sexta-feira, 11 de julho de 2025

A DOUTRINA DA ELEIÇÃO POR JOHANNES MACCOVIUS


LOCI COMMUNES, CAP. XXVI, De Electione Dei æterna.

A eleição é o decreto de Deus concernente a certos indivíduos, considerados por Ele como possíveis de serem criados, permitidos a cair, e libertos dessa queda. A causa da eleição é o beneplácito de Deus.

Com efeito, a eleição, seja em relação ao fim, aos meios, ou a ambos conjuntamente, procede do beneplácito divino. Isto é evidente em Lc 12.32, donde se conclui que Deus age no tempo conforme decretou desde a eternidade. Ora, desde a eternidade aprouve-lhe dar o Reino. Que tal ocorre também quanto aos meios é manifesto em Mt 11.25–26 e Lc 10.21, onde Cristo afirma que tal foi o agrado de Deus: revelar a certos a via da salvação. Que ambos (meios e fim) procedem do beneplácito divino também é claramente exposto em Rm 9, onde se declara: “Não depende do que quer, nem do que corre”, etc., ou seja, não depende de que alguém se dirija por si mesmo ao fim ou aos meios, mas de que Deus os conceda àquele a quem quiser. Objeção Arminiana: Se fomos eleitos por beneplácito, então isso supõe algum movimento em Deus causado por alguma qualidade nossa. Pois, se lhe aprouve, é porque lhe fomos agradáveis; e ser agradável (beneplacere) é o mesmo que ser grato. Assim, fomos eleitos por sermos agradáveis. Resposta: Ao dizermos que fomos eleitos por beneplácito, não nos referimos ao objeto (isto é, ao eleito), mas ao propósito de Deus. A forma do decreto é esta: Quero criar certos indivíduos, possíveis de serem feitos por mim; permiti-los a cair; e desses mesmos libertá-los da queda e salvá-los por causa de Cristo.

Essa eleição de Deus é eterna.

Prova: Ef 1.4. Mas se objeta com base em 2Ts 2.13: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porquanto Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, mediante a santificação do Espírito e fé na verdade.” Aqui, dizem, “desde o princípioπ ρχς não pode significar desde a eternidade, pois o que é eterno é sem ρχή (princípio). Logo, desde o princípio significaria pouco depois dos inícios, do mesmo modo que expressões semelhantes são entendidas em Jo 8.44, onde se afirmar que “o diabo foi homicida desde o princípio”, e em 1Jo 3.8, “pecou desde o princípio”, isto é, desde pouco depois dos primórdios do mundo, quando foi corrompido e se tornou réu de hediondo homicídio. De fato, um paralelo dessa passagem em 2Ts se encontra em Ap 17.8, onde se diz que os eleitos estão inscritos no Livro da Vida “desde a fundação do mundo”. Resposta: Trata-se de um modo de falar frequente nas Escrituras, segundo o qual algo se diz “acontecer” quando se manifesta ou é declarado. Veja-se Pv 17.17. É desse modo que o Espírito Santo fala nesses textos, ao dizer que os eleitos são escolhidos π ρχς e inscritos no Livro da Vida desde a fundação do mundo, referindo-se não à eternidade essencial de Deus, mas a uma certa declaração externa da eleição feita ab aeterno.

Ele alude, nesses lugares, àquela célebre promessa feita a Adão após a queda: de que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gn 3.15). Aí se encontra uma notável declaração do juízo divino, que estabelece uma distinção entre eleitos e réprobos: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a semente dela.

A eleição não foi feita por causa de Cristo, como se Ele fosse sua causa meritória.

Razão: I. Cristo, como Mediador, veio e foi enviado ao mundo por nossa causa. Logo, foi porque Deus primeiro quis conceder-nos a salvação que ordenou Cristo para nascer como homem. Assim, Cristo, enquanto meio para a execução da eleição, é posterior à eleição para a salvação; por conseguinte, não pode ter sido nela o fundamento. Pois, primeiro se considera o fim, e só depois os meios, o que, embora valha sobretudo no plano humano, também é verdadeiro analogicamente quanto a Deus. Essa prioridade, no entanto, não é de tempo, mas de natureza, ou seja, de ordem no entendimento dos decretos divinos. Por essa razão, o apóstolo Paulo chama Cristo de λύτρον λαστήριον, cf. Cl 1 e Rm 3, mas nunca diz que Ele seja a causa pela qual estes foram eleitos e aqueles não. II. A mediação de Cristo e a redenção por Ele operada são atos pelos quais se satisfaz a justiça de Deus, o que, de fato, não é o significado da palavra "eleição". Pois uma coisa é ser Mediador; outra, ser a causa da eleição ou da prelação (isto é, da escolha de um em detrimento de outro) no conselho secreto de Deus. Segue-se, então, que Cristo é sim a causa meritória da salvação, mas não da eleição. O que equivale a dizer: Cristo é o fundamento e a causa da execução do decreto de eleição, mas não sua causa propriamente dita. III. Não é coisa leve o que Cristo afirma em Jo 15.13: "Ninguém tem maior amor do que este: dar alguém a própria vida por seus amigos." E no capítulo 10, versículo 11, Ele mesmo se chama o Bom Pastor, porque dá a vida por suas ovelhas. Ora, se Cristo morreu por amigos e ovelhas, então é necessário que, ao morrer por eles, já os considerasse como tais, ainda que muitos deles não tivessem ainda sido chamados. O próprio Cristo atesta isso, pois em Jo 10.16, Ele chama de suas ovelhas até mesmo àquelas que ainda não haviam se convertido. Logo, se Cristo, ao morrer por nós, nos considerava como amigos e ovelhas, é evidente que antes da morte de Cristo já havia sido feita a distinção entre amigos e inimigos, entre ovelhas e bodes. Portanto, o decreto da eleição precede, em ordem, à morte de Cristo. O dogma dos adversários deve, assim, ser rejeitado como subversivo ao Evangelho, pois sustentam que, quando Cristo morreu, ainda não havia eleição alguma feita. Ora, aquele que morreu pelas ovelhas morreu pelos eleitos, e não por aqueles que só seriam eleitos depois que Ele tivesse morrido. Disso se conclui que, pelos “amigos” e “ovelhas” por quem Cristo morreu, não se entendem apenas aqueles que já amam a Deus e seguem a Cristo, mas todos aqueles a quem Deus ama, e cuja salvação Ele decretou, por quem Cristo morreu quando ainda não amavam a Deus e lhe eram inimigos. É por isso que são chamados “inimigos” em Rm 5.10, porque não amavam a Deus; mas, mesmo assim, já eram sumamente amados por Deus, e destinados à salvação em Cristo. Com efeito, sob diferentes aspectos, eram ao mesmo tempo amigos e inimigos, ovelhas e bodes: amigos, porque Deus os amava; inimigos, porque eles ainda não amavam a Deus. Portanto, já estavam na Igreja, ainda que não de maneira terminativa, mas objetiva. E a própria razão natural demonstra isso: assim como a cura do enfermo sempre precede, na intenção, à aplicação do remédio pelo médico, assim também é necessário que, na mente de Deus, a ideia de salvar certos homens seja anterior (não no tempo, mas na ordem) à de enviar o Salvador. Aqui, porém, os adversários apresentam muitas objeções:

I. Objeção: Diz-se expressamente em Ef 1.4 que fomos eleitos em Cristo. Resposta: Mas a gramática mostra que o Espírito Santo não diz simplesmente que fomos eleitos “em Cristo”, mas que fomos eleitos para ser. Com efeito, a quem se refere o infinitivo εναι, senão ao verbo precedente ξελέξατο? Isso é inegável. Assim, o sentido dessas palavras é: Elegeu-nos para que fôssemos santos, etc., em Cristo. Além disso, as palavras Elegeu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para sermos santos são razão explicativa das palavras anteriores: Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda bênção espiritual em Cristo Jesus — o que mostra que a partícula “como” indica o sentido destas expressões conexas: Ele nos abençoou com toda bênção espiritual em Cristo Jesus, como nos elegeu para esse fim — a saber, para que nos fossem conferidas essas bênçãos espirituais, que consistem precisamente em sermos santos e irrepreensíveis diante Dele. Logo, este texto não favorece, mas prejudica a opinião dos adversários. Pois o que ele afirma é que Cristo é a causa meritória de todas as bênçãos espirituais, e que fomos eleitos a fim de que tais bênçãos nos fossem concedidas em Cristo. Não fomos eleitos porque já estávamos em Cristo, mas para sermos feitos n’Ele. Fica claro, portanto, que fomos eleitos, segundo a ordem da natureza, antes de estarmos em Cristo, pois fomos eleitos para que em Cristo fôssemos abençoados.

II. Objeção: Rm 8 diz que os que Deus pré-conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Resposta: Daí concluem que Cristo já era considerado predestinado, pois se diz claramente que fomos predestinados a ser conformes à Sua imagem; ora, dizem, a imagem já existia, se a ela devíamos ser conformados. Portanto, Cristo já era predestinado, segundo a ordem da natureza, e, assim, seria a causa da predestinação. Resposta: De fato, fomos predestinados a ser conformes à imagem do Filho de Deus. Mas isso não implica que Cristo tenha sido predestinado primeiramente como causa da nossa predestinação, mas sim que Ele é o primeiro entre os meios pelos quais nossa salvação haveria de se cumprir. Ele é o primeiro elemento da cadeia dos meios, do qual os demais dependem, cf. Hb 10.

III. Objeção: Se Deus primeiro quis a nossa salvação, e só depois, por causa dessa vontade, determinou que Cristo fosse nosso Mediador, então Deus quis conceder-nos salvação fora de Cristo, o que é absurdo. Pois, se a quis fora de Cristo, também poderia concedê-la fora d’Ele. Resposta: A proposição “Deus quis conceder-nos a salvação fora de Cristo” admite dois sentidos: (I) Um sentido verdadeiro: que Deus antes de designar Cristo (uso aqui o termo “antes” não para indicar tempo, mas ordem natural) designou a salvação. Nesse sentido, a proposição é verdadeira, pois Cristo foi ordenado por causa da salvação, e não a salvação por causa de Cristo; (II) Um sentido falso: que Deus nos quis conceder aquela salvação, para a qual ordenou Cristo como causa meritória, fora de Cristo, o que de fato não ensinamos, sendo tal proposição inadmissível. Portanto, não é absurdo afirmar que Deus quis conceder salvação a alguns fora de Cristo, quanto ao seu desígnio intencional. Pois o decreto quanto ao fim é anterior ao decreto quanto aos meios (entenda-se aqui uma anterioridade de natureza e de ordem, não de tempo). Com efeito, os meios existem por causa do fim, e não o fim por causa dos meios. É isso que claramente atesta a Escritura, que afirma que Cristo veio ao mundo por causa da nossa salvação — 1Tm 1.15; Mt 18.11. Mas não se conclui disso que, porque Deus desejou a salvação antes de Cristo na intenção, Ele também a desejou fora de Cristo na execução. Pois nunca decretou concedê-la senão em Cristo, como atestam frequentemente as Sagradas Letras. Quanto à objeção adicional: “Se pôde querer a salvação fora de Cristo, também pôde concedê-la fora de Cristo”, isso é falso. Pois todo fim é primeiro intencionado, e é intencionado separadamente dos meios, porque os meios são determinados por causa do fim. Mas acaso, porque o fim é primeiro e considerado separadamente dos meios, segue-se que ele possa também ser realizado sem os meios? Por esse raciocínio, nenhum meio seria necessário, mas todos arbitrários. Tragamos exemplos concretos: o médico primeiro quer a cura, não o remédio; portanto, ele pode querer ou mesmo conseguir curar sem o remédio? Ou alguém pretende construir uma casa antes mesmo de pensar em madeira, pedra, carpinteiro e pedreiro — porventura poderá ele edificá-la sem matéria nem operários?

IV. Objeção: Ef 1.6 afirma: “Fez-nos agradáveis a si no Amado.” Daí deduzem: “Se somos agradáveis n’Ele, então Deus não poderia nos amar fora de Cristo; mais ainda, não poderia nos amar senão como fiéis, já que não estamos em Cristo senão pela fé.Resposta: Ser amado e ser agradável são coisas distintas. Deus ama até mesmo aqueles que ainda não fez agradáveis a Si. Pois amar significa desejar ou realizar o bem para alguém; já ser agradável significa ser aceito e aprovado. Ora, Deus pode querer e fazer-nos o bem antes de nós lhe sermos agradáveis. Pois só podemos ser agradáveis a Deus se formos justificados e regenerados, já que “o ímpio e morto no pecado não pode agradar a Deus”. Que Ele quis fazer-nos o bem antes de sermos assim, é evidente — e nem mesmo os adversários o negam. Pois afirmam que Deus seriamente deseja, quer e aspira à salvação de todos os pecadores. Logo, Ele quer, deseja e aspira que os inimigos se tornem amigos, que os não-regenerados sejam regenerados, e que os ímpios sejam justificados. Portanto, Ele quer o bem àqueles que ainda não lhe são agradáveis, o que mostra que é possível desejar o bem a quem ainda não agrada. Mais ainda: não apenas deseja o bem a alguns, mas também faz com que passem a ser agradáveis, os que antes não o eram. A Escritura mostra isso claramente, explicando como Ele nos torna agradáveis a Si em Cristo. Acerca de como somos por nós mesmos, fora da justificação e da regeneração, ela declara: somos ímpios, inimigos de Deus, filhos da ira, e outros termos semelhantes. Mas tais males, o Senhor os remove de nós em Cristo. Ele nos reconcilia consigo em Cristo Jesus — 2Co 5.19: “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens os seus pecados.” Aqui se ensina como Ele fez, de inimigos, amigos Seus. Que Ele nos regenera, é claro em Ez 36: “Dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro de vós um novo espírito; tirarei da vossa carne o coração de pedra, e vos darei um coração de carne. Porei o meu Espírito dentro de vós...” E também em Ef 2.10: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.” Portanto, Deus deseja e confere bens a nós antes que sejamos agradáveis a Ele; mais ainda, ao nos conceder esses bens em Cristo Jesus, Ele nos torna agradáveis a Si.

V. Objeção: Rm 8.29, “Predestinou-nos para sermos conformes à imagem de Seu Filho.” Logo, o Filho foi predestinado primeiro, e só depois nós. Resposta: Uma coisa é ser predestinado ao fim, outra é ser predestinado aos meios. Fomos primeiro predestinados ao fim, antes mesmo de Cristo, enquanto fim desejado por Deus. Mas porque Cristo ocupa o primeiro lugar entre os meios, a nossa conformidade a Cristo ocupa o segundo lugar. Logo, esse meio (a conformidade à vida e à paixão de Cristo) foi predestinado posteriormente, em relação à nossa predestinação ao fim.

A eleição não é condicional, como forjam os adversários, concebida segundo esta forma: “Quero salvar aqueles que hão de crer.

Nenhum decreto de Deus, tampouco a sua vontade, é condicional, como já demonstramos ao tratar dos decretos divinos em geral. Aqui acrescentamos o seguinte:

I. Se a eleição fosse dessa natureza, então não seria propriamente a vontade de Deus, nem seu decreto, mas apenas uma velleidade. Ora, velleidade ou desejo em sentido próprio indica uma imperfeição intrínseca, e seu ato é indefinido. Tal coisa não pode de modo algum existir formalmente em Deus, que é perfeitíssimo e ato puríssimo.

II. Não se pode chamar propriamente de vontade aquilo que está suspenso sob condição, mas apenas aquilo que efetivamente quer. Com efeito, se Deus elegeu os homens para a salvação sob esta condição: “Se creres, quero tua salvação”, essa proposição não indica que Deus quer a fé e a salvação dessa pessoa mais do que a incredulidade e a perdição, visto que simultaneamente se ouve: “Se não creres, morrerás.”

III. Supor um decreto e uma vontade disjunta atribui a Deus uma falha σφάλμα alheia à sua perfeição. O próprio Suárez, embora concorde com os adversários nesse ponto, o admite. Com efeito, ele diz (em De Praedest., livro 1, cap. 13, seção 5) que a preparação dos meios, feita de modo confuso e sob forma disjuntiva, isto é, para que, se um meio não surtir efeito, outro seja aplicado, não é conforme à perfeição divina. A perfeição divina requer que, com ciência certa e de modo claro e distinto, tudo seja disposto em conformidade com a dignidade e capacidade de cada coisa. Portanto, o decreto geral “Quero salvar os homens sob a condição de que creiam”, ao qual os adversários subordinam este outro: “Quero salvar Pedro, que vejo que crerá”, é inepto para ser atribuído a Deus. Seria como se a vontade ou o decreto divino fosse indefinido, confuso e universal, com um progresso ou transição de uma indeterminação para uma determinação. Mas é igualmente absurdo imaginar em Deus uma vontade indefinida, uma ciência geral e um progresso de um ato para outro ou posterior. Assim como Deus conhece singularmente [singularissime] cada coisa, com suas causas e circunstâncias, não de forma genérica e confusa, mas em grau extremo de distinção, assim também decreta de uma só vez e de modo completo, num único instante de natureza. Essa verdade é tão manifesta que o próprio Suárez, jesuíta e defensor da posição adversária, a sustenta com vigor e confessa ter recuado de sua opinião anterior sobre a causa meritória à luz dessa evidência. Além disso, no decreto geral pelo qual todos os homens seriam eleitos sob a condição de prestarem fé, Deus seria escarnecido. Seria um decreto sob condição que, no exato momento em que é proferido, Deus já sabe com certeza que não será cumprida. E isso é ainda mais absurdo se tal condição só pode ser realizada com o auxílio e a eficácia d’Aquele mesmo que decreta. Com efeito, Deus não estabelece tal condição para o homem, mas para si mesmo, o que é inaceitável. A experiência prova que Deus não administra a todos os meios necessários para o cumprimento dessa condição. Ele não quer que o evangelho seja anunciado a todos, nem concede a todos o Espírito de regeneração. Por fim, o juízo a ser dado acerca dessa eleição geral pode ser extraído de suas consequências, dentre as quais a principal e mais grave é esta: afirmam que o número dos eleitos não é certo nem previamente definido por Deus. Com isso, a eleição dos indivíduos se torna incerta, e, portanto, incerto também o número dos eleitos. Ora, a Escritura ensina que o número dos eleitos é certo, conforme Ap 6, onde as almas sob o altar são exortadas a esperar até que se complete o número de seus irmãos. Cristo também fala das ovelhas que lhe foram dadas antes mesmo da conversão, em Jo 10.16. E ainda: “Todos os que o Pai me dá virão a mim”, Jo 6.37. E: “Ninguém pode arrebatar minhas ovelhas da minha mão”, Jo 10.28. Lucas confirma isso quando, em Lc 10.20, Cristo diz aos apóstolos: “Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem, mas alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos nos céus.” Essa expressão é tomada dos profetas, nos quais se diz que algo está escrito quando foi fixado e estabelecido por decreto divino. Em Is 4.3, por exemplo, são chamados “escritos para a vida” os que devem ser preservados segundo o conselho de Deus. Em Is 65.6 se lê: “Eis que está escrito diante de mim; não me calarei, mas retribuirei”, como se dissesse: está decidido e decretado por mim punir esses crimes. Não menos claramente afirma o apóstolo em Hb 12.22–23, onde chama a Igreja de “Jerusalém celestial e assembleia dos primogênitos inscritos nos céus”. A isso se refere o “livro da vida”, mencionado com frequência, especialmente em Ap 20.15, onde se diz que serão lançados no lago de fogo os que não forem encontrados inscritos no livro da vida. Sabemos, é claro, que há um certo “livro da vida” que não é o da eleição, mas o catálogo dos que se professam membros da Igreja e estão visivelmente inseridos na aliança, como mencionado em Ez 14.9 e Sl 69.29, livro do qual é certo que alguns são apagados. Contudo, quando se precipitam no inferno todos os que não estão inscritos no livro da vida, fica claro que esse livro designa um número certo e definido de pessoas que, enquanto os demais são destinados ao fogo, são reservadas para a vida. Tal número não pode ser aumentado nem diminuído, nem agora nem no dia do juízo. Além disso, a eleição é de pessoas singulares e definidas, como demonstraremos a seguir.

1. Em Rm 9, os predestinados são designados como Isaque, Ismael, Jacó, Esaú e Faraó. Nenhuma razão impede que o mesmo se diga dos demais predestinados. Objeção: Jacó e Esaú são ali tomados como tipos. Resposta: Isso é inapropriado. O texto trata de Esaú e Jacó como concebidos por Rebeca. Mas foram concebidos absolutamente, e não enquanto tipos. Ainda que se concedesse isso, o que dizer então de Isaque e Faraó? Seriam também tipos? Réplica: Sim, pois de Esaú se diz que foi odiado antes mesmo de pecar, e Deus não odeia a pessoa absolutamente, mas apenas o pecador. Resposta: Assim como a reprovação é dupla, o mesmo se aplica ao ódio divino. A reprovação pode ser negativa, ao não se estar inscrito no livro da vida; ou positiva, ao ser destinado e ordenado para a perdição. Do mesmo modo, o ódio divino pode ser negativo, quando alguém não é amado; e positivo, quando se ama alguém menos em razão do pecado, conforme Sl 5.5–6. Esaú, portanto, é dito ter sido odiado com ódio negativo, ou seja, por não ter sido dignado com o amor divino.

2. Em Lc 10.20, Cristo ordena: “Alegrai-vos porque vossos nomes estão escritos nos céus.” Isso equivale a dizer que pessoas certas e definidas foram predestinadas, pois a metáfora é tirada daqueles que, ao registrar pessoas certas e individuais, costumam anotar seus nomes. Objeção: Ainda que isso se conceda, não se segue que a reprovação seja também de pessoas certas, pois em lugar nenhum se diz que os nomes dos réprobos estão escritos, o que deveria ser dito, se a reprovação fosse semelhante à eleição. Resposta: É certo que o Espírito Santo trata com mais parcimônia dos réprobos do que dos eleitos nas Escrituras. A razão é que os ímpios não são objeto da mesma solicitude divina que os piedosos. Além disso, ainda que não se afirme literalmente que os nomes dos réprobos estão escritos, há passagens que indicam com clareza que certas pessoas são, de fato, reprovadas.

3. Todo fiel pode saber, quanto a si mesmo enquanto pessoa singular e determinada, que Cristo morreu por ele. Se, portanto, Cristo morreu por pessoas certas, segue-se que isso foi decretado desde a eternidade: que Ele morreria por esta ou por aquela pessoa em particular. Com efeito, assim como Deus age no tempo, assim também decretou desde a eternidade agir. Objeção: Cristo não morreu por pessoas definidas, já que se diz que morreu por todos. Resposta: Se entendes isso no sentido de que morreu por todos e cada um individualmente (pro omnibus et singulis), estás equivocado. Vê, por exemplo, a explicação dessa expressão em Ap 7.9. As seguintes proposições são contraditórias: que Cristo morreu por todos e cada um, e que, ainda assim, alguns foram reprovados — especialmente se isso for combinado com a distinção entre vontade antecedente e consequente. Com efeito, dizem que Deus, por vontade antecedente, quis que todos e cada um fossem salvos, mas, tendo previsto que alguns não haveriam de crer, por vontade consequente quis apenas a salvação de alguns. E, mesmo assim, afirmam que Deus concedeu a todos e a cada um o meio de salvação. Ora, se por vontade consequente Ele não quis a salvação de todos e cada um, como poderia querer-lhes o meio?

4. Há também um decreto concernente até mesmo aos nossos cabelos e aos pardais. Como poderia, então, haver decreto para essas coisas — que, em comparação com o ser humano, nada são — e não haveria um decreto concernente ao próprio homem, e de fato, a cada pessoa humana em particular? A premissa é evidente por Mt 10. A consequência é confirmada por analogia em 1Co 9.9.

A eleição para a salvação não se deu com base na fé prevista.

Nossos argumentos são os seguintes:

I. “Não fostes vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi a vós” (Jo 15.16). Se, contudo, quiséssemos crer antes que ele nos escolhesse, seríamos nós os que primeiro o escolhemos, antes que ele nos elegesse. Isso resultaria numa afronta particular à graça e numa ofensa à sua singularidade, pois a causa de nossa eleição seria transferida do próprio Deus para o homem, sustentando-se que se deu por nossa causa. Mas Deus declara: “Não é por vós que eu o faço, sabei-o bem, mas por causa do meu santo nome” (Is 48.11). E Paulo pergunta: “Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado?” (Rm 11.35).

II. A fé é dom de Deus, conforme Efésios 2.8. Se assim é, não é coerente nem conforme à verdade afirmar que Deus nos elege com base em algo que ele próprio está por nos conceder, visto que, nesse caso, pressupõe-se necessariamente a eleição daqueles a quem tal dom será dado. Tal eleição, portanto, deve proceder do mero beneplácito e vontade de Deus. Assim, deve-se afirmar ou que a fé, em contradição com o apóstolo, reside na vontade humana, ou então que a eleição para a salvação deve ser buscada na única fonte da misericórdia divina. Dir-se-á: a fé, dom de Deus, é comum a todos, mas nem todos a aceitam, apesar de lhes ser oferecida. A graça de Deus, então, não seria irresistível, mas estaria sujeita à decisão do homem, se ele quer ou não recebê-la. Respondo: aquilo que não é não pode ser chamado dom de Deus. A fé é chamada dom de Deus não onde ela não está presente, mas onde está. Não se pode conceder algo que aquele a quem se dá não possui. Há sempre correlação mútua entre o doador e o recebedor. Onde, pois, há dom, aí Deus concede a posse da fé. Não se pode falar de dom onde Deus não opera para que se creia.

III. Se Deus nos escolheu com base na fé prevista, então nos elegeu não como estranhos, mas como filhos; não como estrangeiros, mas como cidadãos; não como mortos, mas como viventes. Ora, tudo isso o somos mediante a fé, e, se ele nos elegeu apenas enquanto crentes, elimina-se o motivo para toda gratidão e exultação entre os eleitos, pois não poderiam mais cantar a glória de Deus por terem sido escolhidos, apesar de estarem na mesma condição dos demais, não possuindo nada em si que os tornasse mais dignos do que os outros, mas tendo sido recebidos exclusivamente por graça e generosidade divinas. Os adversários negam isso, apresentando-se como recebedores não do benefício de Deus, mas de sua própria disposição. Desse modo, eliminam a pergunta do apóstolo: “Quem te fez diferente?” (1Co 4.7). Respondem: nossa fé nos distinguiu, nossa vontade crente nos separou, pois quisemos crer, enquanto outros recusaram. Mas o apóstolo insiste: “O que tens que não tenhas recebido?”

IV. Destaca-se aqui o texto de Atos 13.48: “Creram todos quantos haviam sido ordenados para a vida eterna.” Enquanto Paulo pregava aos antioquenos, alguns creram e outros rejeitaram o Evangelho. Lucas afirma que a causa da fé dos primeiros foi a ordenação e o decreto de Deus. A eleição, portanto, precede a fé, uma vez que a eleição de Deus é a causa porque se crê. Segundo os adversários, porém, Lucas deveria ter escrito: “E todos os que creram foram eleitos por Deus em razão de sua fé.” Mas o texto diz o contrário: que creram os que haviam sido eleitos. Os opositores tentam distorcer o sentido da palavra τεταγμένοι (ordenados), interpretando-a como “dispostos”, “preparados” ou “inclinados”, como se Lucas tivesse escrito διακείμενοι (bem-dispostos). Essa interpretação, no entanto, é refutada: primeiro, porque o uso que fazemos desse vocábulo é o mais comum em Lucas. Veja-se Atos 15.2: ταξαν ναβαίνειν Παλον (decidiram que Paulo subisse); e Atos 28.23: ταξάμενοι ατ μέραν (tendo-lhe designado um dia). Também Paulo, em Romanos 13.1: α δ οσαι ξουσίαι π το θεο τεταγμέναι εσίν (as autoridades que existem foram ordenadas por Deus). Além disso, essa palavra não pode aqui significar “bem-dispostos”, porque ninguém entre os não-regenerados pode estar bem-disposto ou bem-afetado à vida eterna. E todos aqueles antioquenos, antes de crerem no Evangelho, eram não-regenerados. Assim ensina o Espírito Santo sobre todos os não-regenerados: “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus” (1Co 2.14).

V. A autoridade divina é sustentada também pela reta razão. Se atentarmos para o próprio título e vocábulo, a origem e uso do termo mostram que predestinar nada mais é do que ordenar e separar para um fim determinado. Escolher, tanto entre os gregos quanto entre os latinos, significa separar alguém ou algo dentre muitos, para si, com determinado uso e fim. Assim, ou a predestinação divina é para um fim, ou não é predestinação alguma. E se é para um fim, então também é para os meios, pois quem deseja seriamente e com reta intenção um fim, quer também os meios que a ele conduzem. Nenhum fim é desejado enquanto tal, a não ser que esteja em relação com seus meios, que, segundo a Lógica, lhe atribuem bondade e desejabilidade. Além disso, esses meios que conduzem à vida eterna são também os meios de participação da própria vida, são os bens iniciais da salvação, nos quais ela está contida, embora ainda de forma incompleta. Quem verdadeiramente crê tem em si Cristo habitando, tem o Espírito de Cristo, possui as primícias da glória, a união e comunhão com Deus Pai, e já experimenta a própria vida eterna. Possui também a natureza divina, embora ainda não no grau e modo com que a desfrutará após esta vida. Ainda assim, quanto à essência, não difere da futura. Ele possui agora a graça da adoção, da qual aquela futura herança é apenas apêndice. Conclui-se, portanto, que se alguém é eleito para a salvação e vida eterna, é necessário que seja igualmente eleito para os meios que constituem parte e grau daquela mesma salvação.

VII. A eleição seria então do que corre, e não do que usa de misericórdia.

VIII. Deus não teria compaixão de quem quer, mas sim daqueles que prevê crerem; logo, a sua misericórdia seria exercida necessariamente sobre eles.

IX. O texto de Romanos 11.5–6 não poderia ser verificado: “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente segundo a eleição da graça. E se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça.”

X. Deus nada prevê como futuro, senão aquilo que ele mesmo decretou. Com efeito, se Deus previsse que certos haveriam de crer, então teria decretado isso. Resta perguntar: por que, então, ele não decretou fé para todos? A única resposta possível por parte dos adversários é: assim lhe aprouve.

XI. Em Tito 1.1, a fé é chamada fé dos eleitos. Ora, pergunta-se: por que a fé é chamada fé dos eleitos? Certamente não se pode apresentar outra causa, senão: ou porque ela procede das forças deles próprios, ou porque é dada a todos os eleitos. Os adversários querem sustentar a primeira opção. Mas isto é falso, pois a fé é dom de Deus, e porque o homem natural “não compreende as coisas que são do Espírito de Deus” (1Co 2.14). Resta, portanto, afirmar que se chama fé dos eleitos porque é dada por Deus somente aos eleitos. Se perguntares por que ela não é dada a todos, será necessário recorrer ao beneplácito de Deus.

Vamos agora examinar as objeções dos adversários. I. Objeta-se com o texto de Hb 11.6: “Ora, sem fé é impossível agradar a Deus.Resposta: Ser agradável a Deus é uma coisa; ser amado e escolhido por Deus é outra. Fomos eleitos porque Deus nos amou, não porque fôssemos agradáveis a ele. Com efeito, Deus nos amou enquanto ainda éramos pecadores (Rm 5.8); mais ainda, ele nos amou para que nos tornássemos agradáveis a si em seu Amado (Ef 1.6).

II. Objeta-se com Tg 2.5: “Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé?” Concluem, portanto, que Deus escolheu com base na fé prevista. Resposta: Deus escolheu os pobres na fé assim como escolheu herdeiros do Reino, mas os escolheu, não porque já fossem, mas para que fossem. Aqui é evidente uma elipse do verbo το γενσθαι (para que fossem). É certo que a herança é o fim da eleição, isto é, Deus escolheu aqueles a quem quis dar a herança celestial; portanto, o mesmo se deve dizer da fé, pois ambas as expressões são regidas pelo mesmo verbo e no mesmo sentido. Assim, “ricos na fé” está gramaticalmente sob a regência de “escolheu”, mediante o verbo elíptico para que fossem.

III. Objeta-se com 2Ts 2.13: “Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade.” Daí concluem que Deus nos escolheu com base na fé prevista. Resposta: O apóstolo ensina que Deus nos predestinou para alcançar a salvação por meio da santificação e da fé, mas não afirma que fomos eleitos por causa da fé prevista; diz apenas que fomos eleitos para alcançar a salvação por meio da fé. Se desse texto se pudesse inferir que fomos eleitos com base na fé prevista, também se poderia inferir que fomos eleitos com base na santificação ou regeneração prevista, o que os próprios adversários não aceitam.

Vorstius, contra Piscator, anota aqui que há uma elipse dupla: tanto do artigo τν depois do substantivo σωτηραν, quanto do particípio δεδομνην, para se entender que a salvação é dada pela santificação. Piscator responde, em sua “Resposta à Duplicação Amigável”, que é falso atribuir-lhe tal elipse, pois aqui não há distribuição entre dois tipos de salvação, uma dada pela santificação e outra não, mas se entende simplesmente a salvação eterna, que é uma só e que é dada pela santificação do Espírito. E pergunta que razão poderia ele ter para forçar essa elipse? A razão é que essa elipse forçaria a ideia de que a eleição ocorre pela fé, o que é falso, pois contradiz outros textos claros da Escritura, como Rm 8.30 e Ef 1.5.

IV. Objeta-se: “Aqueles que Deus salva no tempo são os mesmos que ele decretou salvar na eternidade; ora, no tempo Deus primeiro envia Cristo, depois administra sabiamente os meios para arrependimento e fé, e então recebe em graça os que se arrependem e creem, e finalmente salva os perseverantes na fé. Logo, Deus decretou salvar essas mesmas pessoas na mesma ordem.Resposta: Não há dúvida de que aqueles que Deus salva no tempo são os mesmos que ele decretou salvar desde a eternidade; mas dizer que Deus salva na mesma ordem com que decretou salvar, é verdadeiro num sentido e falso em outro. É verdadeiro que Deus salva segundo a ordem do seu decreto; mas é falso que, ao executar seu decreto, Deus siga a mesma ordem que teve ao decretar. Ao decretar, Deus pensa primeiro no fim, depois nos meios; ao executar, começa pelos meios e termina no fim. Assim também o médico visa primeiro a saúde, depois os remédios; mas, na prática, primeiro administra os remédios e depois alcança a cura.

V. Objeta-se que seria contraditório querer salvar absolutamente alguém, e ao mesmo tempo não querer salvá-lo senão sob a condição de fé. Resposta: Há aqui ambiguidade no termo “absolutamente”. Se por “absolutamente” se entende com certeza, de modo preciso e necessário, então essas duas vontades não se contradizem: querer com certeza salvar alguém, e querer salvá-lo por meio da fé. Assim como não se contradiz querer absolutamente que alguém viva, e querer que ele viva mediante comida e respiração.

VI. Objeta-se que é contraditório eleger alguém para a salvação antes de crer, e querer salvar apenas os que creem. Resposta: Negamos que haja contradição entre eleger alguém para que creia e querer salvar os que creem. Se um pai destina seu filho ainda pequeno ao ministério pastoral e, mais tarde, o faz ser instruído nos estudos para alcançar esse ministério, ele estaria querendo coisas contrárias? De forma alguma: ele simplesmente quis, desde o início, que seu filho chegasse lá mediante os meios.

VII. Objeta-se com 2Pe 1.10: “Procurai fazer firme a vossa vocação e eleição.” Concluem que a vocação é anterior à eleição, pois é mencionada antes, e que, portanto, a fé também é anterior. Resposta: Falsa hipótese. Não é porque uma coisa é mencionada primeiro que ela é anterior em realidade. Isso é refutado por Mc 1, onde se diz que João batizava e pregava o arrependimento; o batismo é mencionado primeiro, mas a pregação o precede. Igualmente Mt 22: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”; a parte de César é mencionada antes, mas a de Deus é, por natureza, anterior. Além disso, o tornar firme a eleição pode ser entendido quanto à eleição em si ou quanto à certeza reflexa dela. Este último é o sentido aqui. A eleição é o decreto imutável de Deus, que não pode ser revogado (Is 46.10; 14.26). Mas nós a tornamos firme para nós mesmos quando, ao lermos as Escrituras, reconhecemos nelas os sinais dos filhos de Deus e os encontramos em nós.

VIII. Objeta-se que a doutrina da eleição destrói o evangelho. Pois o evangelho diz: “Se creres, viverás”; mas esta doutrina diz: “Se fores predestinado, crerás.Resposta: Os subordinados não se contradizem. O evangelho afirma ambos: “quem crer será salvo” (Mc 16.16) e “todos os que foram ordenados para a vida eterna creram” (At 13.48). Objeção: “Mas isto (‘quem crer será salvo’) é todo o evangelho.” Resposta: Isso é parte do evangelho, não todo o evangelho. Se estas palavras encerrassem todo o evangelho, que dirás então de Rm 9, onde se diz que Deus, por sua vontade livre, decretou condenar alguns? Ou ainda da doutrina de que Deus permitiu a queda para manifestar sua justiça e misericórdia? Ou da afirmação de que os que foram predestinados à salvação o foram também aos meios? Objeção: No evangelho se ensina que Deus quer primeiro que o homem creia, depois que seja salvo; mas esta doutrina afirma que Deus estabeleceu primeiro a salvação, depois a fé. Resposta: Confunde-se aqui a ordem de execução com a ordem do decreto. Na execução, Deus começa pelos meios e chega ao fim; no decreto, começa pelo fim e ordena os meios.

IX. Objeta-se: “Se Deus predestinou uns à fé, então também predestinou outros à incredulidade; o que é absurdo.Resposta: Aquilo que aqui é tido por absurdo não o é, de fato. Pois é certo que Deus predestinou alguns à incredulidade, não absolutamente, enquanto incredulidade é pecado, mas enquanto é meio. Ora, são duas coisas distintas: meio e pecado. De fato, é certíssimo, como atesta o apóstolo em Rm 9, onde tratando do mesmo tema diz: “Para isto mesmo te levantei, Faraó…” indicando que ele foi predestinado a resistir a Deus. Outros também são ditos destinados à incredulidade, como Judas (cf. Jd 4).

X. Objeta-se: “Alguns dos nossos dizem que os fiéis não são eleitos objetivamente, mas terminativamente; logo, os fiéis seriam eleitos enquanto pecadores.Resposta: O sentido é este: que o eleito acabará por crer, ainda que não creia imediatamente após ser eleito — o que é verdade, mas não universalmente, pois nem todo eleito é um fiel “terminativo”; há também eleitos entre os infantes.

A eleição não foi feita com base nas boas obras previstas.

I. Em Rm 9.11-12, toda causa meritória é removida, como se afirma: “não tendo ainda nascido os filhos, nem praticado o bem ou o mal...

II. Se a fé prevista não é causa da eleição, tampouco o serão as boas obras. Mas é verdadeiro o antecedente, como foi claramente demonstrado no aforismo imediatamente anterior. Logo, o consequente também se mantém. A razão da consequência está em que a fé é a causa das boas obras. Portanto, se a fé, enquanto causa das boas obras, não é causa da eleição, com muito menos razão o serão as boas obras, que são efeito da fé.

III. Deus nos criou para as boas obras (Ef 2.9-10). Logo, nada nos é conferido em virtude de obras previstas. Objeção (Arminius): Deus escolheu não os sábios, mas os loucos e fracos, isto é, os humildes e pequenos, não os altivos. Resposta: Argumento vão e interpretação deturpada. (1) O apóstolo mostra quem são e como são os eleitos, não por que foram eleitos; (2) Brinca-se aqui com o termo “escolheu”, que pode ser tomado ou como decreto divino, ou como separação, distinção, seleção. Ora, o apóstolo, no lugar citado, toma-o neste último sentido, e não no primeiro.

Não somos eleitos por causa da fé; antes, é porque fomos eleitos que nos tornamos crentes.

Este é o corolário das teses anteriores. Mas ainda assim se demonstra ex superabundantia, em Ef 1: “[Deus] nos elegeu nele desde a eternidade”, antes, portanto, que existíssemos. Também: “Aqueles que predestinou, a esses também chamou”; ora, é somente após o chamado que a fé ocorre. Logo, não somos feitos eleitos por meio da fé.
Além disso, alguns são chamados ovelhas de Cristo, ou amigos de Cristo, antes de crerem.
Jo 10.11: Cristo se diz o bom pastor, que dá a vida por suas ovelhas. Jo 15.13: afirma sofrer a morte por seus amigos. Se, pois, Cristo morreu por amigos e ovelhas suas, é necessário que, ao morrer por eles, já os considerasse como ovelhas e amigos seus, mesmo que muitos ainda não tivessem sido chamados — conforme o próprio Cristo atesta, no v. 16 do mesmo capítulo, ao chamar de suas ovelhas também aqueles que ainda não se haviam convertido, e, por conseguinte, não eram ainda crentes. Mt 24.24: “Surgirão falsos profetas... de modo que, se possível fora, enganariam até os eleitos.”
Ora, essa sedução atinge tanto os que ainda não foram eficazmente chamados quanto os que já o foram, e mais aqueles do que estes. No mesmo capítulo, v. 22: “Se aqueles dias não fossem abreviados, nenhuma carne se salvaria; mas por causa dos eleitos, serão abreviados aqueles dias.” O que é expresso de forma mais clara em Mc 13.20: “Por causa dos eleitos, que Ele escolheu, abreviou aqueles dias.” Não diz: “que Ele eficazmente chamou”, mas “que escolheu”. Objeção: Tg 2.5: “Porventura não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino?” Logo, dizem, Deus nos escolheu com base na fé prevista. Resposta: O apóstolo não fala aqui da causa eficiente da eleição — que é a questão em debate, a saber: se somos eleitos por causa da fé —, mas trata, em parte, do objeto da eleição, e, em parte, dos fins dela. O objeto é indicado nestas palavras: “não escolheu Deus os pobres deste mundo?” — isto é, os pobres, em número maior que os ricos, cf. 1 Co 1.26. Se então perguntas: “A quem Deus escolheu?”, Tiago responde: “Aos pobres deste mundo.” Se perguntas: “Por que os escolheu?”, ou “com que fim os escolheu?”, ele responde: “Para serem ricos na fé e herdeiros do Reino.” Aqui há uma elipse manifesta do verbo το γενέσθαι, isto é, para que fossem. Pois, quanto à herança do Reino, é certo que ela é o fim da eleição — isto é, que Deus elegeu aqueles a quem quis conceder a herança celestial. Assim também se deve entender quanto à fé, pois é claro que ambas (fé e herança) são regidas pelo mesmo verbo, e no mesmo sentido.

A eleição é imutável, de modo que aquele que uma vez foi eleito por Deus para a vida eterna não pode cair da graça de Deus.

O argumento que confirma esta tese é geral: Todo decreto de Deus é imutável (como já foi demonstrado acima); portanto, também o decreto da eleição o é.

I. Objeção: Se a eleição é imutável, então tanto faz se alguém age bem ou mal, o que elimina o zelo pelas boas obras. Resposta: Parte-se aqui de uma hipótese falsa, como se Deus destinasse alguém ao fim sem, ao mesmo tempo, o destinar aos meios. Mas a falsidade dessa hipótese já foi amplamente refutada por nós em outro lugar.

II. Objeção: Os israelitas, que Deus havia escolhido como seu povo peculiar, foram rejeitados. Logo, a eleição não é imutável. Resposta: Quando se diz que os israelitas foram rejeitados, isso não se deve entender a respeito dos eleitos. O contrário é evidente em Rm 9.6. O que se entende é que, antes, Deus havia abrangido com sua graça somente aquele povo, e dEle somente reunia a Igreja; agora, porém, Ele fez de dois povos um só, derrubando o muro de separação (Ef 2.14). Não se diz que Deus recebeu os povos que antes reprovara, mas que agora dignou-se, por sua graça, com aqueles que antes não o eram.

III. Objeção: Jo 17.12: “Nenhum dos que me deste se perdeu, senão o filho da perdição.” Mas aqueles que foram dados a Cristo são os eleitos. Logo, os eleitos podem perecer. Resposta: A partícula ε μή é aqui tomada não no sentido de exceção, mas de distinção (como em Lc 4.26-27). Assim também deve ser entendida aqui, e a conclusão não procede. Judas é chamado de “filho da perdição”, logo, foi dado a Cristo? Logo, foi eleito?  não se segue.

IV. Objeção: Êx 32.32: Moisés pede para ser riscado do livro da vida. Logo, a eleição não é imutável. Resposta: O pedido de Moisés não é absoluto, mas condicionado, de modo que ele submete tudo à vontade de Deus — do mesmo modo como Paulo o faz em Rm 9.3. Obj. Ninguém pede o impossível; logo, também Moisés não. Resp.: O estado do homem, às vezes, é tal que ele pede até mesmo o impossível, mas o faz de modo que ainda respeita a vontade de Deus. Exemplo disso vemos em Cristo, que também pediu o impossível, ainda que submisso à vontade do Pai: “Passa de mim este cálice... mas não se faça a minha vontade, e sim a tua.

Deus, ao eleger, o faz de tal modo que escolhe para a graça e para a glória, conferindo irresistivelmente os meios.

Prova-se, em primeiro lugar, por Romanos 8.30, onde se afirma que Deus nos predestinou para a glória, de maneira tal que todos os meios da salvação lhe são atribuídos como ao próprio autor da salvação. Ora, tais meios lhe são atribuídos de forma a implicar que Ele os realiza irresistivelmente, pois, de outro modo, não se poderia dizer que os que Ele chamou, também justificou. Com efeito, poderia Deus chamar alguns que, no entanto, não viriam.

Segundo, em Efésios 1.3-4, entende-se por bênçãos os meios da salvação. Ora, é costume das Escrituras chamar de bênção não apenas um favor em potencial, mas somente aquilo que se efetiva. Por exemplo: "abençoarei a terra", isto é, "farei com que tenha produção".

Terceiro, a partir da distinção entre os meios, dos quais alguns são chamados próprios e outros impróprios. Meios próprios são a fé e o modo da fé, que geralmente se chama perseverança. Meios impróprios são as boas obras, e estas são excluídas do rol dos meios próprios, pois o meio, em sentido próprio, é, conforme a lógica, ao mesmo tempo meio e causa. As boas obras, porém, de modo algum são causa.

Quanto à fé, é claríssimo que Deus a concede, e de tal modo que aqueles que são eleitos para a salvação (refiro-me aos adultos) necessariamente a possuirão, ainda que não neste momento, mas em tempo oportuno, conforme Atos 13.48.

Arminius levanta uma objeção, dizendo que a expressão “ordenados” ou “preconhecidos” deve ser interpretada como “dispostos”, e não como “ordenados”. Respondemos: é uma invenção vã. Pois, se for assim, Arminius teria de afirmar que o homem não regenerado pode dispor-se para a fé, o que contradiz a própria natureza do homem irregenerado, tal como é descrita pelo Espírito Santo. De fato, tal natureza é de tal modo que não apenas é inapta para perceber as coisas do Espírito de Deus (1 Co 2.14), mas é inimiga e hostil a Deus, pois “a carne não se sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode fazê-lo”.

Não vale a objeção de que isso não se diz de todos os eleitos de todos os tempos, mas apenas dos contemporâneos, pois a mesma razão se aplica a todos os eleitos, já que o Espírito Santo testifica que aqueles que Deus preconheceu, a esses também chamou.

Sobre a perseverança, é igualmente certo que aqueles a quem é dada a fé, a estes é igualmente dada a perseverança na fé, conforme Jr 32.39-40. Isso também se demonstra a partir da própria fé: se aqueles que uma vez a possuíram a pudessem perder, então certamente o Espírito Santo não ligaria essa promessa à fé: "quem crê será salvo" (Mc 16.16). Com efeito, não se diz: "quem crer até o fim será salvo", mas simplesmente: "quem crê", o que torna claro que, uma vez conferida, a fé nunca é retirada. Por isso se diz, em Rm 11.29, que os dons e a vocação de Deus são μεταμλητα, ou seja, irrevogáveis. Note-se cuidadosamente que tal passagem não deve ser entendida como "dons e vocação", mas sim como "os dons da vocação", pois sabemos que muitos dons são concedidos aos homens e depois retirados. Portanto, o que se entende aqui são os dons próprios da vocação. Expressão semelhante ocorre em Rm 1.5: “por quem recebemos graça e apostolado”, ou seja, a graça do apostolado. Assim também Virgílio: libavam pateris et auro, ou seja, "com taças de ouro". Ora, é desses dons da vocação que se diz serem μεταμλητα, e isso é uma metáfora antropopática: assim como o homem, ao se arrepender, muda seu feito, Deus é dito “não se arrepender” no sentido de não revogar seus dons. Quanto às boas obras, dizemos que são meio apenas em sentido impróprio. Pois um meio, em sentido próprio, é também causa. As boas obras, contudo, de modo algum o são. E, embora sejam concomitantes à fé — a ponto de, onde não existirem, não haver verdadeira fé (cf. Tg 2) —, dizem-se em Gl 5.6 como aquilo que torna a fé eficaz, ou seja, que a fé opera mediante a caridade. Mas isso não deve ser entendido à maneira dos papistas, como se a caridade conferisse à fé seu valor e a tornasse eficaz. A expressão é semelhante à de 1 Ts 2.13: "a palavra de Deus é eficaz nos que creem", o que, interpretado toscamente à maneira dos papistas, implicaria que os fiéis acrescentam eficácia à Palavra. O sentido, porém, é este: a Palavra é eficaz nos que creem, porque nela opera a fé. Do mesmo modo, diz-se que a fé é eficaz pela caridade, ou seja, que opera mediante a caridade. Quarto, Romanos 9.11 mostra que somos eleitos para o fim, de tal modo que também somos eleitos para os meios. E somos eleitos para os meios de forma tal que, em tempo determinado, Deus os confere de modo que os fiéis os tenham necessariamente. Isso se prova pela declaração de que o propósito de Deus permanece firme. A eleição é firme, mas não o seria se os meios não fossem também certos. Pois, na execução, o fim depende dos meios. Se o fim é certo, os meios também o serão. Objeção: a eleição permanece firme, mesmo que não haja meios. Pois Deus apenas determinou que qualquer um que crer será salvo; mas não quanto a indivíduos em particular, como João ou Pedro. Da mesma forma que um príncipe estabelece uma lei dizendo: “quem a cumprir receberá tal prêmio”. Resposta: isso é impróprio. Demonstramos acima que a eleição é de pessoas singulares. Segundo, o próprio Espírito Santo, no capítulo 11 da Epístola aos Romanos, trata e resolve essa questão ao dizer que Deus elegeu Israel e o rejeitou. Como então permanece firme a eleição? Responde-se que permanece firme porque “nem todos os que são de Israel são Israel” (Rm 9.6), e Deus rejeitou aqueles que não eram verdadeiramente Israel; mas não os que eram verdadeiramente seu povo.

I. Objeção, ao dizermos que Deus elegeu os homens tanto para a salvação quanto para os meios, e que Ele confere os meios aos eleitos, poder-se-ia objetar que Deus então elege o fim, mas não os meios. Seria como se um pai desejasse que seu filho fosse conselheiro e o enviasse à escola, mas sem necessariamente lhe fornecer os meios para isso. Assim também Deus, ao não conferir necessariamente os meios, anularia a liberdade do homem. Resposta: primeiro, isso pressupõe falsamente que a liberdade não pode coexistir com a necessidade da imutabilidade, o que é falso. Segundo, se Deus quer o fim, mas não quer os meios, então, com efeito, não quer seriamente o fim, o que é absurdo. Mas, se quer o fim, também quer os meios e, portanto, os realiza. Pois tudo quanto Deus quer, Ele realiza (Sl 115.3).

II. Deus abandona o homem a si mesmo. Pois o Espírito Santo atribui ao homem a confecção de sua salvação, conforme Fp 2.12, e assim os homens seriam, de certo modo, os próprios salvadores. Resposta: primeiro, o Espírito Santo nunca atribui o nome de “Salvador” a ninguém senão exclusivamente a Cristo, conforme Atos 4.12. Segundo, quanto à passagem de Fp 2.12, "efetuai a vossa salvação", não significa que se deva realizar a salvação por mérito, satisfação ou aquisição, pois nenhum fiel pode realizar sua própria salvação nesse sentido, dado que “não há outro nome” (At 4.12). Se se pergunta: de quem é a salvação? Não é, porventura, daquele que está perdido? Mas esse que se perdeu não pode ser causa da sua própria salvação, nem ao menos ao se aproximar dela ou ao participar dela — e é esse o sentido da passagem. Aproximamo-nos da salvação pela fé, assim como a fé acolhe todas as promessas de Deus, inclusive a da salvação.

III. Mesmo que se conceda que os meios são conferidos, não o são a cada indivíduo. Qual seria então o propósito da distinção entre graça suficiente e graça eficaz? Resposta: primeiro, os que imaginam essa distinção se contradizem. Pois, se a alguns é dada graça suficiente, como não será ela também irresistível, preservando a liberdade da vontade? Segundo, até os dominicanos ridiculari­zam essa distinção. Pois graça suficiente é aquela à qual nada falta. Logo, requer três graus de suficiência: primeiro, que se possa fazer o que Deus quer; segundo, que se queira o que Deus quer; terceiro, que se efetive o que Deus quer. Ora, se alguma graça chamada "suficiente" não contém esses três graus, como pode de fato ser chamada suficiente?

A eleição, quanto à razão do fim, isto é, enquanto está na intenção divina, não é ato de misericórdia, mas de beneplácito e de poder absoluto de Deus; contudo, enquanto está na execução, é também ato de misericórdia.

Quanto ao aspecto da intenção, isso é certo; pois ainda não havia pecadores considerados como tais, para serem deixados na queda. Quanto ao aspecto da execução, isso também é certo; pois, como diz o Espírito Santo na Epístola aos Efésios, capítulo 1: “Escolheu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante d’Ele.” Ora, se nos escolheu para que fôssemos santos e irrepreensíveis, então nos escolheu quando ainda não éramos santos nem irrepreensíveis, ou seja, pecadores. Logo, é por misericórdia.

 

sábado, 17 de maio de 2025

A CESSAÇÃO DOS DONS EXTRAORINÁRIOS


A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso.

1Co 12:8

DEFINIÇÃO DE CESSACIONISMO

O cessacionismo define-se como a doutrina que, pressupondo a suficiência das Escrituras, nega que os dons extraordinários sejam normativos na Igreja. Em virtude do conhecimento revelacional de Deus ao seu povo, estes dons tiveram o propósito de capacitar os homens na entrega, confirmação e registro da revelação divina. Isto porque nenhuma religião pode florescer sem a ideia de revelação, tendo em vista que a piedade é o relacionamento dos homens com Deus, o conhecimento de Dele torna-se necessário para que todos os aspectos da vida devota e piedosa sejam cultivados e desenvolvidos. Perceba que há revelação como consequência de nossa necessidade de se relacionar com Deus, isto certamente foi impresso pelo próprio Criador, como diz Turretini, todas as nações (mesmo as bárbaras) concordam em que é bom para o homem buscar alguma sabedoria celestial, além daquela que a razão chama de o guia da vida. Muitos ateus sustentam que essa necessidade da religião se deu por conta da manipulação de homens primevos sobre os mais fracos para a manutenção de seu poder, Turretini afirma, entretanto, que ainda que seja verdade que homens astuciosos têm inventado muitas coisas na religião, com o fim de inspirar reverência no povo comum, e com isso manter sua mente mais obediente, jamais teriam atingido seu propósito a não ser que já existisse, na mente humana, um senso inerente de sua própria ignorância e impotência. João Calvino diz o mesmo, leia-se:

“Sem dúvida, confesso que, a fim de manterem o espírito mais obediente a si, homens astutos têm inventado muita coisa em matéria de religião, para com isso infundirem reverência às pessoas simples e causar-lhes terror. Isso, no entanto, em parte alguma teriam conseguido se a mente humana já não tivesse sido imbuída dessa firme convicção acerca de Deus, da qual, como de uma semente, emerge a propensão para a religião.”

O relacionamento entre o homem e Deus pressupõe que o aquele o conheça, mas tal é o abismo entre os dois, como a finitude e corruptibilidade da criatura, que nem mesmo a própria criação inteira nos garante uma revelação assertiva de Deus, pelo menos, não de modo salvífico. Por esta razão, os divinos de Westminster iniciam a confissão dizendo que

“Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda.”

O ponto de partida em que o cessacionismo se sustenta é a finalidade divina de revela-se ao seu povo, esta é a essência da edificação do corpo de Cristo, o aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus (Ef 4.12-13). A partir daqui a revelação pode ser vista de duplo modo: (1) geral ou natural, aquela que encontramos na natureza, cujos atributos invisíveis de Deus são percebidos; (2) especial ou sobrenatural, aquela que no tempo e nas circunstâncias por Ele determinadas, manifestou-se de modo extraordinário, específico e redentivo ao seu povo. Assim, Turretini conclui dizendo que “era necessário que a imperfeição da primeira revelação (feita inútil e insuficiente pelo pecado) fosse suprido por outra mais clara (não só quanto ao grau, mas também quanto à espécie), não somente para que Deus usasse mestres mudos, mas também para que sua santa voz declarasse a excelência de seus atributos e abrisse o mistério de sua vontade para nossa salvação”. Esqueçamos, portanto a primeira revelação, aquela geral e natural que, a todos cercam com claras evidências dos atributos criativo, providencial e governador de Deus sobre todas as coisas, e foquemos nesta revelação específica, sobrenatural e extraordinária.

Após isto, o registro desta revelação aponta as modalidades em que Deus se revelou, Paulo diz que “havendo Deus, outrora, falado muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho” (Hb 1.1-2), pelo que vemos uma economia, uma administração divina em seu modo de revelar-se e falar com o seu povo. Logo depois exaltar o Filho de Deus, nos exorta sobre o perigo da negligência àquilo que nos fora anunciado inicialmente pelo Senhor, confirmado pelos que a ouviram e tendo o testemunho divino por sinais, prodígios e vários milagres (Hb 2.3-4). O conceito relacional entre Deus e o homem pode ser visto de dois ângulos: (1) de Deus para o homem, temos a revelação; (2) do homem para Deus, temos a obediência, o dever que Ele requer à sua vontade revelada (CMW, 91). A síntese da revelação bíblica consiste nisto: o registro daquilo que Deus quis revelar de si, a confirmação desta revelação por intermédio de sinais, a resposta daqueles que receberam o conhecimento de Deus e a interação divina com estas respostas. Entretanto, vemos que Deus designou ofícios para que esta revelação fosse transmitida ao povo, designou aos que receberam esta responsabilidade autoridade divina como também, por inspiração do Espírito Santo, registraram àquilo que é suficiente para a salvação, por isto, somos edificados sobre o fundamento[1] dos apóstolos e profetas, sendo Cristo Jesus, a pedra angular (Ef 2.20).

ESPECIFICIDADE DA REVELAÇÃO ESPECÍFICA

O jogo de palavras é proposital. Podemos dizer que se trata de uma definição mais precisa da revelação específica de Deus aos homens. Pontuemos, inicialmente:

O homem e sua natureza finita. A primeira questão a ser considerada introdutoriamente é que o homem não foi criado com uma perfeição intelectual tal como o próprio Deus. Quando estudamos teontologia (doutrina do Ser de Deus) vemos que o conhecimento de Deus é arquetípico[2], intuitivo[3], imediato e simultâneo[4].  O homem não, o homem conhece as coisas não como Criador, mas como parte da criação, não como um arquiteto que planeja o imóvel, mas como o comprador. Deus conhece como causa primeira, isto é, como aquele que dá existência e definição às coisas. O homem, sendo causa segunda, conhece apenas a partir do que já foi criado. Portanto, é impossível (seja na condição de estado original, seja após a queda, seja regenerado ou glorificado) o conhecimento perfeito de Deus em função ontológica e metafísica, pois Deus é infinito, a mente humana, é finita (Jó 7.17; 14.1-2; Sl 8.4-5; 144.3; Pv 24.32). Deus conheci a si mesmo em si mesmo, nós o conhecimento por aquilo que Ele revela, dentro das limitações de nosso próprio intelecto (seja ele em estado original, corrompido, regenerado ou glorificado). Fica claro a partir daqui nosso próximo ponto.

A incompreensibilidade de Deus. Afinal, se Deus é infinito em seu ser, perfeito em seu operar, fora do tempo e do espaço, sua transcendência precisa ser acentuadamente mencionada. Pois é a doutrina que fala que Deus está assentado nas alturas, no seu trono, sendo um Deus separado da sua criação e independente dela[5]. Deus não está preso às mesmas categorias que os seres humanos, isto é, tempo e espaço, por isso não deve ser medido por elas[6]. A escolástica faz uma separação de ordem entre Deus e suas criaturas[7]. Por esta razão lemos na Escritura "Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Pois, quem conheceu a mente do Senhor? Quem se tornou seu conselheiro?" (Rm 11.33-34; Cf. Jó 26.14; 36.26; 37.5; Is 55.8,9).

A queda do homem de seu estado original. Já não bastasse a limitação em que o homem estava naturalmente sujeito, por ser criatura, mais limitado ainda tornou-se ao cair de seu estado original. O homem em estado de queda não quer conhecer[8] a Deus, como diz o apóstolo Paulo, “por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável” (Rm 1.28) e isto é mais claro ainda nos recortes que Paulo se usa do Antigo Testamento para falar da condição deplorável do ser humano (Rm 3.10-18)[9]. Paulo associa a prática do pecado à ignorância pela dureza do coração (Ef 4.17-19) e logo depois lemos “mas não foi assim que aprendestes a Cristo” (v.20) e ele explica este aprendizado em termos da regeneração (vos despojeis do velho homem, v.22).

O caráter redentivo da Revelação. O catecismo maior e breve de Westminster afirma isso ao dizer que o fim principal e supremo do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre (Ap 4.11; Rm 11.36; 1Co 10.31; Sl 73.24-28; Jo 17.21-24). Qual o problema? O pecado. A vontade de Deus fora quebrada, as leis são desobedecidas e o diagnóstico apostólico do homem natural é claro: “não há quem entenda, não há quem busque a Deus” (Rm 3.11), são “entenebrecidos no entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza de seu coração” (Ef 4.18), trata do homem que “não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhes são loucura e não pode entendê-las” (1Co 2.14). Portanto, Cristo é a solução para esse problema, sendo inocente, Ele se torna pecado por nós, a justiça dele nos é imputada pela fé, somos santificados por meio de sua Palavra e esperamos o seu retorno para a nossa glorificação. Mais que isso, Cristo nos torna participante de seu corpo, distribui dons para seus membros, aperfeiçoa e edifica organicamente a sua Igreja “até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13). E quem está por trás de toda essa obra? Quem aplica a obra de Cristo em nosso coração? Quem eficazmente rompe as barreiras da incredulidade, da dureza e da resistência depravada do homem, inclinando sua mente e sua vontade ao Evangelho de Cristo? Aos que leem a Bíblia, não foi preciso pensar muito para responder que é o Espírito Santo. Essa é a promessa da dispensação da graça administrada por Cristo, “porei dentro de vós o meu Espírito, e fareis que andeis em meus estatutos, e guardeis as minhas ordenanças, e as observeis” (Ez 36.26), pois tendo Deus estabelecido a circuncisão como sinal da aliança na antiga dispensação, garantiu “o Senhor teu Deus circuncidará o teu coração” (Dt 30.6) e isto se confirma com o Apóstolo Paulo ao escrever que hoje, “fostes circuncidado não feita por mãos no despojar do corpo da carne, a saber, a circuncisão de Cristo” (Cl 2.11) e em outro lugar diz que “ a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito, e nos gloriamos em Cristo Jesus, e não confiamos na carne” (Fp 3.3). O Espírito Santo é a garantia de que Cristo está com seu povo (Mt 28.19,20; At 3.21; Mt 18.19, 20; Jo 14. 16-17; 2Co 6.16; 1Co 3.16), John Owen afirma que Ele garantiu a seus discípulos que a sua presença com eles pelo seu Espírito era melhor do que a sua presença física[10]. Portanto, não há cristianismo autêntico sem uma experiência genuína com o Espírito Santo, não existe cristão sem conversão, não existe crentes sem fé e arrependimento como também não se pode entender a Sagrada Escritura em sua natureza mais íntima e pactual sem a operação eficaz do Espírito.

Após essas pontuações, devemos considerar melhor o que é revelação. O teólogo reformado Gerard van Groningen explica em seu livro A revelação messiânica no Antigo Testamento que revelação sugere tirar o véu, abrir, tornar acessível o que, de outra forma, permaneceria desconhecido, indicando atividade intencional, inteligível e teleológica[11]. Em sua outra obra, O progresso da revelação no Antigo Testamento, ele esclarece dizendo que a revelação acontecia quando havia uma manifestação do que estava na mente do nosso Deus trino. Revelar quer dizer descobrir o que está escondido. É abrir a mente e o coração e expressar o que está neles. Esse conteúdo expressado é revelação quando não era conhecido antes que a abertura ou atividade reveladora acontecesse[12]. Com isto, van Groningen sumariza a revelação em elementos distintos: a palavra de Deus, sua ação, a resposta humana (seja em palavra ou ação), a interpretação da relevância e efeito desta resposta.

O teólogo brasileiro Paulo Brasil afirma que cada ato revelacional implica em um ato histórico, deixemo-lo falar e já introduzir a distinção entre a revelação objetiva e subjetiva que pretendemos usá-la mais adiante:

Revelação objetiva são os atos históricos de Deus, manifestados na própria história. Isto é, cada ato revelacional implica em um ato histórico. Exemplo: Jesus veio a este mundo. Isso é um ato histórico. Esta é uma revelação objetiva. Revelação subjetiva (Iluminação) é a revelação histórico-objetiva que é trazida ao entendimento do indivíduo, a regeneração, conversão. O que permanece hoje é a iluminação, pois a revelação objetiva cessou, pois não existe mais revelação histórica. Ela se encerrou com o Cânon. O que temos hoje é a iluminação que é trazida ao homem por meio da pregação histórico-objetiva de Deus que continua sendo proclamada e salvando o povo na história. Como Deus fez no Antigo Testamento, fez também no Novo Testamento e durante toda a história. O Velho Testamento junto com seus atos históricos não apenas revelava Deus historicamente (objetivamente), mas revelava Deus subjetivamente a um povo que Ele mesmo estava salvando. Paralela à idéia da revelação, está a idéia de conversão e salvação — Deus se revelava para redimir.[13] [grifo meu]

Isto demonstra um elemento importante do período revelacional: tanto o falar e o agir de Deus tal como o falar e o agir de seu povo em resposta à esta palavra constituem elemento da revelação divina. E nisto podemos ver que Moisés, ao iniciar o livro de Deuteronômio, recapitula tudo aquilo que foi ensinado ao povo iniciando seu discurso com a palavra de Deus (Dt 1.6), narrando os eventos decorridos da peregrinação do povo como parte da revelação divina e, portanto, do conhecimento de Deus. Paulo reforça isto ao dizer que “estas coisas lhes sobrevieram como exemplos e foram escritas para advertência nossa” (1Co 10.11).

Outa coisa importante para a compreensão deste relacionamento entre Deus e o homem está no conceito de Aliança. Há um relacionamento pactual entre Deus e o homem, por esta razão, enxerga-se a dinâmica entre a palavra e ação de Deus concorrendo com a resposta humana.[14] Millard Erikson confirma o aspecto pessoal da revelação específica. Um Deus pessoal se apresenta a pessoas, e isso pode ser visto de várias maneiras. Deus se revela informando seu nome. Nada é mais pessoal do que um nome. Quando Moisés perguntou o que deveria dizer ao povo de Israel quando lhe perguntasse quem o enviara, Javé respondeu revelando seu nome: "EU SOU O QUE SOU [OU EU SEREI O QUE SEREI]" (Êx 3.14). Além disso, Deus firmou alianças pessoais com indivíduos (Noé, Abraão) e com a nação de Israel. E observe-se a bênção que Arão e seus filhos deveriam pronunciar ao povo: “O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o Senhor levante sobre ti o seu rosto e te dê a paz” (Nm 6.24-26)[15]. Logo, o conhecimento de Deus para a salvação só faz sentido dentro de uma hermenêutica pactual, pois como diz Geerhardus Vos, “conhecer” pode significar “amar”, “separar em amor” no idioma bíblico. Porque Deus deseja ser conhecido dessa maneira, ele fez que sua revelação acontecesse no meio da vida histórica de um povo. O ambiente da revelação não é uma escola, mas um “pacto”. Falar sobre a revelação como uma “educação” para a humanidade é uma maneira racionalista e não escriturística de falar. Tudo o que Deus desvendou de si mesmo veio em resposta às necessidades religiosas práticas de seu povo à medida que essas emergiam no curso da História[16].

Finalmente, há quatro características importantes a destacar da revelação, antes de encerrarmos esse tópico: o caráter orgânico, progressivo, histórico e adaptável.

O caráter progressivo da revelação. A revelação não se deu em um instante, ela acompanha o desenvolvimento da redenção na história e, nas palavras de Vos, é intérprete da redenção[17]. Esse caráter progressivo da atividade reveladora de Deus é a base para discernirmos se um dado profeta falou verdadeiramente as palavras de Deus[18]. A revelação confirma ou amplia-se com o desenvolvimento da redenção, mas nunca pode se contradizer. Por esta razão, os falsos profetas podem promover atos idênticos ou maiores, mas se a palavra dita não condiz com a revelação divina, os atos não procedem de Deus.

O caráter histórico da revelação. Esta progressão orgânica da revelação se dá no tempo. Deus não revelou Sua vontade de maneira abstrata ou filosófica, mas dentro da realidade concreta da história humana. A revelação de Deus vem à humanidade de acordo com o processo histórico, de modo que homens e mulheres possam compreender e aplicar a mensagem duradoura das relações pactuais ao tempo em que vivem[19].

O caráter orgânico da revelação. Há uma conexão de toda a Escritura, pois ela não foi elaborada em um instante, mas acompanhou todos os eventos da providência divina que, suficientemente, nos forneceu material para, através daquilo que foi registrado nas Sagradas Escrituras, pudéssemos aprender a vontade de Deus. Portanto, a mensagem inteira foi dada, nas palavras de Groningen, em forma embrionária[20], no sentido de que se desenvolve de forma unificada e interdependente, como um organismo vivo. Essa forma orgânica da revelação, somado ao fato que ela tem um caráter redentivo e debaixo de um pacto entre Deus e o homem, implica em uma unidade que reflete o plano redentor de Deus, reforçando a ideia de que toda a Bíblia é testemunha da mesma mensagem de salvação, mesmo que suas partes sejam reveladas gradualmente.

A adaptabilidade da revelação. Dado as administrações do pacto, a revelação se torna adaptável ao período, isto é, não somente as pessoas podiam aplicar a revelação à sua própria vida, mas a revelação também foi dada de tal modo que se constituía em força integral, controladora e plasmadora nas circunstâncias em que os recipientes dessa revelação viviam[21].

Isso nos dá uma noção panorâmica de que revelação é aquele conhecimento pactual que Deus fornece ao seu povo e que consiste naquelas modalidades, períodos e maneiras que Deus se comunicava e manifestava a sua vontade objetivamente de modo infalível, inerrante e autoritativo tanto nas palavras, como nos eventos, como também na significação de ambas as coisas em sua gradual progressão, tendo em vista a redenção dos eleitos, sua manutenção na fé e na santificação para a glória de Deus[22].

Não é imprudente inferir com base em todas estas evidência que a revelação possui uma coerência interna e forte objetividade, não descentralizada à interesses pessoais, mas com uma finalidade divina específica com frutos redentivos que, tendo sido dado aos profetas e apóstolos e, sendo registrado por uma inspiração divina que não só torna as Escrituras infalível como autoritativa à Igreja, tem um princípio e um fim ordenado ao verdadeiro conhecimento de Deus e a piedade, não sendo, portanto, contínua. A revelação como instrumento redentivo está completa, pelo que nos resta é sua proclamação, não adição.

O DESENVOLVIMENTO DA REVELAÇÃO

A revelação divina consiste em duas partes essenciais: a lei de Deus e seu evangelho. Essas partes não são antagônicas, mas são aspectos em que a revelação se apresenta a nós, lemos o apóstolo Paulo dizer que “a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo” (Gl 3.24) e em outro lugar afirma que “o fim da Lei é Cristo, para a justiça de todo aquele que crê” (Rm 10.4). Elas não são sucessivas, porém simultâneas, isto é, Cristo estava presente no tempo em que a Lei era tutora, “porque tudo isso tem sido sombra das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2.17), isto mostra que Cristo e Sua graça estavam presentes já no tempo da Lei, e que a Lei nunca foi um fim em si mesma. Da mesma forma que a Lei nos é presente ainda hoje para revelar a nós o padrão que Deus requer daqueles que crêem em Cristo para a sua salvação. Se há Lei sem Evangelho, temos apenas condenação; o Evangelho sem Lei resulta em graça sem necessidade de arrependimento. Por esta razão, o desenvolvimento da revelação é embrionário, pois embora o aspecto redentivo tenha sido um pouco obscurecido em sombras e tipos na antiga administração do pacto, a redenção estava presente ali e Deus a administrava conforme o seu beneplácito. Na antiga administração da graça, em síntese, vemos de modo progressivo:

(1)   o estabelecimento do pacto de Deus com seu povo, com o registro da vontade preceptiva de Dele na Lei (Gn 17.7; Ex 19.5-6; Dt 4.13; 5.1-3; 29.1; Sl 147.19-20; Rm 3.2; Hb 8.6; Ne 9.13-14);

(2)   a resposta do povo à Deus, ora obedecendo ora desobedecendo esta vontade divina, negligenciando-a e, por vezes, corrompendo-a (Dt 6.4-9; Js 24.14-22; Jz 2.11-17; 1Sm 8.7-8; 2Rs 17.7-23; Is 1.2-4; Jr 7.23-26; Ez 20.5-13; Sl 106.6-39);

(3)   a promessa divina de juízo pela desobediência, como a garantia de redenção de seu povo, incluindo os gentios (Lv 26.14-46; Dt 28.15-68; Is 10.20-23; Is 11.10-12; Jr 31.31-34; Ez 36.22-28; Am 9.11-12; Ml 1.11; Lc 2.32; Ef 2.11-13).

Este triplo aspecto da antiga dispensação da graça envolvia três ofícios que se concretizará de modo perfeito na pessoa de Cristo: real, sacerdotal e profético (Zc 6.13; Sl 110.1-4; At 3.22; Hb 5.5-6; Ap 19.16; Lc 4.18-21). No ofício real, Davi e seus descendentes são chamados para o cuidado do povo de Deus, como o dever de zelar e fazer a Lei de Deus ser ouvida e obedecida (2Sm 7.12-16; Sl 72.1-4; 78.70-72; 1Rs 2.3-4; 2Cr 34.29-33; Dt 17.18-20; Jr 23.5-6). No ofício sacerdotal, as imperfeições da realeza e seus súditos, são compensados pelos sacrifícios e o culto a Deus, onde não somente têm seus pecados expiados, como são ensinados a obedecerem a Lei, isto é, os preceitos divinos são transmitidos ao povo, os levitas aqui estão responsáveis pelo culto (Lv 4.20; 16.6-10; Nm 3.5-10; 2Cr 17.7-9; 30.16-22; Ml 2.7; Ed 7.10; Dt 33.10; Ne 8.7-8; Hb 10.1-4). O ofício profético está estritamente ligado à Palavra de Deus, algo que é análogo à função sacerdotal, porém com elevação e autoridade, visto que ela procede diretamente de Deus, não apenas em seu conteúdo, mas no modo de transmiti-la (Dt 18.15-18; Jr 1.9; 26.2; Ez 3.4; Am 3.7-8; Is 6.1-8; 1Rs 17.1; Zc 7.12; 2Pe 1.21). Na plenitude dos tempos, estes ofícios se tornam perfeitos na pessoa de Cristo, sendo Ele o Leão da Tribo de Judá, que nada deixou fora de seu domínio (Hb 2.8), o tal sumo sacerdote que se assentou à destra do trono da Majestade nos céus (Hb 8.1) e, consequentemente, o único meio pelo qual Deus fala hoje ao seu povo (Hb 1.2). Devemos, no entanto, considerar o ofício profético no desenvolvimento progressivo da revelação até Cristo, sua relação com o ofício apostólico no Novo Testamento após a assunção de Cristo, e sua presença provisória no início da Igreja (esta última é o problema que promove as mais complexas divergências entre reformados e carismáticos).

O ofício profético no Antigo Testamento

A revelação teve os seus agentes na história da salvação, e os profetas foram os que Deus vocacionou e separou para falar aquilo que Ele os ordenara. Nas Escrituras, Abraão foi o primeiro a ser chamado de profeta[23], quando Abimeleque, após ser advertido que Sara era sua esposa, é ordenado pelo Senhor há restituí-la a seu marido; é importante notar que o conceito aqui atribuído a Abraão é associado à atividade intercessória, pois disse Deus “ele é profeta e intercederá por ti” (Gn 20.7). A associação de profeta com o verbo interceder é interessante e já nos informa, no início da revelação bíblica, o caráter de mediação que este ofício desenvolverá na figura de Moisés e no clímax da monarquia de Israel. Embora o termo hebraico פָּלַל em seu sentido mais simples significa julgar (Genesius dirá que sua raiz significa rolar, revolver), o tronco verbal hitpael considera a ação do verbo como intermediária entre dois polos, por esta razão, e.g. lemos que יִּתְפַּלֵּ֥ל אַבְרָהָ֖ם אֶל  אֱלֹהִ֑ים וַיִּרְפָּ֨א אֱלֹהִ֜ים אֶת ־אֲבִימֶ֧לֶךְ (Gn 20.17) — e, orando Abraão, sarou Deus Abimeleque — e em Moisés, a situação se repete quando ele intercede pelo povo de Israel, וַיִּתְפַּלֵּ֤ל מֹשֶׁה֙ אֶל־יְהוָ֔ה וַתִּשְׁקַ֖ע הָאֵֽשׁ (Nm 11.2) — então Moisés intercedeu diante do SENHOR, e o fogo se apagou — e quando Deus secou a mão de Jeroboão, ele implora ao profeta, הִתְפַּלֵּ֣ל בַּעֲדִ֔י (1Rs 13.6) — ora em meu favor. Logo a ideia inicial de profeta na Bíblia está associada ao conceito de intercessor (cf. Êx 8.8; 8.28; 9.28; 10.17; Nm 21.7; 1Sm 12.19), mas ainda no patriarca, vemos como estes vocacionados por Deus era de tal forma próximos de Deus que lemos o Senhor afirmar “ocultarei a Abraão o que estou para fazer...?” (Gn 18.17). E a razão empregada por Deus para revelar a sua obra à Abraão repousa no pacto que havia feito ele (v.18) e anuncia o seu juízo sobre Sodoma e Gomorra (v.20-21) e quando lemos o autor da carta aos Hebreus, lemos que “Abraão, quando chamado, obedeceu, a fim de ir para um lugar que devia receber por herança” (Hb 11.8). O propósito de Deus se revelar a Abraão tem um caráter redentivo, e não apenas para ele, mas para “Isaque e Jacó, herdeiros com ele na mesma promessa” (v.9). Note como, logo no início, toda a estrutura do pacto em seu estado mais desenvolvido, já é percebido em Abraão, pois é tido como um sacerdote e como um rei, visto que ele oferece sacrifícios, lidera um exército e tem a promessa de domínio sobre as nações e reis e a sua descendência (Gn 22.3; 14.13; 17.5-6)[24]. A idolatria de Israel no Egito configurou a quebra do pacto abraâmico (Js 24.14), foi em Moisés que o pacto foi restaurado os ofícios foram bem constituídos no povo.

O povo de Israel que tanto mais se multiplicavam e tanto mais se espelhavam na terra do Egito estavam sobre o domínio e autoridade de Faraó, sendo submetidos à trabalho escravo, e neste contexto, Moisés aparece. O seu nascimento foi marcado por um cuidado extraordinário, uma vez que Faraó ordenou a morte de bebês hebreus, o garoto recém nascido agora se encontra nos braços da filha dele. Após matar um egípcio em favor de um conterrâneo, Moisés foge para Midiã e, após muito tempo, recebe o chamado divino para livrar o povo das mãos do Rei do Egito. Matthew Henry nos informa que assim como as profecias haviam cessado por muitas gerações antes da vinda de Cristo, para que o ressurgimento e perfeição delas através deste Grandioso Salvador e Profeta pudessem ser os mais extraordinários, também a visão havia cessado (ao que parece) entre os patriarcas por algumas gerações antes da vinda de Moisés, para que as manifestações de Deus a ele, para a salvação de Israel, pudessem ser mais bem-recebidas[25]. O caráter do chamado de Moisés é fortemente associado ao conceito de mediador, uma vez que Deus diz “te constituí como Deus sobre Faraó” (Êx 7.1), ele é revestido de uma autoridade divina para executar o seu chamado, ou seja, tu serás mais poderoso que ele, impor-te-ás sobre ele[26], demonstrando que Moisés, assim como todos os demais profetas do Antigo Testamento, são vozes vivas de Deus na terra, constituídas por Ele para falar ao seu povo. Esta autoridade divina dada ele responde à pergunta de Moisés “quem eu sou?” (Êx 3.11), pois Deus seria com Ele (v.12), embora Moisés perguntasse o nome de Deus, seriam as suas obras e o pacto divino que o faria saber quem Ele é, pelo que Deus responde dizendo Eu sou o que Sou (v.14) e logo em seguida, diz “O Senhor, o Deus de Abrão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. Em contraste com a idolatria tão combatida por Deus e declarada fervorosamente contra a sua vontade, note o caráter litúrgico que Deus está sinalizando para Moisés, uma vez que é dito “servireis a Deus neste monte” (v.12) e, ao declarar quem Ele era, Deus afirma “assim serei lembrado” (v.15)[27]. O termo para lembrado aqui é זִכְרִי e significa invocado[28], isto porque a ideia de זֵ֫כֶר aponta para lembrança, memória, menção. Moisés será, portanto, usado por Deus como transição de seu povo da idolatria para o culto ordenado e prescrito por Deus (Êx 19.3-6; Dt 4.10-14; 5.1-33; 12.1-32; Hb 3.2-5) e não poucas vezes, vemos profetas contra o povo de Israel justamento por causa da idolatria (Is 1.2-4; Jr 2.11-13; 7.8-10; Ez 6.4-6; Os 4.12-14; Mq 1.7; Zc 10.2), tendo por causas mais excelentes a influência de outros povos e falsos profetas (Dt 13.1-5;18.20-22; Jr 14.14-15; Jr 23.16-32; Ez 13.2-9;).

Quanto à autoridade profética, destacamos o poder miraculoso que esses homens possuíam em determinados períodos da revelação. Nenhum homem seguiria um pastor de ovelhas para rebelar-se contra um grande rei de uma nação poderosa, rumo ao deserto, sem um destino certo, a menos que esse pastor demonstrasse, de forma extraordinária, a autenticidade de seu chamado. Nem mesmo Moisés se julgou capaz disso, pois disse a Deus: “... não crerão em mim, nem darão ouvidos à minha voz, mas dirão: O Senhor não te apareceu” (Êx 4.1). Como se não bastasse, após convencer Moisés de seu chamado à terra do Egito, assegura-lhe dizendo: “Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de Faraó todos os milagres que te ei posto na mão; mas eu lhe endurecerei o coração, para que não deixe ir o povo” (Êx 4.21) e mais a frente, a credibilidade de Moisés não apenas é fragilizada diante de Faraó, mas diante do povo, visto que eles foram alvo de mais dura servidão (Êx 5.6-9). O conflito em que Moisés se encontrou o fez questionar novamente “por que me enviaste?” (v.22), este mesmo conflito, criado pelo próprio Deus, tem um propósito: “agora, verás o que hei de fazer a Faraó; pois, por mão poderosa, os deixará ir e, por mão poderosa, os lançará fora de sua terra” (6.1) e ratificando, mais a frente, a sua aliança (v.2-5), assevera “vos tirarei de debaixo das cargas do Egito, e vos livrarei da servidão, e vos resgatarei com braço estendido e com grandes manifestações de julgamento” (v.6). O versículo posterior é ainda mais pontual, pois associa a obra de Deus, seus feitos por meio de Moisés com uma finalidade redentiva: “tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e sabereis que eu sou o Senhor vosso Deus” (v.7). Fica claro que o ministério de Moisés é singular na história da redenção e o seu modo de executar sua vocação é extraordinária em virtude do caráter redentivo a qual estava ordenado pelo próprio Deus. Os milagres eram também autoritativos, pois Deus os usa contra o povo ao dizer “todos os homens que viram a minha glória e os meus sinais que fiz no Egito e no deserto, e me tentaram estas dez vezes, e não obedeceram à minha voz, não verão a terra de que a seus pais jurei” (Nm 14.22,23).

O testemunho bíblico destaca Moisé, pois “nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, com quem o Senhor houvesse tratado face a face” (Dt 34.10). A expressão פָּנִים אֶל־פָּנִים face a face não pode ser usada para identificar um conhecimento absoluto de Deus em termo metafísicos e ontológicos, pois isto já nos é impossível, como já fora dito. Leia-se que Deus diz “boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas” (Nm 12.8), assinalando que o modo de Deus se revelar à Moisés é claro e sem rodeios. Acerca de outros profetas lemos “se entre vós há profetas, eu, o Senhor, em visão a ele, me faço conhecido ou falo com ele em sonhos” (v.7). Por mais que ambos não tivessem perfeitamente o conhecimento de Deus, tal como Ele é em essência, o modo como Deus fala a Moisés é perfeito em virtude da finalidade que Ele se revela aos homens, enquanto aos demais profetas, vemos um caráter mais enigmático. E tal é a autoridade de Moisés sobre o povo de Deus, que ele não somente age em termos de sinais e prodígios, mas o seu ensino e autoridade não deve ser contestado. O período mosaico, portanto, foi o estabelecimento do pacto com o povo de Israel, a figura de Moisés é o ponto central em que desenrola o livramento do povo, o estabelecimento da lei, o culto a Deus e as promessas (Rm 9.4,5; Êx 4.15-16; 7.1,2; 19.9; Nm 7.89; 12.8; Dt 5.22-28), onde Deus mostra os sinais e prodígios como credenciais da autoridade profética (Êx 7.3; 10.1,2; Nm 14.11,22; Dt 4.34; 6.22; 7.19; 11.3; 26.8; 29.3; 34.11; Js 24.17). Esta singularidade do legislador de Israel é identificada e geralmente mencionada após a sua morte (Dt 34.9-12; Js 1.2-17; Js 3.7; 4.10-14; 8.31-35; 9.24; 11.12,15,20,23; 12.6; 13.8; 14.5,6,10; 17.4; 18.7; 20.2; 21.2,8. 22.2,5,9; 23.6; 24.5).

No ministério de Moisés é possível observar uma preocupação importante: os falsos profetas. Enquanto ele estabelece a religião, normatiza o culto a Deus e a instrução de seu povo dizendo “tudo o que eu te ordeno observarás; nada lhes acrescentarás, nem diminuirás” (Dt 12.32), a seguir ele adverte “quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te anunciar um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los, não ouvirás as palavras desse profeta” (13.1-3), o que é curioso: os milagres que autentificam a vocação profética não pode divergir do ensino profético até então fundamentado e estabelecido. A singularidade de Moisés aqui é mais acentuada, pois Moisés, sob orientação de Deus, se coloca como o padrão do que é verdadeiro ou falso. Tal critério é tão firmemente posto, que nem mesmo sinais, prodígios ou maravilhas que viessem a ocorrer por meio dos falsos profetas deveriam ser levados em conta. A característica atribuída ao falso profeta é a soberba (18.22), pois toda a ousadia de mudar os padrões da verdadeira religião em virtude de um sinal ou prodígio realizado não pode ser encarado de outra forma. Mas a história de Israel, tanto no período dos Juízes como na monarquia é marcada por inconstâncias por parte do povo judeu e a profecia seguirá o seu curso, não mais no estabelecimento do pacto, mas em sua manutenção e aperfeiçoamento, a formação de um texto normativo progride no avanço da revelação e aquilo que foi advertido por Moisés como erro e pecado, depois de muito tempo, é normatizado na monarquia de Israel e relativizado em Judá, sendo um tempo de apostasia generalizada, corrupção espiritual e ameaça à continuidade da aliança.

Os profetas são usados por Deus para ensinar a Lei, chamar o povo ao arrependimento e exortá-los do juízo de Deus. A ideia principal do Antigo Testamento se sumariza na inimizade do culto ao Verdadeiro Deus contra a idolatria, é nisto que o pacto foi fortemente violado pelo povo de Israel. Neste contexto, os profetas Elias e Eliseu são levantados de forma mais extraordinária para demonstrar a fraqueza dos falsos deuses adorados pelo povo de Deus. Elias ao profetizar a ausência de chuva (1Rs 17.1), invoca a maldição de Deus sobre os israelitas, não dele mesmo, mas prometido pelo próprio Deus no estabelecimento da aliança. Guardai-vos, que o vosso coração não se engane, e vos desvieis, e sirvais a outros deuses, e vos inclineis perante eles; E a ira do SENHOR se acenda contra vós, e feche ele os céus, e não haja água, e a terra não dê o seu fruto, e cedo pereçais da boa terra que o SENHOR vos dá, dirá Deus (Dt 11.16,17) e mais a frente ratifica e os teus céus, que estão sobre a cabeça, serão de bronze; e a terra que está debaixo de ti, será de ferro. O SENHOR dará por chuva sobre a tua terra, pó e poeira; dos céus descerá sobre ti, até que pereças (28.23,24).

A profecia de Elias se revela no Novo Testamento como uma oração do profeta (Tg 5.17) e diante de um pedido de efeitos devastadores na terra de Israel, as Escrituras dizem que Deus o sustentou durante todo o período da seca[29]. Em um primeiro momento, Deus o manda para um ribeiro, onde corvos são ordenados por Deus para sustentarem o profeta (1Rs 17.4), os efeitos devastadores da oração de Elias fez com que o rio secasse, e por ordem divina foi para Sarepta, ordenando uma viúva para cuidar do profeta (17.7-9), alimentando extraordinariamente uma viúva “assim diz o Senhor Deus de Israel: A farinha da panela não se acabará, e o azeite da botija não faltará até ao dia em que o Senhor dê chuva sobre a terra” (v.14), posteriormente, o filho desta mulher adoece “até que nele nenhum fôlego ficou” (v.17). Note que o questionamento da viúva deixa implícito o modo como ela enxerga a adversidade que lhe sobrevém “vieste tu a mim para trazeres à memória a minha iniquidade, e matares a meu filho?” (v.18). A percepção que o ministério profético transmitia em sua época era de completo perigo, pois eles eram representantes de Deus e não podiam ser ofendidos e nem mesmo irritados, a palavra do profeta era palavra do próprio Deus, seja na benção, seja na maldição. Petrus Vermigli ao comentar essa porção em sua obra Melachim, diz que talvez essa doença tenha tido causas naturais, mas Deus se valeu delas, tanto para manifestar seu poder como para confirmar a doutrina e pregação de Elias[30]. Com a morte de seu filho, ela não lança em rosto a ele o benefício da hospitalidade que lhe prestara, nem o acusa de ingratidão ou de crueldade. Estas não são palavras de uma mulher arrogante e altiva, mas de alguém abatido, modesto e penitente, que se julga indigna de ter vivido com Elias[31]. Ela entendeu que seus pecados foram a causa da calamidade que lhe fora infligida, e que a justiça de Elias foi a ocasião. Suas palavras não são apenas cheias de dor, mas também de piedade. Pois não é pequena parte da religião e da santidade confessar que não se está isento de pecados. Isso ela soube, e ao mesmo tempo sentiu a presença de Deus em Elias, que não deixa os pecados impunes[32]. Disto se deduz a natureza santa do ministério profético, a justiça que esses homens transmitiam em sua conduta que, de certo modo, dado a porção do Espírito, era de certa forma, extraordinária. O final da história se conclui com a finalidade revelacional cumprida, quando a mulher diz “Nisto conheço agora que tu és homem de Deus e que a palavra do Senhor na tua boca é verdade” (v.24)

O anúncio da chuva é dado com uma ordem: “Vai, apresenta-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra” (1Rs 18.1). O texto introduz uma informação, Jezabel destruiu os profetas do Senhor (v.4) e Acabe, rei de Israel, estava em busca de Elias. Ao encontrar-se com Acabe e sugerir que o povo de Israel e os profetas de Baal fossem reunidos, ele exorta o povo dizendo “até quando coxearás entre dois pensamentos?” (v.21). A sequência dos eventos que sucederão neste enredo tem a finalidade descrita por Elias em sua oração “manifeste-se hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou o teu servo, e que conforme à tua palavra fiz todas estas coisas” (v.36). Aos que estão atentos ao artigo, percebem que o verbo usado aqui para o verbo manifestar é o termo hebraico para conhecer. O profeta continua a sua oração dizendo: “responda-me, Senhor, responda-me, para que este povo conheça que tu és o Senhor Deus, e que tu fizeste voltar o seu coração” (v.37). Vermigli nos aponta que as orações desse homem tinham três partes principais. Primeiramente, ele pede que o próprio Jeová seja reconhecido e recebido como o verdadeiro e único Deus. Em segundo lugar, ele suplica que o seu ministério seja confirmado, de modo que seja tido por um verdadeiro ministro da Palavra de Deus. Por fim, roga para que o coração do povo se converta a Deus, afastando-se das falsas devoções. O fim principal é a glória de Deus — a saber, que o conhecimento de Deus se propague no mundo; em seguida, considera-se a salvação dos homens[33].

Para nosso propósito aqui, acredito que foi demonstrado o suficiente sobre o ofício profético como ligada à estrutura pactual: Deus se revela com propósito redentivo, estabelecendo uma relação de aliança que abrange não apenas indivíduos, mas sua descendência e, por fim, as nações (Gn 12.3). Toda esta estrutura revelacional está sendo, sob inspiração divina, registrada e preservada para o estabelecimento de um modo objetivo e autoritativo de regra de fé e prática.

O ofício profético na pessoa de Jesus Cristo

A autoridade profética é dada a Jesus Cristo plenamente, uma vez que o Pai usou de sombras para tipificar as verdades espirituais, Cristo é a luz de todos esses enigmas. A vontade de Deus é mais clara e perfeita na pessoa de Cristo, uma vez que Ele mesmo dirá o que Isaías profetizou a seu respeito “O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração de vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor” (Lc 4.18-19). Cheio do Espírito, ele vence a tentação do Diabo (Lc 4.1), ensinava nas sinagogas (v.14), demonstra superioridade em sua doutrina (v.32), expulsava demônios (v.36) e o que se dizia a seu respeito cada vez mais se divulgava, e grandes multidões afluíram para o ouvirem a serem curadas de suas enfermidades (5.15). Tendo o silêncio divino se estendido por muito tempo em Israel, o sussurro de Joao Batista no deserto agora torna-se em barulho ensurdecedor na pessoa de Cristo, pois seu ensino e manifestação claramente fez Nicodemos confessar dizendo que “ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (Jo 3.2). Enquanto na terra, ele continuou o exercício de seu ofício profético através de instruções pessoais, em discursos, parábolas e exposições da lei e dos profetas; e em tudo isso ele ensinou concernente à sua própria pessoa e obra, e concernente ao progresso e comunicação de seu reino[34]. Berkhof salienta que era dever dos profetas revelar a vontade de Deus ao povo. Isto podia ser feito na forma de instrução, admoestação e exortação, promessas gloriosas ou censuras severas. Eles eram os monitores ministeriais do povo, os intérpretes da lei, especialmente nos seus aspectos morais e espirituais. Era seu dever protestar contra o mero formalismo, acentuar o dever moral, fazer ver a necessidade do serviço espiritual e promover os interesses da verdade e da justiça. Se o povo se afastava das veredas do dever, eles tinham que chamá-lo de volta à lei e ao testemunho, e anunciar o iminente terror do Senhor sobre os ímpios. Mas a sua obra também estava intimamente relacionada com as promessas da graça de Deus para o futuro. Era seu privilégio descrever as coisas gloriosas que Deus tinha em depósito para o Seu povo[35]. Cristo Jesus cumpre isto com mais elevada excelência, pois ele é a Palavra de Deus (Jo 1.1-2), o verdadeiro e último Profeta, não apenas por falar em nome de Deus, mas por ser Deus falando aos homens (Mt 7.28-29). Uma vez que os milagres estão, segundo Berkhof, relacionados com a economia da redenção, uma redenção que com freqüência eles preguram e simbolizam[36], notamos como Cristo torna isto mais claro quando, questionado pelos discípulos de João Batista sobre se Ele era o Messias (uma questão vinculada a redenção do povo, no pensamento judaico), Cristo diz “Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres, anuncia-lhes o evangelho” (Lc 7.22). As ações e as palavras de Jesus constituíam sinais indubitáveis de que ele era o Messias a quem João Batista e outros judeus piedosos esperavam, e de que o reino de Deus já estava em ação na história, mudando o destino de uma humanidade perdida em suas misérias e necessitada de restauração.[37] E “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando todo tipo de doenças e enfermidades” (Mt 9.35). O caráter redentivo dos milagres é demonstrado quando Jesus repreende severamente às cidades impenitentes “nas quais ele operava numerosos milagres, pelo fato de não terem se arrependido” (Mt 11.20).

Esse ministério profético de Jesus Cristo (que nos basta dizer até aqui em virtude do amplo e vasto conhecimento que todos têm de seu ministério e propósito) estender-se-á aos seus apóstolos, uma vez que são separados por Cristo para levarem a mensagem do Evangelho como fundamentos onde a Igreja se alicerçará posteriormente (Ef 2.20).

O ofício apostólico no Novo Testamento

A extensão da revelação específica dentro da nova administração do pacto, por meio de Cristo, embora tivesse a presença temporária de profetas, que interpretavam a lei e, de modo extraordinário, autoritativo e eficaz, apresentavam a vontade de Deus, nos apóstolos vemos uma vocação direta e semelhante aos profetas do Antigo Testamento. Os apóstolos são aqueles que Deus comissionou para a fundação da Igreja neotestamentária em sua doutrina, ensino e tradição, pelo que lemos que Cristo “depois de haver dado mandamentos por intermédio do Espírito Santo aos apóstolos que escolhera, foi assunto aos céus” (At 1.2). A autoridade profética de Cristo é conferida a eles pelo poder do Espírito Santo e muitos sinais e feitos extraordinários eram realizados pelos apóstolos (2.43).

Em a grande comissão, Jesus diz “toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que tenho ordenado a vocês” (Mt 28.18). A primeira coisa a destacar é que a missão dos apóstolos é dada em virtude da autoridade de Cristo, que não é apenas aquele segundo Adão, pela qual representa a nova humanidade por ele restaurada, mas o mediador pelo qual a aliança entre Deus e esses eleitos são reconciliados. O escritor aos Hebreus nos explica que "Deus, que várias vezes e de diversas maneiras falou aos pais pelos profetas, falou-nos nestes últimos dias pelo seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, por quem fez também o universo." (Hb 1:1-2). O ápice da revelação é Cristo, pelo que muito atualmente (principalmente os que querem desordenadamente a contínua revelação e manifestação do Espírito, sem levar em consideração a economia de seu plano redentivo) problematizam a revelação de Deus aos apóstolos, sugerindo que, dado que a manifestação e revelação se estendeu até mesmo depois de Cristo, não seria errado a sua extensão até os tempos contemporâneos. O problema surge da incapacidade, destes novos teólogos, de imprimir o modo como a revelação de Deus se dá no Antigo Testamento ao Novo. Quando Moisés é chamado por Deus fica claro que nele se sumariza toda a estrutura da Lei, dos Profetas e dos Salmos, isto porque ele era o mediador-padrão da aliança, porque Deus disse a Moisés “vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o que hás de falar” (Êx 4.12, perceba como isso é comum no ministério profético: Dt 18.18; Nm 23.5; Is 49.2; 50.4; Jr 1.1; Ez 3.27; Zc 8.9), lembre-se que Deus já havia dado os sinais para realizar diante do povo e de Faraó e no final da Lei é mencionado a sua singularidade como profeta em Israel (Dt 34.10-12). Os eventos, sua explicação, assim como Deus revela a sua vontade em função do que foi feito são partes da revelação. E embora Cristo seja pessoal e historicamente a perfeita revelação de Deus, ele mesmo não aplicou, explicou e interpretou toda a revelação de si mesmo aos seus discípulos (pelo menos naquele momento), pelo que lemos Jesus afirmar “tenho ainda muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora” (Jo 16.12).[38] Uma vez que Cristo seria morto, ressuscitado e elevado aos céus, o Espírito viria e explicaria todos aqueles atos redentivos, assim como advertiria a Igreja, por meio deles sobre como deveriam proceder em resposta à sua obra. João Calvino, comentando este texto diz que:

... ele [Cristo] os convida a serem joviais e corajosos, seja qual fosse sua presente fraqueza. Mas como nada mais havia senão a doutrina em que pudessem confiar, Cristo os lembra de que a confiara à capacidade deles. No entanto, para levá-los a esperarem que logo depois obteriam uma instrução muito superior e mais abundante, é como se quisesse dizer-lhes: “Se o que ouvistes de mim ainda não for suficiente para confirmar-vos, sede um pouco mais pacientes; pois antes de muita delonga, tendo desfrutado do ensino do Espírito, de nada mais necessitareis; ele removerá de vós toda ignorância que ainda vos resta[39].

 O derramar do Espírito Santo prometido por Joel deve ser entendido por essa perspectiva. Embora não houvéssemos detalhado os diversos modos em que Deus se revelou no período da revelação progressiva do pacto, se o leitor leu até aqui, não resta dúvidas de que os modos revelacionais de Deus eram visões, sonhos, teofanias etc., tudo isso sob medida e oficiais medianeiros de Deus para com o povo, porém quando lemos a promessa de Jeremias dizendo "Porém este será o pacto que eu farei com a casa de Israel depois aqueles dias, diz o Senhor: Eu colocarei minha lei no seu íntimo, e a escreverei nos seus corações, e serei o seu Deus, e eles serão meu povo. E eles não ensinarão mais cada homem a seu próximo e cada homem a seu irmão, dizendo: Conhecei ao Senhor; porque todos conhecerão a mim, desde o menor até o maior deles, diz o Senhor, pois eu perdoarei a sua iniquidade, e não me lembrarei mais do seu pecado." (Jr 31:33-34) e mais a frente "E eu lhes darei um coração, e um caminho, para que eles possam me temer para sempre, para o seu bem, e dos filhos após eles. E eu farei um eterno pacto com eles, que eu não me desviarei de fazer-lhes o bem. Mas eu colocarei meu temor nos seus corações, para que eles não se afastem de mim." (Jr 32:39-40), ou quando lemos Ezequiel profetizar dizendo "Um novo coração também vos darei, e um novo espírito eu colocarei dentro de vós, e eu tirarei o coração de pedra da vossa carne, e vos darei um coração de carne. E eu colocarei o meu espírito dentro de vós, e vos farei andar nos meus estatutos, e guardareis os meus juízos, e os fareis." (Ez 36:26-27) e vemos a indicação do autor aos Hebreus apontar Cristo como o cumprimento destas profecias (Hb 8.1-13), a ideia de Joel aqui não é descrever o modo como Deus se revelará, mas enfatizar a extensão desta revelação na Nova Aliança, contrapondo a inferioridade com que Deus se manifestava na antiga dispensação, por esta razão diz ele: "E acontecerá que, depois derramarei o meu Espírito sobre toda a carne, e vossos filhos e vossas filhas profetizarão, os vossos velhos sonharão sonhos, e vossos jovens verão visões. E também sobre os servos e sobre as servas naqueles dias derramarei o meu espírito." (Jl 2:28-29)[40].

O caráter profético aplica-se ao ministério dos apóstolos, pois a eles foram ordenadas as palavras que ensinassem (Mt 28.18) como foi a base da Igreja em seu ensino (At 2.42), logo, a continuidade da revelação neles e, evidentemente os sinais. Note que Paulo não se desvia desta linha ao relacionar a sua autoridade à condução dos gentios na piedade, uma vez que ele diz "… eu não ousaria falar alguma coisa que Cristo não tenha feito por mim, para fazer dos gentios obedientes, por palavras e por obras, pelo poder dos sinais e maravilhas, através do poder do Espírito de Deus; …" (Rm 15.18,19) e finalizando a sua epístola diz “… àquele que é poderoso para vos confirmar, segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério mantido em segredo desde o início do mundo, mas que agora se manifestou e pelas escrituras dos profetas, segundo o mandamento do Deus eterno, se fez conhecido a todas as nações para obediência da fé” (Rm 16.24,25), aos Gálatas, lemos “eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo” (Gl 1.12), é interessante que Paulo usa o Espírito Santo e suas extraordinárias operações para questionar se isto é feito pelas obras da Lei ou pela pregação do evangelho (Gl 3.5), usando a evidência dos milagres para demonstrar a transição da antiga para a nova dispensação da graça, como vemos na epístola aos Hebreus “Deus também lhes foi por testemunha, com sinais e maravilhas, e com diversos milagres e dons do Espírito Santo, de acordo com sua própria vontade?” (Hb 2:4), assim como usa para validar o seu ministério apostólico, pois ele se defende de seus acusadores dizendo "… os sinais de um apóstolo foram manifestos entre vós com toda a paciência, por sinais, maravilhas e poderosos feitos" (2Co 12:12). Aos Colossenses, Paulo assevera que se tornou ministro "… segundo a dispensação de Deus, que me foi concedida para convosco, para cumprir a palavra de Deus;" (Cl 1:25) e qual a finalidade de tudo isto? Ele explica dizendo “a quem anunciamos, admoestando a todo o homem, e ensinando a todo o homem em toda a sabedoria; para que apresentemos todo o homem perfeito em Cristo Jesus;” (Cl 1:28). Por esta razão, se o fundamento da Igreja é a doutrina profética e apostólica, é necessário que essa doutrina tivesse sua inteira infalibilidade antes que a Igreja começasse a existir[41]. Por meio do ministério extraordinário dos profetas e apóstolos, o Espírito entregou o cânon de Cristo por inspiração, constituindo a comunidade da nova aliança; por meio do ministério comum dos pastores, o Espírito guia a igreja por iluminação à medida que ela é formada e normatizada por essa constituição[42].

CONCLUSÃO

Este breve artigo tem uma proposta [modesta e introdutória], trazer os fundamentos bíblicos da teologia reformada sobre o cessacionismo, pois sendo que os dons visam um fim proveitoso, estes dons extraordinários se ordenam à finalidade redentiva de edificar a Igreja no conhecimento da verdade, sendo, portanto, de natureza fundacional e não contínua na Igreja. Eles não estão associados ao montanismo, ao anabatismo e ao pentecostalismo, mas à Igreja de Jesus Cristo em seu período inicial, que pelo poder do Espírito, demonstrou aos judeus a nova dispensação da graça que havia chegado pela obra de Cristo e a entrada dos gentios a esta obra salvadora, conforme o plano divino estabelecido da eternidade.



[1] O termo fundamento usado aqui em grego é θεμέλιος que aponta para a ideia de fundação, portanto, não é imprudente inferir daqui a singularidade deste período revelacional que se desenvolve em todo o Antigo e Novo Testamentos [há um debate sobre a natureza desta construção gramatical τν ποστλων κα προφητν, que pode ser lida em Wayne Grudem, O Dom de Profecia no Novo Testamento e Hoje (São Paulo: Vida Nova, 2014) — pág. 423-443]. Isto porque, a ideia de fundamento já estava claramente latente na Lei e nos Profetas, uma vez que lemos que Moisés é orientado por Deus a escrever uma canção que seria um testemunho contra o povo da Aliança, o profeta declara que “Ele é a rocha! Suas obras são perfeitas” (Dt 32.4) e como vemos a ideia de edificação associado ao templo, a Casa do Senhor (1Rs 5.17; 6.1; Es 5.16), o profeta Isaías usa analogamente o mesmo conceito para anunciar a pedra que poria em Sião como alicerce, pedra preciosa de esquina, de firme fundamento (Is 28.16, a expressão firme fundamento aqui é o termo hebraico מוּסָ֣ד posta duas vezes denotando ênfase e tendo como sentido básico a noção de estabelecimento, fundação. O fundamento que Deus coloca em Sião é seguro, inabalável e divinamente estabelecido — não há dúvida quanto à sua confiabilidade) e mais a frente prediz que os alicerces com safira (Is 54.11) e ainda neste texto lemos “teus filhos serão ensinados do Senhor” (v.13), a mesma que esmiuçou o ferro, o bronze, a prata e o ouro no sonho de Nabucodonosor (Dn 2.45).

[2] Sendo Deus a fonte primária do qual todas as coisas procedem, fica evidente que ele possui conhecimento das coisas criadas e possíveis em sua essência de modo primário, como diz Berkhof, Ele conhece o universo como ele existe em Sua própria idéia anterior à sua existência como realidade nita no tempo e no espaço (Teologia Sistemática [recurso eletrônico], pág. 92), análogo ao arquiteto que conhece o prédio que constrói antes mesmo daquele que entrará e comprará o imóvel edificado.

[3] Isto significa que Deus não adquire conhecimento por meio de observação, raciocínio ou aprendizado, mas o possui de forma imediata e inerente. Ao descobrir o valor de uma variável em uma equação, precisamos de um processo de isolamento por parte da incógnita, Deus faz isso sem nenhum processo, mas imediatamente. Enquanto um médico precisa realizar exames para diagnosticar uma doença, Deus já conhece o estado do paciente sem necessidade de qualquer mediação

[4] Por simultâneo, queremos dizer que o conhecimento de Deus não tem sucessão ou passagem de tempo, mas, como afirma o reverendo Dr. Héber Campos, Deus vê todas as realidades em sua totalidade e não pouco a pouco, ou de modo sucessivo (O Ser de Deus e seus atributos, 2002, pág. 223).

[5] CAMPOS, 2002, pág. 17

[6] Ibid, pág. 17

[7] Johannes Maccovius diz que há uma diferença entre a ordem transcendental e predicamental. Esta diz respeito à ordem das criaturas, que está sujeito às categorias da realidade criada e lembre-se, aqui Maccovius reflete o pensamento de Aristóteles das categorias: substância (οσία, substantia), quantidade (ποσόν, quantitas), qualidade (ποιόν, qualitas), relação (πρός τι, relatio), lugar (πο, ubi), tempo (πότε, quando), posição (κεσθαι, situs), posse (χειν, habitus), ação (ποιεν, actio), paixão (πάσχειν, passio). Enquanto Deus, transcende todos esses predicamentos ou categorias, por isto o nome, ordem transcendental, pois ele transcende todas essas coisas – para mais informações deste assunto, consultar o livro Discurso Escolástico: distinções, regras teológicas e filosóficas; tradução por Frankle Bruno e Francisco Tourinho — São Luís, MA. Editora Theophilus, 2023, pág. 235-6)

[8] Quando lemos as Sagradas Escrituras, notamos como o conhecimento está intimamente ligado ao relacionamento; peguemos o exemplo dos filhos de Eli que, segundo as Escrituras, “não se importavam com o Senhor” (1Sm 2.12), a expressão “se importavam” é o verbo hebraico יָדְע֖וּ de יָדַע que significa “conhecer”. Essa expressão aparece muitas vezes na Escritura muito mais que mero conhecimento intelectual, usado também como eufemismo para relação sexual (Gn 4.1,17; 19.5 [a ARA traz a ideia de abuso sexual neste texto]; 1Rs 1.4). Isaías descreve que dado o castigo de Deus sobre o Egito seguido de sua redenção e lemos “E o Senhor se dará a conhecer ao Egipto e os egípcios conhecerão ao Senhor naquele dia, e o adorarão com sacrifícios e ofertas, e farão votos ao Senhor, e os cumprirão” (Is 19.21). Note que o conhecimento segue-se a uma reação positiva dos egípcios para com Deus, indicando culto sincero e relacional “adorarão... farão votos... cumprirão”. O salmista diz “Seja Deus gracioso para conosco, e nos abençoe, e faça resplandecer sobre nós o rosto, para que se conheça na terra o teu caminha, e, em todas as nações, a tua salvação” (Sl 67.1-2), novamente vemos o conhecimento atrelado, à salvação, redenção e, portanto, um relacionamento genuíno com Deus. Quando o povo quebrou o pacto com Deus, entregando-se a impiedade, Deus diz pela boca do profeta “O boi conhece o seu proprietário, e o jumento, o cocho posto pelo dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ah, nação pecadora, povo carregado de maldade, descendência de malfeitores, filhos que praticam a corrupção! Deixaram o SENHOR, desprezaram o Santo de Israel, afastaram-se dele.” (Is 1:3-4). Não nos percamos, os exemplos são vários, mas podemos sumarizar a ideia de conhecimento ao conceito de relacionamento, interação e obediência. Podemos dizer também que o conhecimento está estritamente ligado à ideia de eleição, quando lemos o apóstolo dizer “Deus não rejeitou o seu povo, ao qual conheceu de antemão” (Rm 11.2), note que o verbo conhecer aqui (em grego προέγνω, de προγινώσκω; LouwNida: escolher ou selecionar antes de algum outro evento) está em contraponto com o verbo rejeitar.

[9] Note o versículo 17: κα δν ερνης οκ γνωσαν (lit. e o caminho da paz não conhecem), onde o verbo γνωσαν é uma tradução da Septuaginta para יָדָ֔עוּ.

[10] OWEN, John. O Espírito Santo; 1.ª Edição; eBook. Os Puritanos, 2013 — pág. 49

[11] GRONINGEN, 1995, pág. 54, 55

[12] GRONINGEN, 2006, pág. 13

[13] BRASIL, Paulo. A igreja no Velho Testamento. 1ª ed. [Transcrição da palestra proferida pelo Pr. Paulo Brasil por ocasião do SIMPÓSIO REGIONAL OS PURITANOS em Recife/fevereiro/2006] Recife, PE. Os Puritanos, 2013 — pág. 17

[14] O aspecto providencial de Deus nesse período não pode ser esquecido; não deve lidar com essa concorrência como que se houvesse um sinergismo em termos de salvação, uma vez que a iniciativa do pacto e o ato redentivo veio de Deus ao povo.

[15] ERIKSON, Millard. Teologia sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2015 (pág. 165)

[16] VOS, Geerhardus. Teologia bíblica, antigo e novo testamentos; traduzido por Alberto Almeida de Paula. São Paulo: Cultura Cristã, 2010 — pág. 20

[17] VOS, 2010, pág. 16

[18] GRONINGEN, 1995, pág. 59

[19] Ibid, pág. 59

[20] Ibid, pág. 59

[21] Ibid, pág. 60

[22] A partir desta investigação, temos um fundamento para aquilo que os divinos de Westminster estabeleceram ao dizer que “todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela” (CFW 1.6).

[23] A expressão hebraica usada neste contexto para se referir ao profeta é נָבִיא que significa porta-voz, orador. Gisbertus Voetius [Selectarum disputationum theologicarum, Ultrajecti: apud Joannem à Waesberge, II, pág. 1038] dirá que é um termo que concorda com os caldeus ou sírios e os árabes, os quais, após Maomé, chamam especialmente o seu profeta אלנביא. Ocorre também no Targum o termo נְבִיוּת (Nm 11.29; Pv 30.1), o conceito era amplamente conhecido na antiguidade oriental como alguém intimamente ligada aos deuses. Em grego a expressão comum, relativa ao termo hebraico, é προφτης, do verbo πρόφημι que em sentido geral aponta a ideia de intérprete ou declarador [An Intermediate Greek-English Lexicon — Henry George Liddell/Robert Scott, 1889]. Porém, há outros termos que podem são sinônimos nas Escrituras que apontam para os profetas: רֹאֶה é um termo alternativo (1Sm 9.9) que significa aquele que vê, Samuel e Asafe são chamados de videntes (1Cr 9.22; 2Cr 29.30). Os profetas Elias e Eliseu são chamados de אִישׁ אֱלֹהִים homem de Deus” (1Rs 17.24; 2Rs 4.9).

[24] SMITH, Ralph Allan. Estrutura pactual da Bíblia [recurso eletrônico], 1ªed. Brasília, DF. Editora Monergismo, 2020 — pág. 22

[25] HENRY, Matthew. Comentário Bíblico de Matthew Henry: Antigo e Novo Testamento (6 vols). Rio de Janeiro: CPAD, 2006 (1:232)

[26] FARRAGINIS, D. A. In Exo annotationvm particula, per Leonem luda er Galparem Megandrum ex ore Zwingli er aliorum Tiguri Deuterotarum comportata. Tiguri: Ex edibus Christophori pros chauer, 1537. — pág. 56

[27] O termo servir (hb. תַּעַבְדוּן) aqui é o mesmo para adorar. Ralph Smith salienta o significado deste verbo עבד como termo aplicado ao escravo caseiro e ao súdito ou vassalo de um suserano. Entretanto, a ênfase não é tanto na condição servil do adorador como na função de executar a vontade do senhor. O vassalo habita a casa ou o reino do senhor. No contexto de adoração, a palavra se refere à condição humilde e ao desempenho fiel do trabalho dado ao adorador [Ralph L. Smith, Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem. São Paulo: Vida Nova, 2001 — pág. 302].

[28] WALTKE, Bruce K. Teologia do Antigo Testamento, uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015 — pág. 411

[29] O objetivo da política e das ações de Acabe e Jezabel era promover Baal como a divindade nacional de Israel, em lugar de Yahweh. A disputa da qual Elias sai vencedor diz respeito a qual divindade é rei — qual é a mais poderosa. No material cananeu disponível na literatura antiga (particularmente as informações fornecidas pelas tábuas ugaríticas), Baal é o deus da tempestade e dos relâmpagos e é responsável pela fertilidade da terra. Ao reter a chuva, Yahweh está demonstrando o poder de seu senhorio na área específica da natureza em que Baal supostamente dominaria. Dar esse aviso de antemão a Acabe é o meio pelo qual o senhorio e o poder de Yahweh estão sendo retratados. Se Baal é o provedor da chuva e Yahweh anuncia que irá contê-la, a disputa está em andamento. WALTON, John H. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2018 — pág. 488

[30] VERMIGLI, Pietro Martire; WOLPHIUS, Johannes. Melachim, id est, Regum libri duo posteriores cum commentarijs. Tiguri: Excudebat Christophorus Froschoverus, mense Martio, 1571 — pág. 141

[31] Ibid, pág. 141

[32] Ibid, pág. 141

[33] Ibid, pág. 151

[34] Charles Hodge, Teologia Sistemática, trad. Valter Martins, 1a edição. (São Paulo: Hagnos, 2001), 829.

[35] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, trad. por Odayr Olivetti [recurso eletrônico]. (Campinas: Luz Para o Caminho, 1990), 568.

[36] Ibid, 275

[37] Darío Andrés López Rodríguez, “Lucas”, in Comentário Bíblico Latino-Americano, org. C. René Padilla et al., trad. Cleiton Oliveira et al., 1. ed. (São Paulo: Mundo Cristão, 2022), 1301.

[38] A expressão grega ο δνασθε βαστζειν ρτι pelo contexto, não se refere à incredulidade típica dos ímpios, mas a uma limitação pedagógica dos próprios discípulos, análoga àquela circunstância, pois momentos antes, Jesus ao falar do Espírito da Verdade que eles receberiam para a compreensão daquilo que faltava ensinar, disse que “o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece” (14.17), logo depois, ele reforça o caráter redentivo a qual o Espírito Santo iria ser designado a eles, não os deixando órfãos, nem ignorantes, mas nutriria a relação entre eles e Deus, levando-os obedecer os seus mandamentos, pelo que novamente diz, “mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (v.26). Diante disto, embora o verbo βαστάζω tenha a ideia de tomar com as mãos, levar e suportar em seu sentido mais primário, a ideia de suportar no texto indica aceitação, próximo do sentido do verbo δέχομαι, pelo que lemos ψυχικς δ νθρωπος ο δέχεται τ το Πνεύματος το Θεο·pois, o homem carnal não aceita as coisas do Espírito de Deus (1Co 2.14). O grande problema com esse ponto de vista pode estar associado a questão da regeneração, mas respondemos que embora Pedro dissesse que Jesus era o Cristo, o Filho do Deus vivo (e isso só foi possível por meio da revelação do Pai), será que havia ali, naquele momento a compreensão total, plena e cabal de toda a revelação dessa verdade? O próprio Jesus diz que eles conhecem o Espírito (Jo 14.17), mas Jesus precisava ser glorificado para que algo ainda mais amplo e completo fosse anunciado. Tomé, discípulo de Cristo, só acreditou na ressurreição de seu mestre após vê-lo com suas mãos cravadas (Mt 16.17). Os discípulos na hora da morte apresentam uma fraqueza que os fazem fugitivos perante aquela dura e pesada adversidade que Jesus Cristo enfrentava (Mc 14.50). Ora, se os próprios fatos já testaram duramente a fé dos discípulos, revelando sua fragilidade, quanto mais difícil seria para eles suportar o peso de tais verdades antes mesmo de testemunharem sua realização. Mas vale especificar que a prioridade do texto é ressaltar a incapacidade de um entendimento claro das verdades cristãs àquela altura, “Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.14). Embora já regenerados e crentes, os discípulos ainda não podiam assimilar os desdobramentos da cruz e da nova aliança, pois tais verdades estavam condicionadas à realização dos eventos salvíficos.

[39] CALVINO, João. O evangelho segundo João (Vol. 2). São José dos Campos, SP: Fiel, 2015 — pág. 155

[40] Os diversos modos de profecia, que não eram catalogados como tipos ou gêneros, mas tudo entendido como a clara manifestação de Deus a pouco homens para ministrarem ao povo de Deus, deixa de ser algo de ofício, e passa a ser algo que vai habitar nos corações de seus filhos, pelo que João diz "Porém a unção que vós recebestes dele permanece convosco, e não tendes necessidade de que homem algum vos ensine; mas como a mesma unção vos ensina todas as coisas, e é verdade, e não mentira, como ela vos ensinou, vós haveis de permanecer nele. E agora, filhinhos, permanecei nele; para que, quando ele se manifestar, possamos ter confiança, e não sejamos envergonhados diante dele em sua vinda." (1Jo 2:27-28). O apóstolo associa essa unção ao perfeito entendimento das coisas relativas à salvação em detrimento daqueles que, por meio de elementos fora da tradição apostólica, queriam se denominar superiores, os antigos gnósticos. Ora, uma vez que desde o princípio, a ideia de revelação está associada ao conhecimento de Deus, tendo em vista às coisas relativas à redenção, sugerir uma relação à parte deste pressuposto bíblico, está claramente fora de cogitação. Perceba o aspecto contínuo do verbo μένω no texto, sugerindo através da expressão μένετε ν ατ a ideia de continuidade da permanência do Espírito nos crentes. Anteriormente, o apóstolo diz “vós tendes a unção do Santo, e sabeis todas as coisas” (1Jo 2.20).

[41] CALVINO, João. As Institutas, 1.7.2

[42] Horton, Michael. Doutrinas da fé cristã (1ªed.). Cultura Cristã, 2016 — pág. 923

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