes. Primeiro o intelecto perdeu o trono, depois perdeu a razão de ser, ele tem de duvidar metodicamente. Alguém já disse com toda a razão que não há coisa mais infernal que duvidar metodicamente. Qual é o próximo passo? (Estou abreviando muito) É Kant. Já não conhecemos as coisas em si, apenas a casca das coisas, os fenômenos. E assim vamos até o fundo do poço, o fundo do abismo que é o pensamento atual. É neste ambiente de débâcle, de declínio da escolástica que surge a chamada ciência moderna.[9]

Portanto, a visão epistemológica de Kant já é produto de uma desconfiança da capacidade intelectual do homem de descobrir as coisas essencialmente, mas não somente isto, pois ela não somente é posta em dúvida como também, a partir desta desconfiança, é destronada de sua função de conhecer as coisas, senão por aquilo que é percebido na experiência sensível. As implicações desta decadente filosofia à teologia sagrada é devastadora, primeiro, pois torna o conhecimento de Deus impossível e a religião não se trata de uma relação entre Criador e criatura, mas apenas um efeito moral sobre os religiosos. Bavinck explica dizendo que esse filósofo chegou à conclusão de que o sobrenatural é inatingível para nós, seres humanos, pois nossa capacidade de conhecimento é vinculada às suas formas inatas e, portanto, limitada ao círculo da experiência[10]. Com isto, a moralidade e o sentimento religioso tornaram-se o ponto de partida e o objeto da teologia; os prolegômenos da filosofia religiosa cresceram em tamanho e influência em comparação com o conteúdo da teologia[11]. Kant baseou a teologia na moralidade e, com base na liberdade moral do homem, postulou a existência de Deus e a imortalidade[12].

A teologia liberal de Schleiermacher

O teólogo que mais recebeu influência da filosofia kantiana que foi Friedrich Schleiermacher. Sua teologia foi, em parte, uma tentativa de responder à crítica de Kant à religião, aceitando, ao mesmo tempo, a limitação que ele impunha sobre a razão[13]. O sentimento religioso é o ponto de partida da teologia, com a finalidade de oferecer uma teologia de natureza intuitiva. E embora ele tivesse uma oposição a filosofia iluminista, que fez com que a teologia seguisse uma proposta deísta, Schleiermacher também afirmava que a abordagem da ortodoxia levava a uma teologia autoritária que reprimia a criatividade humana e confundia os dogmas da igreja sobre Deus com o próprio Deus[14]. O foco era trabalhar as doutrinas cristãs fora dos ditames da ortodoxia e centralizar tudo no próprio ser humano, sendo o homem a referência primaz da teologia e, portanto, a sua experiência como o objeto do estudo teológico. Para Schleiermacher, a essência da religião encontra-se não nas provas racionais da existência de Deus, nos dogmas revelados de modo sobrenatural ou nos rituais e formalidades eclesiásticos, mas num elemento fundamental, distinto e integrativo da vida e da cultura humana[15].

Até o começo do século XIX era quase geral a prática de começar o estudo da dogmática com a doutrina de Deus, mas ocorreu uma mudança sob a influência de Schleiermacher, que procurou salvaguardar o caráter científico da teologia com a introdução de um novo método[16]. Uma vez que o ponto de partida da teologia parte da própria experiência humana, Deus é aquilo que é desfrutado por meio do sentimento e os dogmas são expressões subjetivas da consciência humana. Não se pode admitir uma objetividade na teologia liberal, pois o seu princípio não é eterno, mas temporal, não parte do criador, mas da Criatura. Consequentemente ela não depende da autoridade divina, mas está sujeita ao coração humano.

RESGATANDO OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA TEOLOGIA

Uma vez que se explicou as influências do período moderna na concepção da teologia cristã, resta-nos, diante desses sérios problemas, apontar algumas soluções, a saber: (1) Deus como o objeto de estudo; (2) a revelação divina como fonte do estudo; (3) a piedade como a finalidade do estudo.

Deus como objeto de estudo da teologia

 Deve-se ter como objeto da teologia aquilo cujo termo aponta para nossa investigação. Ora, a biologia não pode ser outra coisa senão o estudo da vida e dos seres vivos, nem mesmo antropologia ter outro objeto de estudo, senão o homem e assim por diante. Certamente pode haver exceções, todavia, é da natureza dos estudiosos de um determinado assunto denominar sua investigação pelo objeto em que suas pesquisas se centralizam. E com isto, não só denominam a ciência, como também se denominam como investigadores de um determinado assunto, sujeito, ou mais claramente, do objeto de estudo, por isso as derivações biólogos, antropólogos e, no caso da discussão, teólogos (ou divinos). Como diz o doutor Aquino, a doutrina sagrada, tudo é tratado sob a razão de Deus', ou porque se trata do próprio Deus ou de algo que a Ele se refere[17].

Deve ser, também, considerado a necessidade humana em conhecer a Deus. A ideia de um criador é auto evidente quando se parte do princípio de que a ordem das coisas se exige que haja um ordenador, como também efeitos possuem causa. Uma vez que esta noção do divino se faz presente em nós, imediatamente concluímos que se deve a este ser divino ao menos três atitudes primordiais: a reverência, a adoração e devida obediência. Mas de que modo isto seria possível se todo o estudo teológico parte da subjetividade humana? Não se nega o fato de que Deus é um ser superior e distinto de sua criação, transcendendo os limites de nosso ser e nos impõe terror tamanha pela sua infinitude e grandeza, razão pela qual nada mais nos vêm senão o ato de adorá-lo e engrandecê-lo, que logo, nos vemos, não por Ele, mas pela nossa própria consciência, advertidos a obedecê-lo. Todavia esse sentimento humano já pressupõe um conhecimento que homem possui de Deus e, portanto, a pessoalidade desse Deus Todo-Poderoso refuta a ideia do agnosticismo epistemológico de Kant, e consequentemente, esse efeito subjetivo que Schleiermacher toma por ponto de partida de sua teologia, por ter um conhecimento inato anterior como causa, não deve ser tomado como objeto de estudo da genuína teologia cristã.

A revelação divina como fonte do estudo teológico

O que deve ser observado é que a clareza com o qual Deus é apresentado na criação tem efeitos subjetivos na alma humana justamente por sua corrupção, que pelo pecado, negam o conhecimento de Deus, retiram dEle a sua glória e atribuem a criatura. Todavia, uma vez que o conceito de divindade é muito mais superior as especulações vazias dos seres humanos, concluímos que nenhuma religião será verdadeira se e somente se o seu conteúdo for divinamente revelado e expressamente concordante com a natureza do Deus que revelou. Se nós queremos conhecer Deus - pelo menos de uma maneira salvífica - ele deve condescender em se revelar em termos que possamos entender e aceitar pela sua graça. Portanto, essa abordagem é oposta ao racionalismo por um lado, e ao moralismo pós-kantiano e ao misticismo, por outro[18]. A antítese da religião verdadeira, portanto, é chamado de profanação, ou também, superstição. Uma vez que os deuses são falsos, a adoração e reverência a eles torna-se inútil e idólatra. A primeira, pois a direção em que é prestada a reverência e adoração é o vazio, o nada, o inexistente, o falso, já a segunda, pois todo esforço prestado à reverência e adoração não são dadas ao Deus Verdadeiro, mas ao deus que criaram no coração.

Não é à toa que Schleiermacher se viu forçado a negar o pecado original, a objetividade da religião e a própria natureza da revelação bíblica, pois quando se afirma a pecaminosidade humana, a existência de uma religião verdadeira e a revelação divina como fundamento desta religião, não há espaço para a experiência humana e o sentimento como pontos de partida da ciência teológica, embora ela exista realmente como efeito de causas que a antecedem, não como o ponto de partido propriamente dito. Com isto, o conceito de ortodoxia tem expressão significativa na piedade cristã, pois nenhum sentimento será o fator definitivo se a verdade expressamente revelada não a anteceder e gerá-la, se existe prazer mais requerido nas Escrituras como exercício da piedade é pela Palavra de Deus, seus ensinos e mandamentos.

A piedade como finalidade do estudo teológico

O princípio propedêutico da ciência sagrada em que somos obrigados a aderir consiste em admitir que nosso assunto, fonte e fim é o próprio Deus, o homem acabado é o princípio da teologia, pois ela é a ciência que ensina ao estudante “a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda a boa obra” (2Tm 3.16). O texto aponta para três princípios: (1) o princípio da caridade, na qual o homem age com boas obras; (2) o princípio da natureza, onde, pela Palavra, ele é aperfeiçoado; (3) o princípio do pertencimento, onde, pelos princípios supracitados, ele é identificado como homem de Deus. Limitado à “lei moral interior” (a verdade universal mais certa, Kant observou), o evangelho apenas pode ser descartado como tola superstição. Contrário às nossas intuições distorcidas, o evangelho não incentiva a nossa conquista do céu por meio de luta intelectual, mística e moral[19]. Os acadêmicos são versados nas mais altas competências intelectuais do conhecimento humano, mas o doutorado da teologia consiste na vida devota, sincera e firmada na verdade de Deus, não intuída da subjetividade humana, mas proveniente da revelação divina.

CONCLUSÃO

Não é sem motivo que o liberalismo teológico é um câncer para a Igreja de Cristo, pois ele se nega a comer o verdadeiro alimento dado por Deus, para tornar o ego humano sua própria vitamina, morrendo miseravelmente em uma religião sem Deus, pois não o conhece, nem se relaciona com Ele, pois não é pessoal, não O agrada, pois desconhece a sua vontade. Tudo isto torna-se uma realidade quando ao nos denominar teólogos, somos levados a colocar o nosso coração como ponto de partida e não o ser de Deus e suas obras.


[1] TURRETINI, François. Compêndio de teologia apologética (Vol.1). São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2011 [pág. 39]

[2] PANNENBERG, Wolfhart. Teologia Sistemática (Vol. 1). Wolfhart Pannenberg; tradução: Ilson Kayser - Santo André; São Paulo: Editora Academia Cristã Ltda; Paulus, 2009 [pág. 25]

[3] TURRETINI, 2011 (Vol. 1, pág.40)

[4] TURRETINI, 2011 (Vol.1, pág. 40,41)

[5] ALSTED, Johann Heinrich. Compendium Theologicum, Exhibens Methodum SS Theologia Octo Partibus Absolutam, & Tribus Indicibus Instructam. Hanoviae: Sumptibus Conradi Eifridi, 1624 [pág. 2]

[6] BAVINCK, Herman. A filosofia da revelação. Douglas Wilson, tradução Fabrício Tavares de Moares – Brasília, DF: Editora Monergismo, 2016.

[7] HORTON, Michael. Doutrinas da fé cristã. Michael Horton; traduzido por João Paulo Thomaz de Aquino. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2016 [pág. 69]

[8] KANNAGIESZER, C. L. Compendio della storia della Filosofia. Torino, 1843 [pág. 230, 231]

[9] NOUGUÉ, Carlos. Transcrição da Escola Tomista, aula 1. [pág. 9, 10]

[10] Bavinck, Herman. Dogmática reformada (Vol. 1). traduzido por Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2012

[11] Ibid, pág. 61

[12] Ibid, pág. 66

[13] GRENZ, Stanley J.; OLSON, Roger E. A teologia do século 20, Deus e o mundo numa era de transição. Cultura Cristã, 2003 [pág.48]

[14] Ibid, pág. 49

[15] Ibid, pág. 49

[16] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Edição Kindle. Louis Berkhof; trad. por Odayr Olivetti. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990. [pág. 28]

[17] AQUINO, Tomás. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. (Sum. Theol. I, q.1, art.7)

[18] HORTON, 2016 [pág. 56]

[19] Ibid, pág. 58


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