LOCI COMMUNES, CAP. XV, De Prædeftinatione
Ora, a Predestinação é o decreto eterno de Deus, ou seja, a vontade eterna de Deus, quanto ao fim sobrenatural de qualquer homem, e quanto aos meios para se chegar a esse fim.
Não tratamos aqui da predestinação dos anjos, visto que,
embora o Espírito Santo trate disso nas Sagradas Escrituras, fá-lo de modo
incidental e brevemente, pois o Espírito Santo quis que sua Palavra fosse
proposta não por causa dos anjos, mas por causa dos homens.
A palavra “predestinação” pode e deve ser atribuída tanto à
eleição quanto à reprovação.
Que o termo predestinação possa e deva ser aplicado tanto
à eleição quanto à reprovação, torna-se evidente:
I. Porque a eleição não somente é expressamente chamada
de predestinação, em Rm 8.29 e Ef 1.5, mas também este nome é aplicado aos
réprobos, em At 4.28: “Reuniram-se para fazer tudo o que tua mão
predestinou.” Essas palavras podem e devem ser referidas também àqueles
réprobos que se reuniram contra o Senhor, a saber, Herodes e Pilatos, de modo
que o sentido seja: Deus não somente predestinou que Cristo morresse, mas
também que morresse pelas mãos daqueles, e que, portanto, estes foram
preparados para realizar a morte de Cristo.
II. Depois, isso também se evidencia pelo fato de que,
sendo alguns predestinados para a vida, entende-se que os restantes são
predestinados para a morte. Assim o exige a própria natureza da oposição.
Portanto, todas as vezes que a Escritura menciona a predestinação dos eleitos
para a vida, confirma também a predestinação para a morte.
III. Porque a condenação para a morte, que agora ocorre
no tempo, pressupõe uma predestinação feita desde a eternidade; assim como a
justificação e a vida pressupõem uma destinação e ordenação para a justificação
e a vida.
IV. Porque a predestinação é o decreto de Deus sobre os
homens e sobre seu fim sobrenatural. Ora, Deus decretou tanto a respeito dos
réprobos quanto dos eleitos, o que haveria de fazer: isto é, decretou tanto a
respeito daqueles que seriam condenados à morte, quanto a respeito daqueles que
seriam justificados, isto é, ordenados para a vida; e assim como predestinou
estes para a vida, também predestinou aqueles para a morte. Por isso:
V. Os Pais da Igreja, entendendo a predestinação de forma
geral, aplicam-na não somente aos eleitos, mas também aos réprobos, de modo que
ambos são ditos predestinados desde a eternidade: uns para a vida, outros para
a morte. Assim escreve Agostinho, A Cidade de Deus, livro XV, cap. 1: “Misticamente
chamamos de duas cidades, isto é, de sociedades humanas, das quais uma foi
predestinada para reinar eternamente com Deus, e a outra para sofrer o juízo
eterno com o diabo.” E no Enchiridion, cap. 100, ensina que: Deus,
como sumamente bom, sabe usar bem tanto os bons quanto os maus: para a
condenação daqueles que, com justiça, predestinou ao castigo, quanto para a
salvação daqueles que, com bondade, predestinou à graça.
VI. Se aquilo que é denotado pela palavra
"predestinação" é atribuído à reprovação, então a própria palavra
também pode ser atribuída; pois devemos ser flexíveis quanto às palavras, desde
que a realidade esteja clara. Ora, aquilo que é significado por esta palavra se
vê que se aplica à reprovação, porque a predestinação é o conselho de Deus a
respeito do fim do homem. Ora, tal é também a reprovação. Pois certamente
ninguém nega que a reprovação seja um decreto de Deus; mas que Deus decretou não
apenas o fim, mas também os meios, demonstram estas razões: primeiro, porque
Deus, sendo sapientíssimo, decretou fazer todas as coisas por causa de fins
determinados. Com efeito, querer o fim e não querer os meios sem os quais esse
fim não pode ser alcançado é querer o fim e ao mesmo tempo não querer o fim, o
que constitui uma contradição de vontade. Segundo, Deus quer, contudo, permitir
certos meios, que por sua natureza são maus, e outros, que são bons. Ora, o fim
ao qual essas coisas são ordenadas, Ele o realiza no gênero humano, quer seja
esse fim a salvação, quer a condenação, na medida em que esta é a justíssima
pena dos pecados. Por isso se lê em Amós 3.6: "Não há mal na cidade que
o Senhor não tenha feito." Terceiro, aquilo que o Senhor decretou,
porque o quer, necessariamente acontece; daí se conclui que se deve julgar da
vontade de Deus a partir do evento: pois, já que certos homens chegam a tais
fins e a tais meios, segue-se que Deus os decretou; e com isso já se compreende
como devem ser entendidas aquelas passagens da Escritura, como em Provérbios
16.4: "O Senhor fez todas as coisas para si mesmo, até mesmo o ímpio
para o dia do mal", e também "vasos da ira preparados para a
perdição", Romanos 9.22. Pois o homem mau não existia antes de ser
feito para a perdição, nem os vasos da ira existiam antes de serem preparados
para a destruição; Deus, com efeito, não age com um fim incerto e jamais falha
quanto ao seu fim. Tampouco prejudica este argumento o fato de se dizer que o
ímpio foi feito para o dia do mal ou que os vasos da ira foram preparados para
a destruição, pois se diz que o ímpio e os vasos da ira foram feitos, não
porque antes já fossem assim antes de serem feitos ou preparados para a
destruição, mas porque todos aqueles que o Senhor fez ou preparou para a
destruição são tais, isto é, ímpios e vasos da ira. Dirás: podem, no entanto,
ser chamados de feitos ímpios, ou vasos da ira preparados, porque Deus os faz
já a partir de uma massa corrompida. Respondo: ainda assim a conclusão é a
mesma, pois se Deus permitiu que essa massa se corrompesse, é necessário
perguntar com que fim Ele o fez; se com o fim de fazer alguns vasos para honra
e outros para desonra. Se negares isso, também deverás negar aquelas razões
pelas quais se provou que Deus jamais falha quanto ao seu fim; se, porém, o
admitires, deverás igualmente reconhecer que, embora Deus forme os homens a
partir da massa corrompida, Ele faz vasos da ira, faz o ímpio, não porque
infunda neles a impiedade, mas porque não purifica a matéria da qual os forma da
qualidade depravada que ela contraiu, mas, no entanto, permitiu que essa
matéria se corrompesse com esse fim, para que esses mesmos fossem tais, e assim
para que se abrisse espaço à manifestação da justiça de Deus ao punir.
Portanto, é necessário afirmar que Deus decretou antes o fim dessas pessoas, e
só depois as ordenou, como meio, a esses fins. A propósito da passagem de
Provérbios 16.4, pergunta-se: como se diz que Deus cria o ímpio para o dia
do mal? Parece, com efeito, que Deus seja causa não só do mal em concreto, mas
também da malícia em abstrato. Respondo: não se trata nesse lugar de
Adão e Eva, os quais foram recebidos de novo na graça, pois a eles foi feita
uma promessa, e isso desde o princípio, de modo que não se pode dizer que
foram criados para o dia do mal. Mas se trata da descendência ímpia de Adão,
que dele é propagada naturalmente. Dirás: como, então, Deus é dito criar
o mal? Respondo: Ele não faz com que o homem seja mau enquanto tal, mas
faz aquele que é mau, isto é, imputa o pecado de Adão a todos os que são
gerados naturalmente a partir dele, de tal maneira que são tidos como se eles
próprios tivessem cometido o pecado, e por isso Ele pune a todos não apenas com
a morte temporal, mas também com a morte espiritual, que em Efésios 2 é chamada
morte nos pecados.
VII. Prova-se o mesmo por expressões equivalentes, pois
os réprobos são ditos "destinados à ira", em 1Ts 5.9 e 1Pd 2.8; e
"pré-escritos para a condenação", em Jd v. 4. Ora, o que é isso senão
serem predestinados? Bellarmino levanta objeção aos dois últimos textos:
“Dizem-se postos e pré-escritos para isso, mas não se diz por quem; é
verossímil, porém, que seja pelo diabo.” Resposta: Fica claro que foram
pré-escritos por Deus, mesmo que isso não seja dito expressamente nos lugares
citados. Pois por quem poderiam ter sido pré-escritos e postos, senão por
aquele que os criou para o dia do mal? (Pv 16). Além disso, é evidente que foi
feito por Deus, conforme Rm 9, no versículo final.
Obj. 1: Em Rm 8.29 se diz que aqueles que Deus
predestinou, a esses também justificou e glorificou; o que não pode ser dito
dos réprobos. Daí se quer concluir que a predestinação não pode ser aplicada
à reprovação. A premissa é certa a partir do texto citado. Resposta: Não
se trata nesse lugar dos predestinados em geral e de modo absoluto, mas dos
predestinados que foram previamente conhecidos; pois assim diz o texto: “Aqueles
que de antemão conheceu, a esses predestinou.” Ora, ali se entende por
presciência não uma simples e nua presciência, pela qual Deus conhece todas as
coisas, mas uma presciência com afeto, isto é, com amor — conforme Sl 1.6 —, o
qual amor é chamado, pelos teólogos, de amor de benevolência; de modo que o
sentido é: aqueles que Deus envolveu com amor de benevolência, esses Ele
predestinou, a saber, à vida, como mostram as palavras seguintes.
Obj. 2: A palavra “predestinação” se aplica mal
àquilo que não tem propriamente um fim. Ora, a reprovação não tem propriamente
um fim, pois fim, propriamente falando, é algo bom. A condenação, porém, que se
diz ser o fim da reprovação, não é algo bom, mas mau. Resposta: Faz-se
distinção entre fim último e intermediário. Pois seja; a condenação é o fim da
reprovação, mas é um fim intermediário, não o último. O último, com efeito, é a
manifestação da justiça de Deus na justa condenação, e isso é algo ótimo.
Obj. 3: A predestinação é a constituição do fim e
a ordenação dos meios para o fim. Ora, a danação eterna não é o fim do homem,
mas apenas o seu extremo; por isso, a reprovação não pode constituir uma
espécie de predestinação. Pois entram em contradição entre si ser ordenado ao
fim e ser ordenado ao mal. Com efeito, todo fim é algo ótimo e a perfeição da
coisa; a danação, porém, é imperfeição e o extremo mal da coisa. Resposta:
O mal de pena, como é a danação, é algo fisicamente ou naturalmente mal, mas
eticamente e moralmente bom. Ora, Deus não é autor do mal enquanto tal, pois
Seus olhos são mais puros do que para ver o mal, conforme Hc 1.13. O mal de
pena, porém, sendo algo bom, é de Deus, como diz Am 3.6; e por isso é bom:
primeiro, por ser infringido segundo as leis da justiça de Deus; segundo,
porque através dele os maus são reprimidos, para que não sigam pecando ainda
mais.
A predestinação de Deus é absoluta quanto à causa externa
impulsiva, mas não é absoluta quanto ao fim e aos meios.
Já mostramos acima que a vontade de Deus não tem causa
externa alguma; o que agora repetimos de forma específica, para que essa
doutrina se fixe melhor nas mentes, o que certamente não é sem razão — pois
esta doutrina, corretamente compreendida, torna fácil a inteligência da
doutrina da predestinação. Afirma-se, portanto, em tese: 1. Que a predestinação
é absoluta quanto à causa impulsiva. Pois, 1) se Deus fosse impelido por algo
para agir, então não seria agente simplesmente e primeiro. O que é falso, já que,
assim como é a primeiramente, é também o primeiro agente. 2) Seguir-se-ia que
Deus sofre, pois seria movido por alguma coisa — e ser movido é sofrer. Ora,
Deus é imutável e impassível. 3) Seguir-se-ia que Deus, ao agir, seria menos
perfeito que alguma outra coisa, e seria causa menos principal que alguma outra
mais principal — o que contradiz à ideia de causa primeira. 4) Se houvesse algo
que movesse Deus a determinar isto ou aquilo, então as coisas não dependeriam
do decreto de Deus. Mas todas as coisas dependem de Deus — as boas, porque Ele
as efetua; as más, porque as permite. E nada pode acontecer a Deus de forma
imprevista, pois tudo ocorre segundo o Seu santíssimo conselho, e por isso Ele
não pode ser movido por coisa alguma. Nós, de fato, somos movidos pelas coisas
boas ou más que nos sucedem fora da expectativa; mas a Deus nada sucede fora da
expectativa, como está em Lm 3.37. 5) Se Deus fosse movido por algo, então
dependeria disso como causa para agir, e, ao operar, dependeria de outro. Ora,
isso é contrário à natureza de Deus, pois então Ele não seria Deus. Como algo é
em seu ser, assim é em sua operação — e vice-versa. 6) Seguir-se-ia que haveria
mudança em Deus, pois antes de ser movido, não era; e, portanto, sucederia algo
a Deus: o começar a ser movido.
Em segundo lugar, diz-se que a predestinação não é
absoluta quanto ao fim, o que é certo — pois Deus, sendo sapientíssimo, nada
quer sem um fim. O fim da predestinação é a manifestação de Sua glória. 2)
Diz-se, ainda, que ela não é absoluta quanto aos meios. Por isso, de forma
imprópria nos contradizem os adversários, como se, dado que tudo se realiza
pelo decreto e pela providência de Deus, não fosse necessário que nos
empenhássemos com diligência, bastando-nos dormir ociosos e apenas esperar o
impulso de Deus. Ora, se Ele necessitar de nossa ação, mesmo contra nossa
vontade nos moverá à obra que quiser realizar por meio de nós. Resposta: Os
santos nas Escrituras nos são apresentados de forma muito mais sincera no modo
como pensam, falam e julgam sobre os decretos e a providência de Deus. O anjo,
em Gn 19, diz com palavras explícitas a Ló: “Apressa-te a ir para Zoar, e
ali salva-te, pois não posso fazer coisa alguma até que tu ali chegues.”
Eis a providência de Deus: Ló é preservado com os seus, os cidadãos de Sodoma e
das cidades vizinhas são destruídos; no entanto, na própria obra da
preservação, é requerido o esforço de Ló — e esse esforço é espontâneo. “Não
posso fazer nada”, diz o anjo, “até que tu chegue a Zoar.” O profeta
e rei Davi claramente diz no Sl 31: “Em ti confiei, Senhor, disse: Tu és o
meu Deus, nas tuas mãos estão os meus tempos.” Ainda assim, aquele que
havia entregue inteiramente sua vida à providência divina, diligentemente
deliberou como, com sua cautela e esforço, poderia escapar das ciladas de Saul,
seu sogro. Tampouco desprezou a ajuda e os artifícios de Mical, sua amada
esposa; não disse: “Todas as coisas são conduzidas pela providência de Deus,
logo não preciso de artifícios. Ele pode me livrar das mãos dos soldados de
Saul, pois é onipotente, ou pode salvar-me por outro modo miraculoso;
descansemos, pois, e deixemos que Deus opere em nós.” Antes, ele entendeu
que a providência de Deus procede por meios e por certa ordem, e que era seu
dever, no temor de Deus, aplicar-se aos meios e mover todas as pedras
possíveis.
Paulo ouviu do Senhor: “Assim como em Jerusalém
testemunhaste de mim, assim também é necessário que em Roma o faças.” E
embora ele não duvidasse da verdade das promessas divinas, nem ignorasse o
poder da providência divina, ainda assim, quando seu sobrinho (filho de sua
irmã) lhe contou que os judeus conspiravam contra sua vida, secretamente o
enviou ao tribuno, pedindo que Paulo não fosse conduzido à presença dos judeus;
tampouco se opôs aos soldados romanos que o conduziam a Antipátrida e, de lá, o
escoltavam com cavaleiros até Cesareia. O mesmo Paulo, navegando no mar
Adriático e já próximo de um naufrágio perigosíssimo, ao ver os demais na
embarcação aterrados, disse: “Exorto-vos a ter ânimo, pois não haverá perda
de vida entre vós, senão do navio. Pois apareceu-me esta noite o anjo de Deus,
a quem pertenço e a quem sirvo, dizendo: Não temas, Paulo; importa que
compareças diante de César; e eis que Deus te deu todos os que contigo navegam.
Por isso, tende ânimo, varões. Pois creio em Deus, que assim será, conforme me
foi dito.” No entanto, pouco depois, quando os marinheiros procuravam fugir
do navio, disse o mesmo Paulo ao centurião e aos soldados: “Se estes não
permanecerem no navio, não podereis salvar-vos.”
O objeto da predestinação é uma coisa segundo a razão do
fim, enquanto está na intenção, e outra coisa enquanto está na execução:
segundo a razão do fim, enquanto está na intenção, é o homem possível de fato,
ou, como gostam de dizer nas Escolas, criável; segundo a razão do fim, enquanto
está na execução, é o homem condenado, criado, a ser permitido no pecado, e
pecador. Para que isto se entenda, explicaremos em poucas palavras antes de
provarmos isto. Deus, antes que tivesse decretado criar estas coisas que criou,
soube que todas estas coisas eram para si possíveis, e portanto soube que o
gênero humano também era possível de fato para si; mas também soube isto: se
fosse criar o homem na integridade, justiça e santidade, e fosse permitir que
ele caísse, então ele cairia, e desta forma seria oferecida a ocasião para
manifestar sua justiça punitiva em alguns, e simultaneamente sua misericórdia
em outros; Ele, porém, quis esses fins, e por conseguinte decretou também criar
o homem, e, uma vez criado na integridade, permiti-lo cair, e deixar alguns
caídos no pecado, libertar outros, que em nada eram melhores que aqueles, da
queda; e assim perder aqueles, e salvar estes.
De modo que se deve considerar que assim estabeleceu
consigo mesmo: Quero manifestar o poder nos homens, bem como a justiça punitiva
e a misericórdia; e porque isso não pode acontecer sem o pecado, e o pecado não
ocorre sem permissão, e não há permissão sem que se permita alguém cair, por
isso quero criar o homem, permiti-lo na queda, e que caia. Esta, com efeito, é
a razão dos decretos de Deus (se é permitido, mesmo que balbuciando, alcançar
sua profundidade, ou, se for lícito, tentarmos fazê-lo); precede o conhecimento
de Deus, pelo qual Ele sabe o que é possível de fato para si, como é o homem. E
de fato sabe que, se fosse permitir que ele caísse, ele cairia; e se ele fosse
cair, seria dada ocasião para manifestar a misericórdia em alguns, e a justiça
em outros. Portanto, Ele decretou: Quero punir Caim, Saul, etc.; logo,
permitirei que caiam. Quero salvar Paulo, Pedro; logo, manifestarei a
misericórdia a eles, e os levantarei da queda.
Ora, que isto seja assim, mostro a partir daqui: (1) Segundo
a razão do fim, enquanto se considera na intenção, o gênero humano, como
possível a Deus, é o objeto da predestinação. Se Deus tivesse decretado criar
algo antes que estivesse estabelecido junto a si o fim, então certamente teria
decretado fazer algo sem fim algum: mas isso é absurdo; pois não é próprio do
sábio ignorar o porquê faz alguma coisa. Logo, teve previamente estabelecido
junto a si o fim, antes de ter decretado criar as coisas; (2) Além disso, se
Deus decretava o fim antes (usamos essas palavras não para denotar prioridade
ou posteridade temporal, mas de ordem), do que decretava a existência futura
das coisas: então decretava o fim ou a partir do nada, ou a partir das coisas
possíveis de fato. Não a partir do nada, pois o não-ser não tem fim. Logo, a
partir das coisas possíveis de fato. Mas, para que não pareçamos trazer algo
novo, confirmemos a questão com autoridade: pensa assim conosco o claríssimo
Doutor Gomarus, na disputa da trigésima quarta sobre a predestinação, tese
23. Eis suas palavras: “O objeto da vontade predestinante, que não pode
se mover ao desconhecido ou ao acaso, foi mostrado pelo intelecto — pela
presciência divina —, ou seja, foram as criaturas racionais que podiam, todas,
ser predestinadas e criadas.” E assim, já está claro o que se deve
responder àquele argumento do adversário, que é o seguinte: “Todo ato é
posterior, por sua natureza, ao objeto; pois o objeto é dito relativamente:
logo, aquilo que nele é absoluto, é por natureza anterior à relação; o objeto,
portanto, é anterior em si ao ato que a ele se dirige. Ora, o homem é o objeto
da predestinação. Logo, o homem é anterior ao ato da predestinação. Mas o homem
é o que é pela criação; logo, a criação é anterior à predestinação etc.”
Vamos agora, portanto, ao objeto da predestinação,
enquanto considerado na ordem da execução; ora, este é o homem a ser criado,
criado, a ser permitido no pecado, e pecador. Isto mesmo é desenvolvido pelo
doutíssimo Piscator, no livrinho De gratia Dei, na questão sobre o
objeto da predestinação, pág. 176, deste modo: "Se Deus, desde a
eternidade, decretou salvar alguns homens por misericórdia, e punir outros por
justiça, então considerou os homens tanto como a serem salvos quanto a serem
punidos, e como a serem criados, como criados íntegros, mas capazes de cair, e
finalmente como pecadores; a razão disso é que, sem a intervenção desses três
meios, Ele não poderia ter chegado a esses fins, como é evidente." Quanto
ao que se acrescenta, que Deus não poderia ter chegado a esses fins senão com a
intervenção desses meios, isso se deduz do seguinte: Se esses fins são a
manifestação da justiça e da misericórdia, então não teria havido lugar para
manifestar nem misericórdia nem justiça, se o pecado não tivesse existido; mas
o pecado não teria existido, se não tivesse existido um homem que pudesse
pecar; e um homem que pudesse pecar não teria existido, se não tivesse sido
criado por Deus íntegro e permitido a cair.
Objeção 1: Isso pode parecer duro de se afirmar —
que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios; pois
assim parece que Deus não pode agir sem meios. Resposta: Quando dizemos
que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios, não o
afirmamos em razão de alguma deficiência de poder em Deus, mas sim por uma
deficiência de objeto no qual o poder de Deus pudesse exercer-se; do mesmo
modo, por exemplo, como quando digo que Deus não poderia manifestar sua
sabedoria a uma criatura racional, se tal criatura racional não existisse. Com
isso não quero dizer que tal coisa não pudesse ser feita por deficiência de
poder em Deus, mas sim por deficiência do objeto ao qual a sabedoria de Deus
deveria ser manifestada. Assim como um homem liberal não pode distribuir
esmolas onde não há quem as receba — não por deficiência de poder, mas por
deficiência de objeto.
Objeção 2: se sem esses meios Deus não pode
alcançar tais fins, então Deus destinou os homens ao pecado.
Resposta: Isto é certo. Assim como Deus não pôde
perdoar pecados àqueles que não pecaram, nem tampouco pôde punir por pecados
aqueles que não pecaram, assim, para que pudesse fazer ambas as coisas, foi
necessário que ele destinasse todos os homens ao pecado. Com efeito, quem quer
o fim, também quer os meios necessários. Mas os adversários negam que Deus
tenha proposto a si mesmo tais fins. Resposta: é em vão que o fazem,
pois o Apóstolo o afirma, em Rm 9.22–23.
A controvérsia entre nós e os adversários é a seguinte:
se o Apóstolo, no capítulo 9 da Epístola aos Romanos, trata da justiça pela fé
ou da predestinação?
O adversário e os seus seguidores sustentam que o
Apóstolo trata da justiça pela fé. Com efeito, imaginam que o intento do
Apóstolo é ensinar que devem ser considerados filhos de Abraão apenas aqueles
dentre os judeus que, abandonando a justificação pela lei, seguem a justiça e a
fé; e eles torcem o Apóstolo e, como que à força, com tenazes, extraem dele
aquilo que pensam favorecer seu erro a respeito da eleição com base na fé
prevista. Contudo, toda essa dissertação de Paulo, sobre a eleição, que se estende
do versículo 16 ao 30, não trata da justificação pela fé, nem quer o Apóstolo
aqui provar que o homem é justificado pela fé, ou que Deus elege aqueles que,
pela fé, se apegam a Cristo. Ele quer provar unicamente isto: que o homem não é
verdadeiramente filho da promessa por causa das obras da lei, mas por causa da
eleição gratuita e da misericórdia.
Com efeito, é manifesto que aqui não se opõem obras e fé,
mas eleição e o Deus que chama. Assim no versículo 11: ele não diz "não
pelas obras, mas pela fé", mas "não pelas obras, mas pelo que
chama". Do mesmo modo, quando no versículo 16 diz: "não é do
que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece".
Por isso também, a salvação por Cristo a ser obtida não é
sequer aqui mencionada; e os argumentos que o Apóstolo aduz não ensinam qual é
o meio para obter-se a salvação, mas todos são dirigidos a provar que a causa
da eleição de um — por exemplo, de Pedro — e da rejeição de outro — por
exemplo, de Judas — reside unicamente no beneplácito divino, e que isso não faz
com que Deus seja injusto.
Além disso, aplica-se aqui também a distinção entre os
filhos de Abraão, segundo a qual eles são divididos em filhos da carne e filhos
da promessa. Filhos da carne são aqueles que descendem de Abraão apenas segundo
a carne, ou de algum outro modo carnal. Pois ser unicamente semente natural e
carnal de Abraão e ser filho da carne são a mesma coisa. Já filhos da promessa
são aqueles que, pela promessa gratuita, foram dados a Abraão como pai dos
crentes, conforme o versículo 9. Com isso já está claro o quão profundamente se
engana o adversário, ao pensar que aqui se trata de justificação. Pois o
Apóstolo ensina que aquilo que expôs a respeito da distinção entre os filhos de
Abraão deve ser aplicado ao seu propósito, isto é, que são e se chamam filhos
da carne aqueles que buscam a justiça pelas obras da lei, e que são e se chamam
filhos da promessa aqueles que procuram ser justificados pela fé.
Mas, se são filhos da carne, e por isso são chamados tais
os que pela obra da lei procuram alcançar a justiça, então Ismael e Esaú não
foram filhos da carne, pois eles foram — como diz o termo grego βέβηλοι,
profanos — assim como o Apóstolo atesta expressamente a respeito de Esaú em Hb
12.16, e Moisés diz acerca de Ismael, em Gn 21, que ele foi um zombador; veja
Gl 4.29.
Do mesmo modo, se os filhos da promessa o são também por
isso, que são justificados pela fé, como o Adversário quer, então certamente o
Apóstolo deveria ter apresentado isso aqui como argumento; mas disso não há
nenhuma menção, antes se propõe outra coisa, a saber, isto: “Esta é a palavra
da promessa: por este tempo virei, e Sara terá um filho.” Trata-se, portanto,
aqui da causa pela qual Israel foi filho da promessa: a saber, a promessa
gratuita de Deus. E certamente, se ser filho da promessa é o mesmo que ser
nascido segundo o espírito, isto é, ser um homem espiritual — o que, contudo,
ninguém tem de si mesmo, mas do dom gratuito de Deus, que o concede a quem
quer, e igualmente a quem quer o nega.
Porque, então, Deus faz isso, não pode ser dada outra
causa além daquela que o Apóstolo apresenta: que, a saber, este — por exemplo,
Isaque e Jacó — Deus elegeu para a salvação, e, por isso, também para os meios
pelos quais esta é conferida; aqueles — a saber, Ismael e Esaú — reprovou, como
se mostra pelos versículos seguintes.
Contudo, os Adversários não querem admitir que essas
pessoas, que aqui são nomeadas por Paulo, sejam consideradas em si mesmas, mas
apenas como tipos: Isaque e Jacó como filhos da promessa, Ismael e Esaú como
filhos da carne; e tentam provar isso a partir da Epístola aos Gálatas, cap. 4,
verss. 21–24, onde se diz que foram tipos das coisas futuras.
Os Adversários alegam isso sem nenhum fundamento. E que
espécie de argumento é esse, pergunto? “Paulo, em Gl 4, ensina que esses foram
tipos das coisas futuras; logo, ensina que não foram considerados em si
mesmos.” Acaso suportaria o Adversário alguém argumentando assim: “Isaque e
Jacó foram tipos dos filhos da promessa; logo, não foram considerados em si
mesmos, filhos da promessa?”
Se ponderarmos com atenção o que significa odiar um homem
ainda no ventre, antes que ele fizesse qualquer bem, veremos facilmente que
Esaú aqui não é citado apenas como tipo, mas como exemplo, a quem isso
verdadeiramente se aplica, mesmo que não fosse utilizado como protótipo. Pois
nem mesmo Malaquias, de onde essas palavras são tomadas, o apresenta como tipo,
mas como exemplo.
Por isso, alguns fazem a distinção entre tipos: uns que
representam a coisa apenas por sombras, os quais são chamados σκιαί (sombras) ou σκιώδεις (sombrios), e outros que
representam a coisa com a verdade da própria realidade, os quais também são
chamados προτυπώσεως
(protótipos). Tais tipos foram, de fato, no presente caso, Ismael e Isaque,
Esaú e Jacó, dos quais se atesta que Deus verdadeiramente odiou os primeiros e
verdadeiramente amou os últimos.
Mas deve-nos ser mostrado a razão pela qual um é filho da
carne, o outro da promessa, a depender do beneplácito de Deus. Portanto, Paulo
ensina isso neste lugar, onde diz: "Ainda não haviam nascido os meninos, e
quando nada tinham feito de bom ou de mau, para que o propósito de Deus,
segundo a eleição, permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama, foi
dito a ela: O maior servirá ao menor." O Adversário deve adaptar essas
palavras à doutrina da justificação como ele a propõe, e verá que de modo algum
isso poderá ser ajustado a ela.
Pois se ele afirma que Deus decretou escolher para si os
homens não quaisquer, mas aqueles que previu que creriam, e que decretou
rejeitar aqueles que previu não creriam, nem buscariam a justiça que é pela fé,
então, se a situação é essa, as palavras do Apóstolo devem ser invertidas, e se
deve dizer: Não depende do que chama, mas daqueles que foram chamados, visto
que também Jacó foi amado por Deus pela previsão da fé, e Esaú rejeitado pela
incredulidade, por que, então, seria dito no texto, antes de fazerem qualquer
coisa boa ou má, ainda não por obras, mas pelo que chama?
O Adversário pensa que essas palavras, "não por
obras", devem ser restritas apenas a Esaú, e àqueles cujo tipo ele
representa, isto é, aqueles que somente por obras, ou seja, que interpretam
como por obras da lei, buscam a salvação. Mas isso é facilmente desmascarado
como falso. O Apóstolo diz que, quando ainda não haviam feito nada de bom ou de
mau, foi dito a Rebeca: "O maior servirá ao menor." Não deveria o
Apóstolo apresentar a razão de por que isso foi dito a Rebeca, antes de qualquer
coisa boa ou má ser feita? E ninguém duvidaria de que ele deveria fazer isso.
Ele trouxe, na verdade, que o propósito de Deus, que é segundo a eleição,
permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama. Quem agora não vê que as
palavras "não por obras" se referem a aqueles, quando ainda não
haviam feito nada de bom ou de mau, e, consequentemente, essas palavras,
"não por obras", devem ser entendidas tanto das boas obras de Jacó
quanto das más obras de Esaú, e excluir ambas desse propósito? O Adversário, no
entanto, restringe isso apenas a Esaú, ou melhor, àqueles que foram
significados por Esaú, nomeadamente, os filhos da carne, que somente por obras,
isto é, conforme eles interpretam, pela lei buscam a salvação. Quando, no
entanto, entre todos aqueles que não odeiam a verdade, é claro que o Apóstolo
fala e ensina que o propósito de Deus, que é segundo a eleição (que
necessariamente envolve a reprovação), não depende de obras, sejam boas ou más,
dos filhos da promessa ou da carne, mas de Deus, segundo a liberdade de Sua vocação,
distinguir entre ambos, sem qualquer consideração pelas suas boas ou más obras.
Em seguida, como as obras da lei, ou a obediência legal,
sejam internas ou externas, e o Apóstolo exclui toda a obediência legal desse
propósito, isto é, não apenas as obras externas dos hipócritas, mas também a
obediência interna do coração dos fiéis, torna-se manifesto que essas obras da
lei não podem ser restringidas apenas aos filhos da carne. E excluir todas as
obras legais, que são feitas por nós, seja pelos fiéis ou pelos infiéis, é
provado:
I. Porque se ele excluísse apenas as obras externas dos
hipócritas, os judeus ou quaisquer outros não teriam protestado, nem poderiam
acusar Deus de injustiça, quando ouviam frequentemente de seus profetas a
condenação desse tipo de obra. Em segundo lugar, no capítulo 4, o Apóstolo
exclui claramente da causa da justificação as obras do fiel Abraão e do fiel
Davi. Em terceiro lugar, se não forem excluídas todas as nossas obras, tanto as
de graça e fé, quanto as que são feitas sem graça e fé, não será excluída a
glória, a razão, porque a graça, pela qual somos feitos aptos para as obras de
graça e fé, segundo os Adversários, não é irresistível. Portanto, o homem tem
algo de que se gloriar por sua boa vontade, por não ter resistido à graça, a
qual, sendo aceita, não tem origem na graça, pois a graça não foi resistida.
Mas maior se revela a audácia quando o Adversário
interpreta essas palavras "não por obras, mas pelo que chama" por
meio da "fé", na qual obedecemos a Deus que chama. Pois esses dois, a
saber, Deus chamando, de quem o Apóstolo fala, e nossa fé, pela qual obedecemos
a Deus que chama, estão muito distantes entre si. E, de fato, o Adversário
sequer tentou introduzir qualquer argumento que mostrasse que estas seriam
equivalentes. A falsidade dessa exposição aparece aqui. Primeiramente, não pode
ser provado por nenhuma expressão da Escritura que, quando se diz "Deus
chamando", se entenda a nossa fé. Como está em 1 Ts 2.12, "para que
andásseis de maneira digna do Deus que vos chama para o seu reino" (θεοῦ
τοῦ καλοῦντος
ὑμᾶς
εἰς τὴν
ἑαυτοῦ
βασιλείαν), ou como em Gl 1.6, "Admiro-me de que tão rapidamente
tenhais passado para outro evangelho", ἀπὸ τοῦ
καλέσαντος ὑμᾶς ἐν
χάριτι Χριστοῦ, ou ainda em Gl 5.8, "A persuasão não vem
daquele que vos chama", ἡ πεισμονὴ οὐκ
ἐκ τοῦ
καλοῦντος ὑμᾶς. Nunca o ὁ καλῶν,
isto é, Deus chamando, é nossa fé.
Além disso, o Apóstolo disse: “não por obras” — como
então seria por fé? Acaso a fé não é uma obra? Aliás, segundo o Adversário, ela
justifica precisamente enquanto é uma obra. E de nada lhe servirá a distinção
entre obra evangélica e legal. Pois aquelas obras que os Adversários costumam
chamar de evangélicas — a saber, esperança, fé e caridade — foram prescritas
pela lei. Além disso, essa exposição contradiz diametralmente as Escrituras,
que testemunham que a fé segue a eleição como efeito, e não a precede como
causa. Em Rm 8.30: “Aos que predestinou, a esses também chamou”, ou seja,
concedendo-lhes fé; pois segue: “aos que chamou, a esses também justificou.”
Em 1Co 2.7, o Apóstolo diz: “[falamos] a sabedoria de Deus, em mistério, que
estava oculta, a qual Deus preordenou antes dos séculos para nossa glória”
— ou seja, foi também predestinada a fé, que vem do ouvir do Evangelho (Rm 10)
e da vocação eficaz, a qual o Apóstolo também ensina depender da predestinação.
Em Rm 8.28, ele diz que somos chamados κατὰ
πρόθεσιν,
“segundo o propósito”. Em Ef 1.4: “Escolheu-nos nele antes da
fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele, em
amor.” Ora, a fé é parte dessa santidade. Logo, é também efeito da eleição.
Mas, de forma claríssima acima de todas, At 13.48: “Creram todos os que
haviam sido ordenados para a vida eterna.” A razão por que, ao pregar
Paulo, alguns creram e outros não, Lucas atribui à ordenação de Deus, que é
anterior à fé. Com efeito, traduzir a expressão grega τεταγμένοι por
“dispostos”, como fazem os Adversários — ou por “inclinados” e “bem afetos” —
não se sustenta nem pelo vocábulo grego em si, nem pelo uso costumeiro de
Lucas. Veja-se At 15.2: ἔταξαν ἀναβαίνειν Παῦλον
καὶ Βαρναβᾶν, “decidiram que Paulo e Barnabé
subissem”; ou At 28.23: ταξάμενοι δὲ αὐτῷ
ἡμέραν, “tendo-lhe designado um dia”;
ou Lc 7.8: ὑπὸ ἐξουσίαν
τασσόμενος, “constituído
sob autoridade”. Em todos esses lugares, não se significa disposição, ou
afeto, ou inclinação, mas sim constituição e ordenação.
A própria analogia da fé rejeita tal interpretação. Pois
ninguém não regenerado, e carente de fé, é bem disposto ou inclinado para a
vida eterna — como eram aqueles de quem Lucas fala nesse texto, antes que, pela
pregação dos Apóstolos, Deus lhes traspassasse os corações. E certamente
ninguém em juízo usaria as palavras de modo tão licencioso a ponto de dizer que
alguém é inclinado ou bem disposto para a vida eterna. Pois toda propensão, no
negócio da salvação, é para agir, não para fruir. Uma coisa é o desejo; outra,
a propensão.
E de fato, os escolásticos mais doutos, movidos pelas
palavras de Paulo em Rm 11, afirmam com constância que não só a causa da
eleição, mas também da reprovação, é a vontade de Deus somente. Lombardo diz,
livro 1, dist. 41: “Assim como não houve méritos para a predestinação, assim
também para a reprovação. Jacó não foi eleito, nem Esaú reprovado, por méritos
que então tivessem, nem por méritos futuros.” Tomás [de Aquino] manteve
essa doutrina recebida do Mestre, e a defendeu cuidadosamente. Ele diz, na Suma
Teológica, parte I, questão 23, art. 3: “Assim como a predestinação
inclui a vontade de conceder graça e glória, assim a reprovação inclui a
vontade de permitir a queda na culpa, e de infligir a pena da condenação por
causa da culpa.” Domingo Bañez explica assim a sentença de Tomás, na mesma
parte I, questão 23, art. 5: “A sentença de Tomás é que, falando
simplesmente, não há causa ou razão da reprovação do lado do reprovado, assim
como não há do lado do predestinado.” E acrescenta depois: “Por isso, a
reprovação não pressupõe presciência do pecado, segundo Tomás, porque o
primeiro efeito da reprovação é a permissão do pecado; portanto, a permissão do
pecado é posterior à reprovação na ordem das causas.” Pedro de Ailly, na
questão 12, art. 2: “A quem quer que Deus reprovou, reprovou sem qualquer
causa nele mesmo.” Cornélio de Zierikzee, que participou do Concílio de
Trento como bispo, em seu comentário ao capítulo 9 da carta aos Romanos, diz: “Uma
coisa é dizer: sem deméritos, Deus permite que alguém pereça; outra coisa é
dizer: Deus permite que alguém pereça sem deméritos. A primeira é verdadeira, a
segunda é falsa.”
Mas também deve ser aqui bem considerado que estas
palavras “não por obras” de modo algum podem ser desviadas para o tema
da justificação. Pois a justificação, sobretudo a passiva, que é pela fé,
segue, não precede, a vocação. Com efeito, acima, no capítulo 8, versículo 30,
o Apóstolo disse: “Aos que chamou, a esses também justificou.” Além
disso, seria uma maneira de falar extremamente dura opor a vocação às obras,
quando se trata da justificação. Pois o Apóstolo, todas as vezes que discute a
justificação, costuma opor a fé às obras, jamais opõe a vocação às obras.
Ademais — o que é o ponto principal da questão — isso não
pode ser feito, se a vocação for comum (segundo a opinião dos Adversários). Com
efeito, aquilo que é comum não se opõe a coisa alguma. Assim, se a vocação é
comum tanto ao que obra quanto ao que não obra, em vão se diria: “não por
obras, mas por aquele que chama.”
Já mostramos, a partir do capítulo 9, versículo 11, que o
Apóstolo de modo algum trata aqui da justificação, e agora isso mesmo se torna
evidente a partir da objeção que ele apresenta, e da razão que o Apóstolo havia
dado para mostrar por que Deus quis que tais exemplos ilustres existissem e
fossem conhecidos por todos. Ora, essa razão é a seguinte: Se Deus, sem
consideração alguma pelas obras, amou a um e odiou a outro, então Ele é
injusto. Mas a primeira parte é verdadeira. Logo, também a segunda. Ou, para
formular de outro modo: Mas Deus não é injusto. Logo, não foi sem alguma
consideração pelas obras que Ele amou a um e odiou o outro.
O Adversário entende estas coisas como se Paulo estivesse
perguntando se haveria injustiça em Deus, por excluir do pacto aqueles que
querem ser justificados pela Lei que Ele mesmo instituiu, e por querer
justificar aqueles que creem em Cristo.
Respondo: não há aqui nem mesmo aparência, nem razão
alguma para tal questão. Pois que espécie de injustiça seria essa em Deus? Ou
quem seria tão insensato a ponto de querer discutir com Deus o fato de Ele
querer justificar por meio da fé em Cristo e absolver os culpados da
transgressão da Lei?
De fato, quem quer que se admire ou questione por que
Deus quis que os pecadores fossem salvos pela fé em Cristo, não está buscando a
justiça em Deus, mas investigando os arcanos da sabedoria divina.
Se este fosse o sentido do Apóstolo, como o Adversário
lhe atribui, teria sido fácil responder: que Deus não é injusto por salvar os
que creem, e por oferecer uma justiça melhor àqueles que não podem ser
justificados pela Lei da qual são transgressores; ou por substituir ao pacto da
Lei — que foi invalidado pelo pecado — outro pacto, por meio do qual o homem é
salvo.
Portanto, outro é o propósito de Paulo neste lugar: ele
nega a consequência daquele argumento quando diz: “De modo nenhum!” (Absit).
Ora, a razão dessa negação consiste em dois membros, correspondentes aos dois
membros da objeção, pela qual a acusação de injustiça havia sido lançada contra
Deus pelo oponente. Com efeito, o segundo membro, ao qual o Apóstolo primeiro
responde, é: “Se Deus amou Jacó antes que tivesse feito qualquer bem, então
Ele é injusto.” A força da consequência baseia-se em um raciocínio comum,
que parece ditar que é injusto amar a um mais que a outro, se ambos são em tudo
iguais. O Apóstolo prova a falsidade dessa consequência com a citação da
Escritura, no versículo 15: “Pois a Moisés Ele diz: Terei misericórdia de
quem Eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem Eu me compadecer.” Aqui,
não deve ser buscada na palavra “misericórdia” a destruição da consequência,
como fazem os Adversários, mas ela se baseia somente na autoridade da Sagrada
Escritura, do seguinte modo: Aquilo que a Sagrada Escritura atribui a Deus não
pode ser injusto. Ora, a Sagrada Escritura atribui isto a Deus, a saber: que
Lhe é lícito ter misericórdia de quem quiser. Pois diz a Moisés: “Terei
misericórdia”, etc. E assim, de forma mais sólida e eficaz, o Apóstolo
destrói a consequência do silogismo anterior — ao menos quanto ao segundo
membro — pois Paulo escreve estas coisas não a infiéis, mas aos Romanos
convertidos à fé de Cristo, os quais criam nas Sagradas Escrituras, mesmo
contra o juízo da carne, sem qualquer hesitação.
Contudo, os Adversários recobrem seu próprio comentário
com verniz e afirmam, além disso, que aqui o Apóstolo trata dos pecadores — o
que seria evidente a partir do versículo 16, onde o Apóstolo diz: “Assim,
pois, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus que usa de
misericórdia.” Donde parece seguir-se, segundo eles, que Deus não é justo,
porque o Seu propósito segundo a eleição — ao rejeitar os filhos da carne (isto
é, os infiéis) e ao considerar como filhos da promessa (isto é, os fiéis) — tem
por única causa a misericórdia e a compaixão de Deus. Pois, dizem eles, quando
a misericórdia de Deus é posta em oposição à vontade e à corrida do homem, é
certo que se entende aquele esforço e curso pelo qual o homem, sem a
misericórdia de Deus, espera alcançar a justiça e a salvação. E reciprocamente,
quando a misericórdia é oposta à vontade e ao esforço, compreende-se que aquele
meio ordenado para se alcançar justiça e vida é justamente a misericórdia — e o
que é mais próximo da misericórdia é a fé em Cristo, o Mediador.
Respondo. Antes de tudo, o doutíssimo Twillus não admite
que a eleição proceda da misericórdia, e isso por argumentos gravíssimos e,
além disso, veríssimos, sendo por eles movido. Pois, diz ele: Se atentarmos
à forma de falar da Escritura, perceberemos que tanto a graça quanto a glória
procedem da misericórdia divina, porém nunca a predestinação ou eleição. Esta,
com efeito, é dita ocorrer segundo o propósito (Ef 1.11), ou segundo a
presciência (1Pe 1.2), ou a partir do afeto benevolente da vontade (Ef 1.5).
Acrescento ainda — diz ele — que os gentios alcançaram misericórdia por causa
da incredulidade dos judeus (Rm 11.32). Ora, se a eleição fosse procedente da
misericórdia, há muito teriam alcançado misericórdia, desde que foram eleitos,
isto é, desde a eternidade. Também se diz que Deus encerrou todos debaixo da
desobediência, para usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32). Logo, a
misericórdia divina segue a desobediência do homem. Mas quem em sã consciência
atribuiria tal previsão da desobediência a essas palavras? Por fim, todos são
chamados de “não alcançaram misericórdia” antes da vocação (1Pe 2.10).
Portanto, a vocação é o primeiro ato da misericórdia divina exercida sobre os
miseráveis, e não a predestinação ou eleição.
Contudo, objeta-se com base em Rm 9.16: “Logo, não
depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus, que usa de misericórdia.”
Respondo: 1. O termo “eleição” é aqui suprido conforme a interpretação de Beza.
2. Piscator interpreta esse versículo do Apóstolo não a respeito da eleição,
mas da salvação. Outra objeção é feita: a Escritura chama os eleitos de
vasos de misericórdia (Rm 9.23). Ora, não há lugar para a misericórdia senão
para com os miseráveis. Respondo: Os eleitos são chamados vasos de misericórdia,
não porque foram eleitos por causa da misericórdia, mas porque foram eleitos
não apenas para a salvação, mas também para a misericórdia que Deus lhes
mostraria no perdão dos pecados, na imputação da justiça e na concessão da
salvação eterna.
Em segundo lugar, respondemos que os adversários erram.
Pois, ao fim, sua explicação tende a isto: que nas palavras “não é de quem
quer, nem de quem corre”, se deve subentender aqueles que querem ser
justificados pela lei. Ora, isso não é provado em nenhuma parte da Escritura; e
o texto ensina claramente que se exclui todo e qualquer esforço humano. Pois,
como essas palavras remetem, com o assentimento dos próprios adversários,
àquelas anteriores: “não por obras, mas por aquele que chama” — pelas quais o
Apóstolo havia excluído dessa proposição não apenas as más obras de Esaú, mas
também as boas de Jacó —, vê-se claramente que aqui se opõe não só a corrida de
Esaú, sem misericórdia de Deus, mas também a de Jacó, unida à misericórdia, ao
Deus que usa de misericórdia como causa desta proposição. E acaso o crente não
é aquele que quer? Acaso não é aquele que corre?
Quanto às palavras dos adversários que mencionamos acima,
as quais colocam em paralelo a misericórdia etc., dizemos que os adversários
acumulam absurdos sobre absurdos. Pois anteriormente explicavam as palavras
“não por obras, mas por aquele que chama (Deus)” como se significassem: por
Deus chamando através da fé de um homem obediente. Assim também aqui
interpretam: “o propósito de Deus não é de quem quer nem de quem corre, mas
daquele que usa de misericórdia”, como se significasse: do homem crente pela
misericórdia. Admitimos que tal meio para alcançar a vida — a saber, a fé em
Cristo — foi ordenado por esse propósito e está o mais próximo da misericórdia;
mas será que, por isso, estas palavras “mas de Deus, que usa de misericórdia”
devem ser explicadas como “do homem crente pela misericórdia de Deus”? Isto é:
será que, por isso, o Apóstolo, em lugar da misericórdia de Deus, fundamenta
este propósito sobre a fé do homem? Isso seria um sofisma grosseiríssimo. Pois
Paulo trata aqui — como os próprios adversários reconhecem — do propósito da
eleição; e diz que sua causa não é o esforço ou a vontade do homem, mas a
misericórdia de Deus. Isto é: segundo os adversários, a fé do homem. A fé,
então, seria a causa do propósito da eleição? Isso contraria o que a Escritura
tantas vezes testifica. E se, todavia, fosse assim, o Apóstolo poderia ter
resolvido a objeção com uma única palavra, dizendo: “Não há injustiça em
Deus, pois escolhe um e rejeita outro com base na causa de que um crê em Cristo
e o outro não.”
E assim se tratou do segundo membro da objeção, a saber:
se Deus amou a Jacó antes que ele tivesse feito qualquer bem, então Deus é
injusto. Agora é necessário tratar do primeiro, que é este: se Esaú foi
destinado ao ódio antes que nascesse e antes que tivesse feito qualquer mal,
então Deus é injusto. A isso, no versículo 17, ele responde com estas palavras:
Diz, com efeito, a Escritura a Faraó, etc. Um argumento solidíssimo,
qualquer que seja a opinião dos homens: sabemos que a Escritura nada atribui de
injusto a Deus. Ora, a Escritura atribui isto a Deus, pois diz a Faraó: para
isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder. Logo, isto não é
injusto. E assim o Apóstolo responde ao primeiro ponto. Pois, com relação a
ambos os membros, ele conclui com uma sentença geral no versículo 18: Logo,
de quem quer tem misericórdia, e a quem quer, endurece.
Do que mais uma vez se torna evidente que o Apóstolo
neste capítulo não trata da justificação. Pois estas palavras de modo algum
podem ser aplicadas à justificação, já que o endurecimento se opõe ao
amolecimento do coração, e não à condenação. Tampouco é crível que o Apóstolo
tenha recorrido à vontade de Deus quando o assunto era dar razão por que uns, e
não outros, são justificados — pois a causa estava clara: este creu em Deus,
aquele se arrependeu do pecado; aquele outro não creu, aquele não se arrependeu;
causa justa e suficiente, até mesmo ao juízo da razão humana — a menos que
alguém esteja fora de si. Mas, embora Deus não endureça senão os merecedores,
contudo não parece que se possa com razão indignar-se contra os endurecidos,
uma vez que eles foram destinados a isso pela vontade eterna de Deus, ou seja,
por seu decreto, ao qual não se pode resistir, e isso não por causa de obras
que fariam, mas por seu mero beneplácito.
Os adversários pensam que o oponente, que aqui é
introduzido pelo Apóstolo, deseja saber nada além do seguinte: se aqueles que
são endurecidos mereceram o endurecimento e, portanto, se Deus justamente se
irrita contra eles. Se assim fosse, então o Apóstolo não teria repreendido com
severidade uma ousada resposta contra Deus — que, nesse caso, não haveria —,
mas sim uma ignorância torpe e mais que bruta, uma vez que nada é mais comum
nas Escrituras, nada mais evidente na natureza, do que que Deus pune apenas os
que merecem. Mas agora o Apóstolo, vendo que o oponente não duvida da equidade
de Deus em endurecer os ímpios, mas contesta, na verdade, a eterna vontade de
Deus — pela qual, não com base em obras, mas segundo seu próprio beneplácito,
ele decretou exaltar uns graciosamente à glória, e outros ao opróbrio —, com
razão o refreia com estas palavras: Antes, ó homem, quem és tu, que a Deus
replicas? E acrescenta uma razão gravíssima: Acaso dirá o vaso ao
oleiro: por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para
da mesma massa fazer um vaso para honra, e outro para desonra?
Com que fim, pergunto, se apresenta aqui resposta tão
elevada e sublime, afirmando o supremo poder de Deus ἐξουσίαν sobre as criaturas, se aquele que é
introduzido como perguntante estivesse disposto a aquiescer, uma vez que
entendesse que os endurecidos mereceram o endurecimento? Pois isso ele poderia
ter provado facilmente sem esta resposta profunda — aliás, já o havia provado
amplamente no capítulo 3 desta epístola.
Mas vejamos as palavras seguintes, que mostram
clarissimamente que não se trata aqui, em Rm 9, de justificação, mas de
predestinação. As palavras são: Acaso dirá o vaso ao oleiro: Por que me
fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa
fazer um vaso para honra, e outro para desonra? Daí se conclui
clarissimamente que o Apóstolo ensina que Deus tem o poder de, a partir da
mesma massa, fazer um vaso para honra, outro para desonra. Ora, pelo nome de
“massa” não se pode entender o gênero humano corrompido, como querem alguns.
Pois, se assim fosse, o Apóstolo não teria dito que Deus faz, a partir dessa
massa, vasos de ira, mas que os deixa naquela mísera massa como vasos que já
são de ira; e não teria sido necessário ao Apóstolo esforçar-se por defender a
justiça de Deus na perdição dos réprobos.
Portanto, Deus é ali comparado a um oleiro, ao qual, se
se concede o direito de, segundo seu arbítrio, fazer tanto vasos para usos
honrosos como para usos vis, sem que o barro por isso pareça sofrer injustiça —
quanto mais Deus teve o direito de dispor daquele barro do qual, em um só
homem, criou o gênero humano, para que dele tirasse a uns, nos quais exerceria
sua justa ira, e a outros, que abençoaria por sua excelsa bondade?
Mas como os criou? Certamente em Adão, à cuja criação o
Apóstolo, sem dúvida, alude ao mencionar o oleiro e o barro. E como, então, em
Adão? Certamente não sem a intervenção da queda voluntária. Pois, se Adão não
tivesse caído por livre vontade — ainda que não sem a ordenação de Deus, mas
sem qualquer culpa de Deus —, então não haveria lugar para a misericórdia nem
para a severidade, e, por conseguinte, o desígnio de Deus teria sido frustrado.
Em Gl 3.22, o Apóstolo diz que Deus encerrou todos
debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que creem, por meio da fé
em Jesus Cristo: não é evidente que ele remonta até a própria origem da culpa,
isto é, até a queda de Adão, para que aí se inicie a distinção entre os vasos?
Conclui-se, portanto, com toda clareza, que Paulo ensina
aqui que Deus destinou alguns, não apenas à destruição, mas também ao pecado. E
o que isso tem a ver com a justificação? Talvez alguém ache duro o que dizemos
— que Deus destina ao pecado. Resposta: Não deve parecer duro aquilo que a
Escritura diz. Pois como poderia Ele destinar à destruição, se não destinasse
também àquilo por causa do qual a destruição justamente se impõe?
De fato, a Escritura ensina que alguns são destinados aos
próprios pecados, conforme 1Pe 2.8: os que tropeçam na pedra de tropeço,
para o que também foram postos; e na Epístola de Judas: Certos homens se
introduziram dissimuladamente, os quais já antes estavam destinados a esta
condenação, ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus, e
negam o único Soberano e Senhor nosso, Jesus Cristo. Pode-se aqui objetar
que a Escritura em parte alguma ensina que Adão foi destinado ao mal da culpa,
e que, portanto, essa doutrina não deve ser tolerada. Respondemos: quantas
passagens das Escrituras afirmam que em Deus não há temeridade, que Deus é
onipotente, que não apenas criou todas as coisas, mas também as governa —
especialmente os homens —, e que jamais muda? Tantas vezes, pois, é dito que
Adão caiu, mas também, não só com presciência, mas com ordenação de Deus, ele
caiu. Pois, se antes da criação do homem Deus não deliberou sobre o fim para o
qual o criaria, então agiu temerária e imprudentemente. Mas, se decretou algo
diferente do que aconteceu, ou Ele não foi onipotente — pois seus desígnios
foram frustrados por Satanás —, ou foi inconstante, porque mudou de plano. E se
alguém quiser objetar que foi adicionada ao plano de Deus a condição de que
Adão perseverasse na integridade, respondo: ainda que eu não negue isso,
pergunto, contudo, se o fundamento do próprio plano divino dependia de Adão? Se
o adversário ousar afirmar isso, então o julgamento estará — como bem disse
Agostinho — não nas mãos do oleiro, mas nas do barro. E que Deus será esse, que
faz depender o fundamento de seus desígnios da vontade da criatura?
E se isso ainda não bastasse, a Escritura clama que nem
mesmo os pardais caem em terra sem a vontade do Pai celestial, e que todos os
cabelos de nossa cabeça estão contados — não testifica isso abertamente que sem
a vontade do Pai aquele primeiro pai não caiu? A não ser que, porventura, os
pardais ou os vossos cabelos sejam de mais valor para Ele do que todo o gênero
humano. E, se nem mesmo os porcos Satanás pôde atacar sem permissão do Senhor,
dirá alguém que, sem que Deus soubesse, quisesse ou se importasse, Satanás
subverteu todo o gênero humano em um só homem?
Eis que, primeiro, o Apóstolo respondeu a essa objeção: Pois
de que se queixa ainda? Quem jamais resistiu à sua vontade? (Rm 9.19). Em
segundo lugar, agora nos versículos 22 e 23, o Apóstolo responde remetendo-nos
às coisas que Deus realiza no tempo. Ele propõe três coisas: Primeiro, que Deus
suporta com muita paciência os vasos preparados para a perdição. Deus tolera
por muito tempo os ímpios, os cumula de vários benefícios, e durante toda a sua
vida se mostra a eles de tal modo que são forçados a confessar que Deus não
deixa de agir com suma justiça para com eles. Segundo, Deus condena os ímpios
para manifestar sua ira e para mostrar o quanto detesta os pecados, e para
tornar conhecida sua potência. Terceiro, para que também fique evidente quão
imensa é sua bondade e incompreensível sua misericórdia para com os eleitos. Nenhuma
dessas coisas que se realizam no tempo — e que estão expostas a nossos olhos, podemos
nós reprovar; ao contrário, somos obrigados a proclamá-las. Que impiedade,
pois, é esta, de julgar mal as coisas ocultas de Deus?
Os adversários dizem: com estas palavras — suportou
com muita longanimidade os vasos preparados para a perdição — ensina-se
claramente que essa voz passiva κατηρτισμένα (isto é, “preparados”)
se refere não a uma preparação por parte de Deus, mas feita pelo diabo e pela
vontade própria [dos ímpios], e, por isso, destinados com justiça ao castigo
eterno.
Resposta: 1. Se por essa razão Deus deve ser
excluído da ação expressa por καταρτίζω, por que não o excluiríamos
também da causa de nossa salvação? Pois também somos designados por vozes
passivas: ἀγαπημένοι, ἐλεηθέντες,
δικαιωθέντες.
Portanto, o fundamento dessa conclusão é vão. Depois, o próprio verbo καταρτίζειν,
aplicado por analogia ao oleiro, refere-se aos vasos tanto para honra quanto
para desonra, conforme o fim proposto pelo modelador. Quem não vê que isso não
se refere às causas secundárias — subordinadas à execução do decreto, e que
pertencem aos próprios condenados, e não a Deus —, mas sim ao decreto do
próprio Deus artífice, o qual precede todas essas causas em ordem, com uma
clara alusão à criação do gênero humano em Adão?
E que mais? Não é o próprio Apóstolo que, no versículo
anterior, ao comparar o artífice do gênero humano ao oleiro, usa o verbo ativo ποιῆσαι
(“fazer”), tanto com relação aos vasos de desonra quanto aos vasos de honra? Seja,
enfim, para nós o melhor intérprete deste lugar o próprio Salomão, que usa o
verbo criar, e menciona o dia do mal, pelo qual nada mais se
entende senão aquela ἀπώλεια (perdição), quando diz: O Senhor fez todas as
coisas para si mesmo, até o ímpio para o dia do mal (Pv 16.4).
Em segundo lugar, eles (os adversários) ensinam, por
estas palavras, Deus suportou com muita paciência os vasos da ira, que o
Apóstolo indicaria um modo de endurecimento por meio da paciência e mansidão,
não por meio de uma ação onipotente da vontade, à qual não se pode resistir.
Mas que lógica ensinou os adversários a raciocinar assim: "O Apóstolo
indica que os ímpios são endurecidos pela paciência de Deus, portanto, ele nega
que sejam endurecidos por uma ação irresistível da sua vontade"?
Agostinho, justamente com base neste lugar, demonstra que
Deus endurece os ímpios não apenas com paciência, mas também com potência. Eis
o raciocínio lógico contrário: “O que é isso que dizes”, afirma ele no Livro
3 contra Juliano, capítulo 5: “Quando se diz que foram entregues aos seus
desejos, entende-se que o foram por paciência divina, e não compelidos ao
pecado por sua potência?” Como se o mesmo Apóstolo não tivesse justamente
colocado ambas as coisas, paciência e potência, no mesmo lugar, quando diz: Mas
se Deus, querendo mostrar a sua ira e fazer conhecida a sua potência, suportou
com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição (Rm 9.22).
Mas o que dizes sobre o que está escrito: E se o profeta for enganado e
falar, eu, o Senhor, enganei o tal profeta (Ez 14.9)? Foi por paciência ou
por potência? Qualquer uma das duas que escolhas — ou mesmo ambas que admitas
—, é necessário reconhecer: as palavras falsas do profeta constituem pecado, e
são também castigo pelo pecado. O mesmo Agostinho, no mesmo lugar, diz: “Quem
seria tão insensato, que ao ouvir o que se canta no Salmo — Não me
entregues, Senhor, ao meu desejo (Sl 140.8) — dissesse que o homem rogava
para que Deus não fosse paciente com ele? Se Deus não entrega senão quando a
sua bondade paciente tolera que se cometam males, que sentido tem aquilo que
todos os dias dizemos: não nos deixes cair em tentação, senão que não
sejamos entregues às nossas concupiscências? Pois cada um é tentado, arrastado
e seduzido pela sua própria cobiça (Tg 1.14). Acaso pedimos a Deus que não
exerça paciência para conosco com sua bondade? Não estamos invocando sua
misericórdia, mas provocando sua ira? Quem em seu juízo perfeito — ou mesmo
insano — diria tal coisa?”
Portanto, Deus entrega aos afetos de ignomínia, para que
os mesmos pecados sejam simultaneamente pecados e castigos dos pecados
passados, bem como méritos para os castigos futuros. Assim como entregou Acabe
ao engano dos falsos profetas; assim como entregou Roboão a um mau conselho.
Deus faz isso de modos admiráveis e inefáveis, Ele que sabe operar julgamentos
justos não apenas nos corpos dos homens, mas também em seus corações; que não
produz vontades más, mas delas se serve como quer, ainda que nunca deseje algo
injustamente.
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