A eleição é o decreto de Deus concernente a certos indivíduos, considerados por Ele como possíveis de serem criados, permitidos a cair, e libertos dessa queda. A causa da eleição é o beneplácito de Deus.
Com efeito, a eleição, seja em relação ao fim, aos meios,
ou a ambos conjuntamente, procede do beneplácito divino. Isto é evidente em Lc
12.32, donde se conclui que Deus age no tempo conforme decretou desde a
eternidade. Ora, desde a eternidade aprouve-lhe dar o Reino. Que tal ocorre
também quanto aos meios é manifesto em Mt 11.25–26 e Lc 10.21,
onde Cristo afirma que tal foi o agrado de Deus: revelar a certos a via da
salvação. Que ambos (meios e fim) procedem do beneplácito divino também é
claramente exposto em Rm 9, onde se declara: “Não depende do que
quer, nem do que corre”, etc., ou seja, não depende de que alguém se dirija
por si mesmo ao fim ou aos meios, mas de que Deus os conceda àquele a quem
quiser. Objeção Arminiana: Se fomos eleitos por beneplácito, então isso
supõe algum movimento em Deus causado por alguma qualidade nossa. Pois, se lhe
aprouve, é porque lhe fomos agradáveis; e ser agradável (beneplacere) é
o mesmo que ser grato. Assim, fomos eleitos por sermos agradáveis. Resposta:
Ao dizermos que fomos eleitos por beneplácito, não nos referimos ao objeto
(isto é, ao eleito), mas ao propósito de Deus. A forma do decreto é esta: “Quero
criar certos indivíduos, possíveis de serem feitos por mim; permiti-los a cair;
e desses mesmos libertá-los da queda e salvá-los por causa de Cristo.”
Essa eleição de Deus é eterna.
Prova: Ef 1.4. Mas se objeta com base em 2Ts
2.13: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo
Senhor, porquanto Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, mediante
a santificação do Espírito e fé na verdade.” Aqui, dizem, “desde o
princípio” ἀπ᾽ ἀρχῆς não
pode significar “desde a eternidade”, pois o
que é
eterno é
sem ἀρχή
(princípio).
Logo, “desde
o princípio” significaria “pouco
depois dos inícios”, do mesmo modo que expressões
semelhantes são entendidas em Jo 8.44, onde se afirmar
que “o diabo foi homicida desde o princípio”, e em 1Jo 3.8, “pecou
desde o princípio”, isto é, desde pouco depois dos primórdios do mundo,
quando foi corrompido e se tornou réu de hediondo homicídio. De fato, um
paralelo dessa passagem em 2Ts se encontra em Ap 17.8, onde se
diz que os eleitos estão inscritos no Livro da Vida “desde a fundação do
mundo”. Resposta: Trata-se de um modo de falar frequente nas
Escrituras, segundo o qual algo se diz “acontecer” quando se manifesta ou é
declarado. Veja-se Pv 17.17. É desse modo que o Espírito Santo fala
nesses textos, ao dizer que os eleitos são escolhidos ἀπ᾽ ἀρχῆς e inscritos no Livro da Vida “desde
a fundação
do mundo”,
referindo-se não à eternidade essencial de
Deus, mas a uma certa declaração externa da eleição
feita ab aeterno.
Ele alude, nesses lugares, àquela célebre promessa feita
a Adão após a queda: de que a semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente
(Gn 3.15). Aí se encontra uma notável declaração do juízo divino, que
estabelece uma distinção entre eleitos e réprobos: “Porei inimizade entre ti
e a mulher, entre a tua semente e a semente dela.”
A eleição não foi feita por causa de Cristo, como se Ele
fosse sua causa meritória.
Razão: I. Cristo, como Mediador, veio e foi enviado ao
mundo por nossa causa. Logo, foi porque Deus primeiro quis conceder-nos a
salvação que ordenou Cristo para nascer como homem. Assim, Cristo, enquanto
meio para a execução da eleição, é posterior à eleição para a salvação; por
conseguinte, não pode ter sido nela o fundamento. Pois, primeiro se considera o
fim, e só depois os meios, o que, embora valha sobretudo no plano humano,
também é verdadeiro analogicamente quanto a Deus. Essa prioridade, no
entanto, não é de tempo, mas de natureza, ou seja, de ordem no entendimento dos
decretos divinos. Por essa razão, o apóstolo Paulo chama Cristo de λύτρον ἱλαστήριον, cf. Cl
1 e Rm 3, mas nunca diz que Ele seja a causa pela qual estes foram
eleitos e aqueles não. II. A mediação de Cristo e a redenção por Ele operada
são atos pelos quais se satisfaz a justiça de Deus, o que, de fato, não é o
significado da palavra "eleição". Pois uma coisa é ser Mediador;
outra, ser a causa da eleição ou da prelação (isto é, da escolha de um em
detrimento de outro) no conselho secreto de Deus. Segue-se, então, que
Cristo é sim a causa meritória da salvação, mas não da eleição. O que equivale
a dizer: Cristo é o fundamento e a causa da execução do decreto de eleição, mas
não sua causa propriamente dita. III. Não é coisa leve o que Cristo afirma em Jo
15.13: "Ninguém tem maior amor do que este: dar alguém a própria
vida por seus amigos." E no capítulo 10, versículo 11, Ele mesmo se
chama o Bom Pastor, porque dá a vida por suas ovelhas. Ora, se Cristo morreu
por amigos e ovelhas, então é necessário que, ao morrer por eles, já os
considerasse como tais, ainda que muitos deles não tivessem ainda sido
chamados. O próprio Cristo atesta isso, pois em Jo 10.16, Ele chama de suas
ovelhas até mesmo àquelas que ainda não haviam se convertido. Logo, se Cristo,
ao morrer por nós, nos considerava como amigos e ovelhas, é evidente que antes
da morte de Cristo já havia sido feita a distinção entre amigos e inimigos,
entre ovelhas e bodes. Portanto, o decreto da eleição precede, em ordem, à
morte de Cristo. O dogma dos adversários deve, assim, ser rejeitado como
subversivo ao Evangelho, pois sustentam que, quando Cristo morreu, ainda não
havia eleição alguma feita. Ora, aquele que morreu pelas ovelhas morreu pelos
eleitos, e não por aqueles que só seriam eleitos depois que Ele tivesse
morrido. Disso se conclui que, pelos “amigos” e “ovelhas” por quem Cristo
morreu, não se entendem apenas
aqueles que já amam a Deus e seguem a Cristo, mas todos aqueles a quem Deus ama, e cuja salvação Ele decretou, por
quem Cristo morreu quando ainda não
amavam a Deus e lhe eram inimigos. É por isso que são chamados
“inimigos” em Rm 5.10, porque não amavam a Deus; mas, mesmo assim, já
eram sumamente amados por Deus, e destinados à salvação em Cristo. Com efeito,
sob diferentes aspectos, eram ao mesmo tempo amigos e inimigos, ovelhas e
bodes: amigos, porque Deus os amava; inimigos, porque eles ainda não amavam a
Deus. Portanto, já estavam na Igreja, ainda que não de maneira terminativa, mas
objetiva. E a própria razão natural demonstra isso: assim como a cura do
enfermo sempre precede, na intenção, à aplicação do remédio pelo médico, assim
também é necessário que, na mente de Deus, a ideia de salvar certos homens seja
anterior (não no tempo, mas na ordem) à de enviar o Salvador. Aqui, porém, os adversários apresentam muitas
objeções:
I. Objeção: Diz-se expressamente em Ef 1.4 que fomos
eleitos em Cristo. Resposta: Mas a gramática mostra que o Espírito Santo
não diz simplesmente que fomos eleitos “em Cristo”, mas que fomos eleitos para
ser. Com efeito, a quem se refere o infinitivo εἶναι, senão ao verbo precedente ἐξελέξατο? Isso é inegável.
Assim, o sentido dessas palavras é:
Elegeu-nos para que fôssemos santos, etc., em Cristo. Além disso,
as palavras Elegeu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para sermos santos
são razão explicativa das palavras anteriores: Bendito seja o Deus e Pai de
nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com toda bênção espiritual em
Cristo Jesus — o que mostra que a partícula “como” indica o sentido destas
expressões conexas: Ele nos abençoou com toda bênção espiritual em Cristo
Jesus, como nos elegeu para esse fim — a saber, para que nos fossem conferidas
essas bênçãos espirituais, que consistem precisamente em sermos santos e
irrepreensíveis diante Dele. Logo, este texto não favorece, mas prejudica a
opinião dos adversários. Pois o que ele afirma é que Cristo é a causa meritória
de todas as bênçãos espirituais, e que fomos eleitos a fim de que tais bênçãos
nos fossem concedidas em Cristo. Não fomos eleitos porque já estávamos em
Cristo, mas para sermos feitos n’Ele. Fica claro, portanto, que fomos eleitos,
segundo a ordem da natureza, antes de estarmos em Cristo, pois fomos eleitos
para que em Cristo fôssemos abençoados.
II. Objeção: Rm 8 diz que os que Deus pré-conheceu,
também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim
de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. Resposta: Daí
concluem que Cristo já era considerado predestinado, pois se diz claramente que
fomos predestinados a ser conformes à Sua imagem; ora, dizem, a imagem já
existia, se a ela devíamos ser conformados. Portanto, Cristo já era
predestinado, segundo a ordem da natureza, e, assim, seria a causa da
predestinação. Resposta: De fato, fomos predestinados a ser conformes à
imagem do Filho de Deus. Mas isso não implica que Cristo tenha sido
predestinado primeiramente como causa da nossa predestinação, mas sim que Ele é
o primeiro entre os meios pelos quais nossa salvação haveria de se cumprir. Ele
é o primeiro elemento da cadeia dos meios, do qual os demais dependem, cf. Hb
10.
III. Objeção: Se Deus primeiro quis a nossa salvação, e
só depois, por causa dessa vontade, determinou que Cristo fosse nosso Mediador,
então Deus quis conceder-nos salvação fora de Cristo, o que é absurdo.
Pois, se a quis fora de Cristo, também poderia concedê-la fora d’Ele. Resposta:
A proposição “Deus quis conceder-nos a salvação fora de Cristo” admite
dois sentidos: (I) Um sentido verdadeiro: que Deus antes de designar Cristo
(uso aqui o termo “antes” não para indicar tempo, mas ordem natural) designou a
salvação. Nesse sentido, a proposição é verdadeira, pois Cristo foi ordenado
por causa da salvação, e não a salvação por causa de Cristo; (II) Um sentido
falso: que Deus nos quis conceder aquela salvação, para a qual ordenou Cristo
como causa meritória, fora de Cristo, o que de fato não ensinamos, sendo tal
proposição inadmissível. Portanto, não é absurdo afirmar que Deus quis conceder
salvação a alguns fora de Cristo, quanto ao seu desígnio intencional.
Pois o decreto quanto ao fim é anterior ao decreto quanto aos meios (entenda-se
aqui uma anterioridade de natureza e de ordem, não de tempo). Com efeito, os
meios existem por causa do fim, e não o fim por causa dos meios. É isso que
claramente atesta a Escritura, que afirma que Cristo veio ao mundo por causa da
nossa salvação — 1Tm 1.15; Mt 18.11. Mas não se conclui disso que,
porque Deus desejou a salvação antes de Cristo na intenção, Ele também a
desejou fora de Cristo na execução. Pois nunca decretou concedê-la senão em
Cristo, como atestam frequentemente as Sagradas Letras. Quanto à objeção
adicional: “Se pôde querer a salvação fora de Cristo, também pôde concedê-la
fora de Cristo”, isso é falso. Pois todo fim é primeiro intencionado, e é
intencionado separadamente dos meios, porque os meios são determinados por
causa do fim. Mas acaso, porque o fim é primeiro e considerado
separadamente dos meios, segue-se que ele possa também ser realizado sem os
meios? Por esse raciocínio, nenhum meio seria necessário, mas todos
arbitrários. Tragamos exemplos concretos: o médico primeiro quer a cura, não o
remédio; portanto, ele pode querer ou mesmo conseguir curar sem o remédio? Ou
alguém pretende construir uma casa antes mesmo de pensar em madeira, pedra,
carpinteiro e pedreiro — porventura poderá ele edificá-la sem matéria nem
operários?
IV. Objeção: Ef 1.6 afirma: “Fez-nos agradáveis a si
no Amado.” Daí deduzem: “Se somos agradáveis n’Ele, então Deus não
poderia nos amar fora de Cristo; mais ainda, não poderia nos amar senão como
fiéis, já que não estamos em Cristo senão pela fé.” Resposta: Ser
amado e ser agradável são coisas distintas. Deus ama até mesmo aqueles que
ainda não fez agradáveis a Si. Pois amar significa desejar ou realizar o bem
para alguém; já ser agradável significa ser aceito e aprovado. Ora, Deus pode
querer e fazer-nos o bem antes de nós lhe sermos agradáveis. Pois só podemos
ser agradáveis a Deus se formos justificados e regenerados, já que “o ímpio e
morto no pecado não pode agradar a Deus”. Que Ele quis fazer-nos o bem antes de
sermos assim, é evidente — e nem mesmo os adversários o negam. Pois afirmam que
Deus seriamente deseja, quer e aspira à salvação de todos os pecadores. Logo,
Ele quer, deseja e aspira que os inimigos se tornem amigos, que os
não-regenerados sejam regenerados, e que os ímpios sejam justificados.
Portanto, Ele quer o bem àqueles que ainda não lhe são agradáveis, o que mostra
que é possível desejar o bem a quem ainda não agrada. Mais ainda: não apenas
deseja o bem a alguns, mas também faz com que passem a ser agradáveis, os que
antes não o eram. A Escritura mostra isso claramente, explicando como Ele nos
torna agradáveis a Si em Cristo. Acerca de como somos por nós mesmos, fora da
justificação e da regeneração, ela declara: somos ímpios, inimigos de Deus,
filhos da ira, e outros termos semelhantes. Mas tais males, o Senhor os remove
de nós em Cristo. Ele nos reconcilia consigo em Cristo Jesus — 2Co 5.19:
“Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos
homens os seus pecados.” Aqui se ensina como Ele fez, de inimigos, amigos
Seus. Que Ele nos regenera, é claro em Ez 36: “Dar-vos-ei um coração
novo, e porei dentro de vós um novo espírito; tirarei da vossa carne o coração
de pedra, e vos darei um coração de carne. Porei o meu Espírito dentro de
vós...” E também em Ef 2.10: “Pois somos feitura dele, criados em
Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que
andássemos nelas.” Portanto, Deus deseja e confere bens a nós antes que
sejamos agradáveis a Ele; mais ainda, ao nos conceder esses bens em Cristo
Jesus, Ele nos torna agradáveis a Si.
V. Objeção: Rm 8.29, “Predestinou-nos para sermos
conformes à imagem de Seu Filho.” Logo, o Filho foi predestinado primeiro,
e só depois nós. Resposta: Uma coisa é ser predestinado ao fim, outra é
ser predestinado aos meios. Fomos primeiro predestinados ao fim, antes mesmo de
Cristo, enquanto fim desejado por Deus. Mas porque Cristo ocupa o primeiro
lugar entre os meios, a nossa conformidade a Cristo ocupa o segundo lugar. Logo,
esse meio (a conformidade à vida e à paixão de Cristo) foi predestinado posteriormente,
em relação à nossa predestinação ao fim.
A eleição não é
condicional, como forjam os adversários, concebida segundo esta forma: “Quero
salvar aqueles que hão de crer.”
Nenhum decreto de Deus, tampouco a sua vontade, é
condicional, como já demonstramos ao tratar dos decretos divinos em geral. Aqui
acrescentamos o seguinte:
I. Se a eleição fosse dessa natureza, então não
seria propriamente a vontade de Deus, nem seu decreto, mas apenas uma velleidade.
Ora, velleidade ou desejo em sentido próprio indica uma imperfeição
intrínseca, e seu ato é indefinido. Tal coisa não pode de modo algum existir
formalmente em Deus, que é perfeitíssimo e ato puríssimo.
II. Não se pode chamar propriamente de vontade
aquilo que está suspenso sob condição, mas apenas aquilo que efetivamente quer.
Com efeito, se Deus elegeu os homens para a salvação sob esta condição: “Se
creres, quero tua salvação”, essa proposição não indica que Deus quer a fé
e a salvação dessa pessoa mais do que a incredulidade e a perdição, visto que
simultaneamente se ouve: “Se não creres, morrerás.”
III. Supor um decreto e uma vontade disjunta
atribui a Deus uma falha σφάλμα alheia à sua perfeição. O próprio Suárez, embora
concorde com os adversários nesse ponto, o admite. Com efeito, ele diz (em De
Praedest., livro 1, cap. 13, seção 5) que a preparação dos meios, feita de
modo confuso e sob forma disjuntiva, isto é, para que, se um meio não surtir
efeito, outro seja aplicado, não é conforme à perfeição divina. A perfeição
divina requer que, com ciência certa e de modo claro e distinto, tudo seja
disposto em conformidade com a dignidade e capacidade de cada coisa. Portanto,
o decreto geral “Quero salvar os homens sob a condição de que creiam”,
ao qual os adversários subordinam este outro: “Quero salvar Pedro, que vejo
que crerá”, é inepto para ser atribuído a Deus. Seria como se a vontade ou
o decreto divino fosse indefinido, confuso e universal, com um progresso ou
transição de uma indeterminação para uma determinação. Mas é igualmente absurdo
imaginar em Deus uma vontade indefinida, uma ciência geral e um progresso de um
ato para outro ou posterior. Assim como Deus conhece singularmente [singularissime]
cada coisa, com suas causas e circunstâncias, não de forma genérica e confusa,
mas em grau extremo de distinção, assim também decreta de uma só vez e de modo
completo, num único instante de natureza. Essa verdade é tão manifesta que o
próprio Suárez, jesuíta e defensor da posição adversária, a sustenta com vigor
e confessa ter recuado de sua opinião anterior sobre a causa meritória à luz
dessa evidência. Além disso, no decreto geral pelo qual todos os homens seriam
eleitos sob a condição de prestarem fé, Deus seria escarnecido. Seria um
decreto sob condição que, no exato momento em que é proferido, Deus já sabe com
certeza que não será cumprida. E isso é ainda mais absurdo se tal condição só
pode ser realizada com o auxílio e a eficácia d’Aquele mesmo que decreta. Com
efeito, Deus não estabelece tal condição para o homem, mas para si mesmo, o que
é inaceitável. A experiência prova que Deus não administra a todos os meios
necessários para o cumprimento dessa condição. Ele não quer que o evangelho
seja anunciado a todos, nem concede a todos o Espírito de regeneração. Por fim,
o juízo a ser dado acerca dessa eleição geral pode ser extraído de suas
consequências, dentre as quais a principal e mais grave é esta: afirmam que o
número dos eleitos não é certo nem previamente definido por Deus. Com isso, a
eleição dos indivíduos se torna incerta, e, portanto, incerto também o número
dos eleitos. Ora, a Escritura ensina que o número dos eleitos é certo, conforme
Ap 6, onde as almas sob o altar são exortadas a esperar até que se complete o
número de seus irmãos. Cristo também fala das ovelhas que lhe foram dadas antes
mesmo da conversão, em Jo 10.16. E ainda: “Todos os que o Pai me dá virão a
mim”, Jo 6.37. E: “Ninguém pode arrebatar minhas ovelhas da minha mão”,
Jo 10.28. Lucas confirma isso quando, em Lc 10.20, Cristo diz aos apóstolos: “Não
vos alegreis porque os espíritos vos obedecem, mas alegrai-vos porque vossos
nomes estão escritos nos céus.” Essa expressão é tomada dos profetas, nos
quais se diz que algo está escrito quando foi fixado e estabelecido por decreto
divino. Em Is 4.3, por exemplo, são chamados “escritos para a vida” os que
devem ser preservados segundo o conselho de Deus. Em Is 65.6 se lê: “Eis que
está escrito diante de mim; não me calarei, mas retribuirei”, como se
dissesse: está decidido e decretado por mim punir esses crimes. Não menos
claramente afirma o apóstolo em Hb 12.22–23, onde chama a Igreja de “Jerusalém
celestial e assembleia dos primogênitos inscritos nos céus”. A isso se
refere o “livro da vida”, mencionado com frequência, especialmente em Ap 20.15,
onde se diz que serão lançados no lago de fogo os que não forem encontrados
inscritos no livro da vida. Sabemos, é claro, que há um certo “livro da vida”
que não é o da eleição, mas o catálogo dos que se professam membros da Igreja e
estão visivelmente inseridos na aliança, como mencionado em Ez 14.9 e Sl 69.29,
livro do qual é certo que alguns são apagados. Contudo, quando se precipitam no
inferno todos os que não estão inscritos no livro da vida, fica claro que esse
livro designa um número certo e definido de pessoas que, enquanto os demais são
destinados ao fogo, são reservadas para a vida. Tal número não pode ser
aumentado nem diminuído, nem agora nem no dia do juízo. Além disso, a eleição é
de pessoas singulares e definidas, como demonstraremos a seguir.
1. Em Rm 9, os predestinados são designados como
Isaque, Ismael, Jacó, Esaú e Faraó. Nenhuma razão impede que o mesmo se diga
dos demais predestinados. Objeção: Jacó e Esaú são ali tomados como
tipos. Resposta: Isso é inapropriado. O texto trata de Esaú e Jacó como
concebidos por Rebeca. Mas foram concebidos absolutamente, e não enquanto
tipos. Ainda que se concedesse isso, o que dizer então de Isaque e Faraó?
Seriam também tipos? Réplica: Sim, pois de Esaú se diz que foi odiado
antes mesmo de pecar, e Deus não odeia a pessoa absolutamente, mas apenas o
pecador. Resposta: Assim como a reprovação é dupla, o mesmo se aplica ao
ódio divino. A reprovação pode ser negativa, ao não se estar inscrito no livro
da vida; ou positiva, ao ser destinado e ordenado para a perdição. Do mesmo
modo, o ódio divino pode ser negativo, quando alguém não é amado; e positivo,
quando se ama alguém menos em razão do pecado, conforme Sl 5.5–6. Esaú,
portanto, é dito ter sido odiado com ódio negativo, ou seja, por não ter sido
dignado com o amor divino.
2. Em Lc 10.20, Cristo ordena: “Alegrai-vos
porque vossos nomes estão escritos nos céus.” Isso equivale a dizer que
pessoas certas e definidas foram predestinadas, pois a metáfora é tirada
daqueles que, ao registrar pessoas certas e individuais, costumam anotar seus
nomes. Objeção: Ainda que isso se conceda, não se segue que a reprovação
seja também de pessoas certas, pois em lugar nenhum se diz que os nomes dos
réprobos estão escritos, o que deveria ser dito, se a reprovação fosse
semelhante à eleição. Resposta: É certo que o Espírito Santo trata com
mais parcimônia dos réprobos do que dos eleitos nas Escrituras. A razão é que
os ímpios não são objeto da mesma solicitude divina que os piedosos. Além
disso, ainda que não se afirme literalmente que os nomes dos réprobos estão
escritos, há passagens que indicam com clareza que certas pessoas são, de fato,
reprovadas.
3. Todo fiel pode saber, quanto a si mesmo
enquanto pessoa singular e determinada, que Cristo morreu por ele. Se,
portanto, Cristo morreu por pessoas certas, segue-se que isso foi decretado
desde a eternidade: que Ele morreria por esta ou por aquela pessoa em
particular. Com efeito, assim como Deus age no tempo, assim também decretou
desde a eternidade agir. Objeção: Cristo não morreu por pessoas
definidas, já que se diz que morreu por todos. Resposta: Se entendes
isso no sentido de que morreu por todos e cada um individualmente (pro
omnibus et singulis), estás equivocado. Vê, por exemplo, a explicação dessa
expressão em Ap 7.9. As seguintes proposições são contraditórias: que Cristo
morreu por todos e cada um, e que, ainda assim, alguns foram reprovados —
especialmente se isso for combinado com a distinção entre vontade antecedente e
consequente. Com efeito, dizem que Deus, por vontade antecedente, quis que
todos e cada um fossem salvos, mas, tendo previsto que alguns não haveriam de
crer, por vontade consequente quis apenas a salvação de alguns. E, mesmo assim,
afirmam que Deus concedeu a todos e a cada um o meio de salvação. Ora, se por
vontade consequente Ele não quis a salvação de todos e cada um, como poderia
querer-lhes o meio?
4. Há também um decreto concernente até mesmo aos
nossos cabelos e aos pardais. Como poderia, então, haver decreto para essas
coisas — que, em comparação com o ser humano, nada são — e não haveria um
decreto concernente ao próprio homem, e de fato, a cada pessoa humana em
particular? A premissa é evidente por Mt 10. A consequência é confirmada por
analogia em 1Co 9.9.
A eleição para a salvação não se deu com base na fé
prevista.
Nossos argumentos são os seguintes:
I. “Não fostes
vós que me escolhestes, mas eu vos escolhi a vós” (Jo 15.16). Se, contudo,
quiséssemos crer antes que ele nos escolhesse, seríamos nós os que primeiro o
escolhemos, antes que ele nos elegesse. Isso resultaria numa afronta particular
à graça e numa ofensa à sua singularidade, pois a causa de nossa eleição seria
transferida do próprio Deus para o homem, sustentando-se que se deu por nossa
causa. Mas Deus declara: “Não é por vós que eu o faço, sabei-o bem, mas por
causa do meu santo nome” (Is 48.11). E Paulo pergunta: “Ou quem lhe deu
primeiro a ele, para que lhe seja recompensado?” (Rm 11.35).
II. A fé é dom de Deus, conforme Efésios 2.8. Se
assim é, não é coerente nem conforme à verdade afirmar que Deus nos elege com
base em algo que ele próprio está por nos conceder, visto que, nesse caso,
pressupõe-se necessariamente a eleição daqueles a quem tal dom será dado. Tal
eleição, portanto, deve proceder do mero beneplácito e vontade de Deus. Assim,
deve-se afirmar ou que a fé, em contradição com o apóstolo, reside na vontade
humana, ou então que a eleição para a salvação deve ser buscada na única fonte da
misericórdia divina. Dir-se-á: a fé, dom de Deus, é comum a todos, mas nem
todos a aceitam, apesar de lhes ser oferecida. A graça de Deus, então, não
seria irresistível, mas estaria sujeita à decisão do homem, se ele quer ou não
recebê-la. Respondo: aquilo que não é não pode ser chamado dom de Deus.
A fé é chamada dom de Deus não onde ela não está presente, mas onde está. Não
se pode conceder algo que aquele a quem se dá não possui. Há sempre correlação
mútua entre o doador e o recebedor. Onde, pois, há dom, aí Deus concede a posse
da fé. Não se pode falar de dom onde Deus não opera para que se creia.
III. Se Deus nos escolheu com base na fé prevista,
então nos elegeu não como estranhos, mas como filhos; não como estrangeiros,
mas como cidadãos; não como mortos, mas como viventes. Ora, tudo isso o somos
mediante a fé, e, se ele nos elegeu apenas enquanto crentes, elimina-se o
motivo para toda gratidão e exultação entre os eleitos, pois não poderiam mais
cantar a glória de Deus por terem sido escolhidos, apesar de estarem na mesma
condição dos demais, não possuindo nada em si que os tornasse mais dignos do
que os outros, mas tendo sido recebidos exclusivamente por graça e generosidade
divinas. Os adversários negam isso, apresentando-se como recebedores não do
benefício de Deus, mas de sua própria disposição. Desse modo, eliminam a
pergunta do apóstolo: “Quem te fez diferente?” (1Co 4.7). Respondem: nossa fé
nos distinguiu, nossa vontade crente nos separou, pois quisemos crer, enquanto
outros recusaram. Mas o apóstolo insiste: “O que tens que não tenhas recebido?”
IV. Destaca-se aqui o texto de Atos 13.48: “Creram
todos quantos haviam sido ordenados para a vida eterna.” Enquanto Paulo
pregava aos antioquenos, alguns creram e outros rejeitaram o Evangelho. Lucas
afirma que a causa da fé dos primeiros foi a ordenação e o decreto de Deus. A
eleição, portanto, precede a fé, uma vez que a eleição de Deus é a causa porque
se crê. Segundo os adversários, porém, Lucas deveria ter escrito: “E todos
os que creram foram eleitos por Deus em razão de sua fé.” Mas o texto diz o
contrário: que creram os que haviam sido eleitos. Os opositores tentam
distorcer o sentido da palavra τεταγμένοι (ordenados), interpretando-a
como “dispostos”, “preparados” ou “inclinados”, como se Lucas tivesse escrito διακείμενοι
(bem-dispostos). Essa interpretação, no entanto, é refutada: primeiro, porque o
uso que fazemos desse vocábulo é o mais comum em Lucas. Veja-se Atos 15.2: ἔταξαν
ἀναβαίνειν Παῦλον (decidiram que Paulo subisse); e Atos
28.23: ταξάμενοι αὐτῷ
ἡμέραν (tendo-lhe
designado um dia). Também Paulo, em Romanos 13.1: αἱ δὲ
οὖσαι ἐξουσίαι
ὑπὸ
τοῦ θεοῦ
τεταγμέναι εἰσίν (as autoridades que existem foram
ordenadas por Deus). Além disso, essa palavra não pode aqui significar
“bem-dispostos”, porque ninguém entre os não-regenerados pode estar
bem-disposto ou bem-afetado à vida eterna. E todos aqueles antioquenos, antes
de crerem no Evangelho, eram não-regenerados. Assim ensina o Espírito Santo
sobre todos os não-regenerados: “O homem natural não compreende as coisas do
Espírito de Deus” (1Co 2.14).
V. A autoridade divina é sustentada também pela
reta razão. Se atentarmos para o próprio título e vocábulo, a origem e uso do
termo mostram que predestinar nada mais é do que ordenar e separar para um fim
determinado. Escolher, tanto entre os gregos quanto entre os latinos, significa
separar alguém ou algo dentre muitos, para si, com determinado uso e fim.
Assim, ou a predestinação divina é para um fim, ou não é predestinação alguma.
E se é para um fim, então também é para os meios, pois quem deseja seriamente e
com reta intenção um fim, quer também os meios que a ele conduzem. Nenhum fim é
desejado enquanto tal, a não ser que esteja em relação com seus meios, que,
segundo a Lógica, lhe atribuem bondade e desejabilidade. Além disso, esses
meios que conduzem à vida eterna são também os meios de participação da própria
vida, são os bens iniciais da salvação, nos quais ela está contida, embora
ainda de forma incompleta. Quem verdadeiramente crê tem em si Cristo habitando,
tem o Espírito de Cristo, possui as primícias da glória, a união e comunhão com
Deus Pai, e já experimenta a própria vida eterna. Possui também a natureza
divina, embora ainda não no grau e modo com que a desfrutará após esta vida.
Ainda assim, quanto à essência, não difere da futura. Ele possui agora a graça
da adoção, da qual aquela futura herança é apenas apêndice. Conclui-se,
portanto, que se alguém é eleito para a salvação e vida eterna, é necessário
que seja igualmente eleito para os meios que constituem parte e grau daquela
mesma salvação.
VII. A eleição seria então do que corre, e não do
que usa de misericórdia.
VIII. Deus não teria compaixão de quem quer, mas
sim daqueles que prevê crerem; logo, a sua misericórdia seria exercida
necessariamente sobre eles.
IX. O texto de Romanos 11.5–6 não poderia ser
verificado: “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente
segundo a eleição da graça. E se é por graça, já não é pelas obras; de outra
maneira, a graça já não é graça.”
X. Deus nada prevê como futuro, senão aquilo que
ele mesmo decretou. Com efeito, se Deus previsse que certos haveriam de crer,
então teria decretado isso. Resta perguntar: por que, então, ele não decretou
fé para todos? A única resposta possível por parte dos adversários é: assim lhe
aprouve.
XI. Em Tito 1.1, a fé é chamada fé dos eleitos.
Ora, pergunta-se: por que a fé é chamada fé dos eleitos? Certamente não se pode
apresentar outra causa, senão: ou porque ela procede das forças deles próprios,
ou porque é dada a todos os eleitos. Os adversários querem sustentar a primeira
opção. Mas isto é falso, pois a fé é dom de Deus, e porque o homem natural “não
compreende as coisas que são do Espírito de Deus” (1Co 2.14). Resta,
portanto, afirmar que se chama fé dos eleitos porque é dada por Deus somente
aos eleitos. Se perguntares por que ela não é dada a todos, será necessário
recorrer ao beneplácito de Deus.
Vamos agora examinar as objeções dos adversários. I.
Objeta-se com o texto de Hb 11.6: “Ora, sem fé é impossível agradar a Deus.”
Resposta: Ser agradável a Deus é uma coisa; ser amado e escolhido por
Deus é outra. Fomos eleitos porque Deus nos amou, não porque fôssemos
agradáveis a ele. Com efeito, Deus nos amou enquanto ainda éramos pecadores (Rm
5.8); mais ainda, ele nos amou para que nos tornássemos agradáveis a si em seu
Amado (Ef 1.6).
II. Objeta-se com Tg 2.5: “Não escolheu Deus os
pobres deste mundo para serem ricos na fé?” Concluem, portanto, que Deus
escolheu com base na fé prevista. Resposta: Deus escolheu os pobres na
fé assim como escolheu herdeiros do Reino, mas os escolheu, não porque
já fossem, mas para que fossem. Aqui é evidente uma elipse do verbo τοῦ γενέσθαι (para que fossem). É certo que a herança é o fim da eleição,
isto é, Deus escolheu
aqueles a quem quis dar a herança
celestial; portanto, o mesmo se deve dizer da fé, pois ambas as expressões são
regidas pelo mesmo verbo e no mesmo sentido. Assim, “ricos na fé”
está gramaticalmente sob
a regência de “escolheu”, mediante o verbo elíptico para que fossem.
III. Objeta-se com 2Ts 2.13: “Deus vos escolheu
desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na
verdade.” Daí concluem que Deus nos escolheu com base na fé prevista. Resposta:
O apóstolo ensina que Deus nos predestinou para alcançar a salvação por meio da
santificação e da fé, mas não afirma que fomos eleitos por causa da fé
prevista; diz apenas que fomos eleitos para alcançar a salvação por
meio da fé. Se desse texto se pudesse inferir que fomos eleitos com base na fé
prevista, também se poderia inferir que fomos eleitos com base na santificação
ou regeneração prevista, o que os próprios adversários não aceitam.
Vorstius, contra Piscator, anota aqui que há uma elipse
dupla: tanto do artigo τὴν depois do substantivo σωτηρίαν, quanto do particípio δεδομένην, para
se entender que a salvação
é dada pela
santificação. Piscator responde, em sua “Resposta à Duplicação Amigável”, que é
falso atribuir-lhe tal elipse, pois aqui não há distribuição entre dois tipos
de salvação, uma dada pela santificação e outra não, mas se entende
simplesmente a salvação eterna, que é uma só e que é dada pela
santificação do Espírito. E pergunta que razão poderia ele ter para forçar essa
elipse? A razão é que essa elipse forçaria a ideia de que a eleição ocorre pela
fé, o que é falso, pois contradiz outros textos claros da Escritura, como
Rm 8.30 e Ef 1.5.
IV. Objeta-se: “Aqueles que Deus salva no tempo
são os mesmos que ele decretou salvar na eternidade; ora, no tempo Deus
primeiro envia Cristo, depois administra sabiamente os meios para
arrependimento e fé, e então recebe em graça os que se arrependem e creem, e
finalmente salva os perseverantes na fé. Logo, Deus decretou salvar essas
mesmas pessoas na mesma ordem.” Resposta: Não há dúvida de que
aqueles que Deus salva no tempo são os mesmos que ele decretou salvar desde a
eternidade; mas dizer que Deus salva na mesma ordem com que decretou
salvar, é verdadeiro num sentido e falso em outro. É verdadeiro que Deus salva
segundo a ordem do seu decreto; mas é falso que, ao executar seu decreto, Deus
siga a mesma ordem que teve ao decretar. Ao decretar, Deus pensa primeiro no fim,
depois nos meios; ao executar, começa pelos meios e termina no fim. Assim
também o médico visa primeiro a saúde, depois os remédios; mas, na prática,
primeiro administra os remédios e depois alcança a cura.
V. Objeta-se que seria contraditório querer salvar
absolutamente alguém, e ao mesmo tempo não querer salvá-lo senão sob a condição
de fé. Resposta: Há aqui ambiguidade no termo “absolutamente”. Se por
“absolutamente” se entende com certeza, de modo preciso e necessário, então
essas duas vontades não se contradizem: querer com certeza salvar alguém, e
querer salvá-lo por meio da fé. Assim como não se contradiz querer
absolutamente que alguém viva, e querer que ele viva mediante comida e
respiração.
VI. Objeta-se que é contraditório eleger alguém
para a salvação antes de crer, e querer salvar apenas os que creem. Resposta:
Negamos que haja contradição entre eleger alguém para que creia e querer salvar
os que creem. Se um pai destina seu filho ainda pequeno ao ministério pastoral
e, mais tarde, o faz ser instruído nos estudos para alcançar esse ministério,
ele estaria querendo coisas contrárias? De forma alguma: ele simplesmente quis,
desde o início, que seu filho chegasse lá mediante os meios.
VII. Objeta-se com 2Pe 1.10: “Procurai fazer
firme a vossa vocação e eleição.” Concluem que a vocação é anterior à
eleição, pois é mencionada antes, e que, portanto, a fé também é anterior. Resposta:
Falsa hipótese. Não é porque uma coisa é mencionada primeiro que ela é anterior
em realidade. Isso é refutado por Mc 1, onde se diz que João batizava e pregava
o arrependimento; o batismo é mencionado primeiro, mas a pregação o precede.
Igualmente Mt 22: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”;
a parte de César é mencionada antes, mas a de Deus é, por natureza, anterior.
Além disso, o tornar firme a eleição pode ser entendido quanto à eleição em si
ou quanto à certeza reflexa dela. Este último é o sentido aqui. A eleição é o
decreto imutável de Deus, que não pode ser revogado (Is 46.10; 14.26). Mas nós
a tornamos firme para nós mesmos quando, ao lermos as Escrituras, reconhecemos
nelas os sinais dos filhos de Deus e os encontramos em nós.
VIII. Objeta-se que a doutrina da eleição destrói
o evangelho. Pois o evangelho diz: “Se creres, viverás”; mas esta
doutrina diz: “Se fores predestinado, crerás.” Resposta: Os
subordinados não se contradizem. O evangelho afirma ambos: “quem crer será
salvo” (Mc 16.16) e “todos os que foram ordenados para a vida eterna
creram” (At 13.48). Objeção: “Mas isto (‘quem crer será salvo’) é
todo o evangelho.” Resposta: Isso é parte do evangelho, não todo o
evangelho. Se estas palavras encerrassem todo o evangelho, que dirás então de
Rm 9, onde se diz que Deus, por sua vontade livre, decretou condenar alguns? Ou
ainda da doutrina de que Deus permitiu a queda para manifestar sua justiça e
misericórdia? Ou da afirmação de que os que foram predestinados à salvação o
foram também aos meios? Objeção: No evangelho se ensina que Deus quer
primeiro que o homem creia, depois que seja salvo; mas esta doutrina afirma que
Deus estabeleceu primeiro a salvação, depois a fé. Resposta: Confunde-se
aqui a ordem de execução com a ordem do decreto. Na execução, Deus começa pelos
meios e chega ao fim; no decreto, começa pelo fim e ordena os meios.
IX. Objeta-se: “Se Deus predestinou uns à fé,
então também predestinou outros à incredulidade; o que é absurdo.” Resposta:
Aquilo que aqui é tido por absurdo não o é, de fato. Pois é certo que Deus
predestinou alguns à incredulidade, não absolutamente, enquanto incredulidade é
pecado, mas enquanto é meio. Ora, são duas coisas distintas: meio e pecado. De
fato, é certíssimo, como atesta o apóstolo em Rm 9, onde tratando do mesmo tema
diz: “Para isto mesmo te levantei, Faraó…” indicando que ele foi
predestinado a resistir a Deus. Outros também são ditos destinados à
incredulidade, como Judas (cf. Jd 4).
X. Objeta-se: “Alguns dos nossos dizem que os
fiéis não são eleitos objetivamente, mas terminativamente; logo, os fiéis
seriam eleitos enquanto pecadores.” Resposta: O sentido é este: que
o eleito acabará por crer, ainda que não creia imediatamente após ser eleito —
o que é verdade, mas não universalmente, pois nem todo eleito é um fiel
“terminativo”; há também eleitos entre os infantes.
A eleição não foi feita com base nas boas obras previstas.
I. Em Rm 9.11-12, toda causa meritória é removida,
como se afirma: “não tendo ainda nascido os filhos, nem praticado o bem ou o
mal...”
II. Se a fé prevista não é causa da eleição,
tampouco o serão as boas obras. Mas é verdadeiro o antecedente, como foi
claramente demonstrado no aforismo imediatamente anterior. Logo, o consequente
também se mantém. A razão da consequência está em que a fé é a causa das boas
obras. Portanto, se a fé, enquanto causa das boas obras, não é causa da
eleição, com muito menos razão o serão as boas obras, que são efeito da fé.
III. Deus nos criou para as boas obras (Ef
2.9-10). Logo, nada nos é conferido em virtude de obras previstas. Objeção
(Arminius): Deus escolheu não os sábios, mas os loucos e fracos, isto é, os
humildes e pequenos, não os altivos. Resposta: Argumento vão e
interpretação deturpada. (1) O apóstolo mostra quem são e como são
os eleitos, não por que foram eleitos; (2) Brinca-se aqui com o termo
“escolheu”, que pode ser tomado ou como decreto divino, ou como separação,
distinção, seleção. Ora, o apóstolo, no lugar citado, toma-o neste último
sentido, e não no primeiro.
Não somos eleitos por causa da fé; antes, é porque fomos
eleitos que nos tornamos crentes.
A eleição é imutável, de modo que aquele que uma vez foi
eleito por Deus para a vida eterna não pode cair da graça de Deus.
O argumento que confirma esta tese é geral: Todo decreto
de Deus é imutável (como já foi demonstrado acima); portanto, também o decreto
da eleição o é.
I. Objeção: Se a eleição é imutável, então tanto
faz se alguém age bem ou mal, o que elimina o zelo pelas boas obras. Resposta:
Parte-se aqui de uma hipótese falsa, como se Deus destinasse alguém ao fim sem,
ao mesmo tempo, o destinar aos meios. Mas a falsidade dessa hipótese já foi
amplamente refutada por nós em outro lugar.
II. Objeção: Os israelitas, que Deus havia
escolhido como seu povo peculiar, foram rejeitados. Logo, a eleição não é
imutável. Resposta: Quando se diz que os israelitas foram rejeitados,
isso não se deve entender a respeito dos eleitos. O contrário é evidente em Rm
9.6. O que se entende é que, antes, Deus havia abrangido com sua graça somente
aquele povo, e dEle somente reunia a Igreja; agora, porém, Ele fez de dois
povos um só, derrubando o muro de separação (Ef 2.14). Não se diz que Deus
recebeu os povos que antes reprovara, mas que agora dignou-se, por sua graça,
com aqueles que antes não o eram.
III. Objeção: Jo 17.12: “Nenhum dos que me deste
se perdeu, senão o filho da perdição.” Mas aqueles que foram dados a Cristo são
os eleitos. Logo, os eleitos podem perecer. Resposta: A partícula εἰ μή é aqui tomada não no sentido de
exceção, mas de distinção (como em Lc 4.26-27). Assim também deve ser entendida
aqui, e a conclusão não procede. Judas é chamado de “filho da perdição”, logo,
foi dado a Cristo? Logo, foi eleito? não
se segue.
IV. Objeção: Êx 32.32: Moisés pede para ser
riscado do livro da vida. Logo, a eleição não é imutável. Resposta: O
pedido de Moisés não é absoluto, mas condicionado, de modo que ele submete tudo
à vontade de Deus — do mesmo modo como Paulo o faz em Rm 9.3. Obj.
Ninguém pede o impossível; logo, também Moisés não. Resp.: O estado do
homem, às vezes, é tal que ele pede até mesmo o impossível, mas o faz de modo
que ainda respeita a vontade de Deus. Exemplo disso vemos em Cristo, que também
pediu o impossível, ainda que submisso à vontade do Pai: “Passa de mim este
cálice... mas não se faça a minha vontade, e sim a tua.”
Deus, ao eleger, o faz de tal modo que escolhe para a graça
e para a glória, conferindo irresistivelmente os meios.
Prova-se, em primeiro lugar, por Romanos 8.30, onde se
afirma que Deus nos predestinou para a glória, de maneira tal que todos os
meios da salvação lhe são atribuídos como ao próprio autor da salvação. Ora,
tais meios lhe são atribuídos de forma a implicar que Ele os realiza
irresistivelmente, pois, de outro modo, não se poderia dizer que os que Ele
chamou, também justificou. Com efeito, poderia Deus chamar alguns que, no
entanto, não viriam.
Segundo, em Efésios 1.3-4, entende-se por bênçãos os
meios da salvação. Ora, é costume das Escrituras chamar de bênção não apenas um
favor em potencial, mas somente aquilo que se efetiva. Por exemplo:
"abençoarei a terra", isto é, "farei com que tenha
produção".
Terceiro, a partir da distinção entre os meios, dos quais
alguns são chamados próprios e outros impróprios. Meios próprios são a fé e o
modo da fé, que geralmente se chama perseverança. Meios impróprios são as boas
obras, e estas são excluídas do rol dos meios próprios, pois o meio, em sentido
próprio, é, conforme a lógica, ao mesmo tempo meio e causa. As boas obras,
porém, de modo algum são causa.
Quanto à fé, é claríssimo que Deus a concede, e de tal
modo que aqueles que são eleitos para a salvação (refiro-me aos adultos)
necessariamente a possuirão, ainda que não neste momento, mas em tempo
oportuno, conforme Atos 13.48.
Arminius levanta uma objeção, dizendo que a expressão
“ordenados” ou “preconhecidos” deve ser interpretada como “dispostos”, e não
como “ordenados”. Respondemos: é uma invenção vã. Pois, se for assim, Arminius
teria de afirmar que o homem não regenerado pode dispor-se para a fé, o que
contradiz a própria natureza do homem irregenerado, tal como é descrita pelo
Espírito Santo. De fato, tal natureza é de tal modo que não apenas é inapta
para perceber as coisas do Espírito de Deus (1 Co 2.14), mas é inimiga e hostil
a Deus, pois “a carne não se sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode fazê-lo”.
Não vale a objeção de que isso não se diz de todos os
eleitos de todos os tempos, mas apenas dos contemporâneos, pois a mesma razão
se aplica a todos os eleitos, já que o Espírito Santo testifica que aqueles que
Deus preconheceu, a esses também chamou.
Sobre a perseverança, é igualmente certo que aqueles a
quem é dada a fé, a estes é igualmente dada a perseverança na fé, conforme Jr
32.39-40. Isso também se demonstra a partir da própria fé: se aqueles que uma
vez a possuíram a pudessem perder, então certamente o Espírito Santo não
ligaria essa promessa à fé: "quem crê será salvo" (Mc 16.16). Com
efeito, não se diz: "quem crer até o fim será salvo", mas
simplesmente: "quem crê", o que torna claro que, uma vez conferida, a
fé nunca é retirada. Por isso se diz, em Rm 11.29, que os dons e a vocação de
Deus são ἀμεταμέλητα, ou seja, irrevogáveis. Note-se cuidadosamente
que tal passagem não deve ser entendida como "dons e vocação", mas
sim como "os dons da vocação", pois sabemos que muitos dons são
concedidos aos homens e depois retirados. Portanto, o que se entende aqui são
os dons próprios da vocação. Expressão semelhante ocorre em Rm 1.5: “por quem
recebemos graça e apostolado”, ou seja, a graça do apostolado. Assim também
Virgílio: libavam pateris et auro, ou seja, "com taças de
ouro". Ora, é desses dons da vocação que se diz serem ἀμεταμέλητα, e isso é uma metáfora antropopática: assim como o homem, ao
se arrepender, muda seu feito, Deus é
dito “não se arrepender” no sentido de não revogar seus dons. Quanto
às boas obras, dizemos que são meio apenas em sentido impróprio. Pois um meio,
em sentido próprio, é também causa. As boas obras, contudo, de modo algum o
são. E, embora sejam concomitantes à fé — a ponto de, onde não existirem, não
haver verdadeira fé (cf. Tg 2) —, dizem-se em Gl 5.6 como aquilo que torna a fé
eficaz, ou seja, que a fé opera mediante a caridade. Mas isso não deve ser
entendido à maneira dos papistas, como se a caridade conferisse à fé seu valor
e a tornasse eficaz. A expressão é semelhante à de 1 Ts 2.13: "a palavra
de Deus é eficaz nos que creem", o que, interpretado toscamente à maneira
dos papistas, implicaria que os fiéis acrescentam eficácia à Palavra. O
sentido, porém, é este: a Palavra é eficaz nos que creem, porque nela opera a
fé. Do mesmo modo, diz-se que a fé é eficaz pela caridade, ou seja, que opera
mediante a caridade. Quarto, Romanos 9.11 mostra que somos eleitos para o fim,
de tal modo que também somos eleitos para os meios. E somos eleitos para os
meios de forma tal que, em tempo determinado, Deus os confere de modo que os
fiéis os tenham necessariamente. Isso se prova pela declaração de que o
propósito de Deus permanece firme. A eleição é firme, mas não o seria se os
meios não fossem também certos. Pois, na execução, o fim depende dos meios. Se
o fim é certo, os meios também o serão. Objeção: a eleição permanece firme,
mesmo que não haja meios. Pois Deus apenas determinou que qualquer um que crer
será salvo; mas não quanto a indivíduos em particular, como João ou Pedro. Da
mesma forma que um príncipe estabelece uma lei dizendo: “quem a cumprir
receberá tal prêmio”. Resposta: isso é impróprio. Demonstramos acima que a
eleição é de pessoas singulares. Segundo, o próprio Espírito Santo, no capítulo
11 da Epístola aos Romanos, trata e resolve essa questão ao dizer que Deus
elegeu Israel e o rejeitou. Como então permanece firme a eleição? Responde-se
que permanece firme porque “nem todos os que são de Israel são Israel” (Rm
9.6), e Deus rejeitou aqueles que não eram verdadeiramente Israel; mas não os
que eram verdadeiramente seu povo.
I. Objeção, ao dizermos que Deus elegeu os homens tanto
para a salvação quanto para os meios, e que Ele confere os meios aos eleitos,
poder-se-ia objetar que Deus então elege o fim, mas não os meios. Seria como se
um pai desejasse que seu filho fosse conselheiro e o enviasse à escola, mas sem
necessariamente lhe fornecer os meios para isso. Assim também Deus, ao não
conferir necessariamente os meios, anularia a liberdade do homem. Resposta:
primeiro, isso pressupõe falsamente que a liberdade não pode coexistir com a
necessidade da imutabilidade, o que é falso. Segundo, se Deus quer o fim, mas
não quer os meios, então, com efeito, não quer seriamente o fim, o que é
absurdo. Mas, se quer o fim, também quer os meios e, portanto, os realiza. Pois
tudo quanto Deus quer, Ele realiza (Sl 115.3).
II. Deus abandona o homem a si mesmo. Pois o Espírito
Santo atribui ao homem a confecção de sua salvação, conforme Fp 2.12, e assim
os homens seriam, de certo modo, os próprios salvadores. Resposta: primeiro, o
Espírito Santo nunca atribui o nome de “Salvador” a ninguém senão
exclusivamente a Cristo, conforme Atos 4.12. Segundo, quanto à passagem de Fp
2.12, "efetuai a vossa salvação", não significa que se deva realizar
a salvação por mérito, satisfação ou aquisição, pois nenhum fiel pode realizar
sua própria salvação nesse sentido, dado que “não há outro nome” (At 4.12). Se
se pergunta: de quem é a salvação? Não é, porventura, daquele que está perdido?
Mas esse que se perdeu não pode ser causa da sua própria salvação, nem ao menos
ao se aproximar dela ou ao participar dela — e é esse o sentido da passagem.
Aproximamo-nos da salvação pela fé, assim como a fé acolhe todas as promessas
de Deus, inclusive a da salvação.
III. Mesmo que se conceda que os meios são conferidos,
não o são a cada indivíduo. Qual seria então o propósito da distinção entre
graça suficiente e graça eficaz? Resposta: primeiro, os que imaginam essa
distinção se contradizem. Pois, se a alguns é dada graça suficiente, como não
será ela também irresistível, preservando a liberdade da vontade? Segundo, até
os dominicanos ridicularizam essa distinção. Pois graça suficiente é aquela à
qual nada falta. Logo, requer três graus de suficiência: primeiro, que se possa
fazer o que Deus quer; segundo, que se queira o que Deus quer; terceiro, que se
efetive o que Deus quer. Ora, se alguma graça chamada "suficiente"
não contém esses três graus, como pode de fato ser chamada suficiente?
A eleição, quanto à razão do fim, isto é, enquanto está na
intenção divina, não é ato de misericórdia, mas de beneplácito e de poder
absoluto de Deus; contudo, enquanto está na execução, é também ato de
misericórdia.
Quanto ao aspecto da intenção, isso é certo; pois ainda não havia pecadores considerados como tais, para serem deixados na queda. Quanto ao aspecto da execução, isso também é certo; pois, como diz o Espírito Santo na Epístola aos Efésios, capítulo 1: “Escolheu-nos n’Ele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante d’Ele.” Ora, se nos escolheu para que fôssemos santos e irrepreensíveis, então nos escolheu quando ainda não éramos santos nem irrepreensíveis, ou seja, pecadores. Logo, é por misericórdia.