sexta-feira, 11 de julho de 2025

A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO POR JOHANNES MACCOVIUS


LOCI COMMUNES, CAP. XV, De Prædeftinatione

Ora, a Predestinação é o decreto eterno de Deus, ou seja, a vontade eterna de Deus, quanto ao fim sobrenatural de qualquer homem, e quanto aos meios para se chegar a esse fim.

Não tratamos aqui da predestinação dos anjos, visto que, embora o Espírito Santo trate disso nas Sagradas Escrituras, fá-lo de modo incidental e brevemente, pois o Espírito Santo quis que sua Palavra fosse proposta não por causa dos anjos, mas por causa dos homens.

A palavra “predestinação” pode e deve ser atribuída tanto à eleição quanto à reprovação.

Que o termo predestinação possa e deva ser aplicado tanto à eleição quanto à reprovação, torna-se evidente:

I. Porque a eleição não somente é expressamente chamada de predestinação, em Rm 8.29 e Ef 1.5, mas também este nome é aplicado aos réprobos, em At 4.28: “Reuniram-se para fazer tudo o que tua mão predestinou.” Essas palavras podem e devem ser referidas também àqueles réprobos que se reuniram contra o Senhor, a saber, Herodes e Pilatos, de modo que o sentido seja: Deus não somente predestinou que Cristo morresse, mas também que morresse pelas mãos daqueles, e que, portanto, estes foram preparados para realizar a morte de Cristo.

II. Depois, isso também se evidencia pelo fato de que, sendo alguns predestinados para a vida, entende-se que os restantes são predestinados para a morte. Assim o exige a própria natureza da oposição. Portanto, todas as vezes que a Escritura menciona a predesti­nação dos eleitos para a vida, confirma também a predestinação para a morte.

III. Porque a condenação para a morte, que agora ocorre no tempo, pressupõe uma predestinação feita desde a eternidade; assim como a justificação e a vida pressupõem uma destinação e ordenação para a justificação e a vida.

IV. Porque a predestinação é o decreto de Deus sobre os homens e sobre seu fim sobrenatural. Ora, Deus decretou tanto a respeito dos réprobos quanto dos eleitos, o que haveria de fazer: isto é, decretou tanto a respeito daqueles que seriam condenados à morte, quanto a respeito daqueles que seriam justificados, isto é, ordenados para a vida; e assim como predestinou estes para a vida, também predestinou aqueles para a morte. Por isso:

V. Os Pais da Igreja, entendendo a predestinação de forma geral, aplicam-na não somente aos eleitos, mas também aos réprobos, de modo que ambos são ditos predestinados desde a eternidade: uns para a vida, outros para a morte. Assim escreve Agostinho, A Cidade de Deus, livro XV, cap. 1: “Misticamente chamamos de duas cidades, isto é, de sociedades humanas, das quais uma foi predestinada para reinar eternamente com Deus, e a outra para sofrer o juízo eterno com o diabo.” E no Enchiridion, cap. 100, ensina que: Deus, como sumamente bom, sabe usar bem tanto os bons quanto os maus: para a condenação daqueles que, com justiça, predestinou ao castigo, quanto para a salvação daqueles que, com bondade, predestinou à graça.

VI. Se aquilo que é denotado pela palavra "predestinação" é atribuído à reprovação, então a própria palavra também pode ser atribuída; pois devemos ser flexíveis quanto às palavras, desde que a realidade esteja clara. Ora, aquilo que é significado por esta palavra se vê que se aplica à reprovação, porque a predestinação é o conselho de Deus a respeito do fim do homem. Ora, tal é também a reprovação. Pois certamente ninguém nega que a reprovação seja um decreto de Deus; mas que Deus decretou não apenas o fim, mas também os meios, demonstram estas razões: primeiro, porque Deus, sendo sapientíssimo, decretou fazer todas as coisas por causa de fins determinados. Com efeito, querer o fim e não querer os meios sem os quais esse fim não pode ser alcançado é querer o fim e ao mesmo tempo não querer o fim, o que constitui uma contradição de vontade. Segundo, Deus quer, contudo, permitir certos meios, que por sua natureza são maus, e outros, que são bons. Ora, o fim ao qual essas coisas são ordenadas, Ele o realiza no gênero humano, quer seja esse fim a salvação, quer a condenação, na medida em que esta é a justíssima pena dos pecados. Por isso se lê em Amós 3.6: "Não há mal na cidade que o Senhor não tenha feito." Terceiro, aquilo que o Senhor decretou, porque o quer, necessariamente acontece; daí se conclui que se deve julgar da vontade de Deus a partir do evento: pois, já que certos homens chegam a tais fins e a tais meios, segue-se que Deus os decretou; e com isso já se compreende como devem ser entendidas aquelas passagens da Escritura, como em Provérbios 16.4: "O Senhor fez todas as coisas para si mesmo, até mesmo o ímpio para o dia do mal", e também "vasos da ira preparados para a perdição", Romanos 9.22. Pois o homem mau não existia antes de ser feito para a perdição, nem os vasos da ira existiam antes de serem preparados para a destruição; Deus, com efeito, não age com um fim incerto e jamais falha quanto ao seu fim. Tampouco prejudica este argumento o fato de se dizer que o ímpio foi feito para o dia do mal ou que os vasos da ira foram preparados para a destruição, pois se diz que o ímpio e os vasos da ira foram feitos, não porque antes já fossem assim antes de serem feitos ou preparados para a destruição, mas porque todos aqueles que o Senhor fez ou preparou para a destruição são tais, isto é, ímpios e vasos da ira. Dirás: podem, no entanto, ser chamados de feitos ímpios, ou vasos da ira preparados, porque Deus os faz já a partir de uma massa corrompida. Respondo: ainda assim a conclusão é a mesma, pois se Deus permitiu que essa massa se corrompesse, é necessário perguntar com que fim Ele o fez; se com o fim de fazer alguns vasos para honra e outros para desonra. Se negares isso, também deverás negar aquelas razões pelas quais se provou que Deus jamais falha quanto ao seu fim; se, porém, o admitires, deverás igualmente reconhecer que, embora Deus forme os homens a partir da massa corrompida, Ele faz vasos da ira, faz o ímpio, não porque infunda neles a impiedade, mas porque não purifica a matéria da qual os forma da qualidade depravada que ela contraiu, mas, no entanto, permitiu que essa matéria se corrompesse com esse fim, para que esses mesmos fossem tais, e assim para que se abrisse espaço à manifestação da justiça de Deus ao punir. Portanto, é necessário afirmar que Deus decretou antes o fim dessas pessoas, e só depois as ordenou, como meio, a esses fins. A propósito da passagem de Provérbios 16.4, pergunta-se: como se diz que Deus cria o ímpio para o dia do mal? Parece, com efeito, que Deus seja causa não só do mal em concreto, mas também da malícia em abstrato. Respondo: não se trata nesse lugar de Adão e Eva, os quais foram recebidos de novo na graça, pois a eles foi feita uma promessa, e isso desde o princípio, de modo que não se pode dizer que foram criados para o dia do mal. Mas se trata da descendência ímpia de Adão, que dele é propagada naturalmente. Dirás: como, então, Deus é dito criar o mal? Respondo: Ele não faz com que o homem seja mau enquanto tal, mas faz aquele que é mau, isto é, imputa o pecado de Adão a todos os que são gerados naturalmente a partir dele, de tal maneira que são tidos como se eles próprios tivessem cometido o pecado, e por isso Ele pune a todos não apenas com a morte temporal, mas também com a morte espiritual, que em Efésios 2 é chamada morte nos pecados.

VII. Prova-se o mesmo por expressões equivalentes, pois os réprobos são ditos "destinados à ira", em 1Ts 5.9 e 1Pd 2.8; e "pré-escritos para a condenação", em Jd v. 4. Ora, o que é isso senão serem predestinados? Bellarmino levanta objeção aos dois últimos textos: “Dizem-se postos e pré-escritos para isso, mas não se diz por quem; é verossímil, porém, que seja pelo diabo.” Resposta: Fica claro que foram pré-escritos por Deus, mesmo que isso não seja dito expressamente nos lugares citados. Pois por quem poderiam ter sido pré-escritos e postos, senão por aquele que os criou para o dia do mal? (Pv 16). Além disso, é evidente que foi feito por Deus, conforme Rm 9, no versículo final.

Obj. 1: Em Rm 8.29 se diz que aqueles que Deus predestinou, a esses também justificou e glorificou; o que não pode ser dito dos réprobos. Daí se quer concluir que a predes­ti­nação não pode ser aplicada à reprovação. A premissa é certa a partir do texto citado. Resposta: Não se trata nesse lugar dos predestinados em geral e de modo absoluto, mas dos predestinados que foram previamente conhecidos; pois assim diz o texto: “Aqueles que de antemão conheceu, a esses predestinou.” Ora, ali se entende por presciência não uma simples e nua presciência, pela qual Deus conhece todas as coisas, mas uma presciência com afeto, isto é, com amor — conforme Sl 1.6 —, o qual amor é chamado, pelos teólogos, de amor de benevolência; de modo que o sentido é: aqueles que Deus envolveu com amor de benevolência, esses Ele predestinou, a saber, à vida, como mostram as palavras seguintes.

Obj. 2: A palavra “predestinação” se aplica mal àquilo que não tem propriamente um fim. Ora, a reprovação não tem propriamente um fim, pois fim, propriamente falando, é algo bom. A condenação, porém, que se diz ser o fim da reprovação, não é algo bom, mas mau. Resposta: Faz-se distinção entre fim último e intermediário. Pois seja; a condenação é o fim da reprovação, mas é um fim intermediário, não o último. O último, com efeito, é a manifestação da justiça de Deus na justa condenação, e isso é algo ótimo.

Obj. 3: A predestinação é a constituição do fim e a ordenação dos meios para o fim. Ora, a danação eterna não é o fim do homem, mas apenas o seu extremo; por isso, a reprovação não pode constituir uma espécie de predestinação. Pois entram em contradição entre si ser ordenado ao fim e ser ordenado ao mal. Com efeito, todo fim é algo ótimo e a perfeição da coisa; a danação, porém, é imperfeição e o extremo mal da coisa. Resposta: O mal de pena, como é a danação, é algo fisicamente ou naturalmente mal, mas eticamente e moralmente bom. Ora, Deus não é autor do mal enquanto tal, pois Seus olhos são mais puros do que para ver o mal, conforme Hc 1.13. O mal de pena, porém, sendo algo bom, é de Deus, como diz Am 3.6; e por isso é bom: primeiro, por ser infringido segundo as leis da justiça de Deus; segundo, porque através dele os maus são reprimidos, para que não sigam pecando ainda mais.

A predestinação de Deus é absoluta quanto à causa externa impulsiva, mas não é absoluta quanto ao fim e aos meios.

Já mostramos acima que a vontade de Deus não tem causa externa alguma; o que agora repetimos de forma específica, para que essa doutrina se fixe melhor nas mentes, o que certamente não é sem razão — pois esta doutrina, corretamente compreendida, torna fácil a inteligência da doutrina da predestinação. Afirma-se, portanto, em tese: 1. Que a predestinação é absoluta quanto à causa impulsiva. Pois, 1) se Deus fosse impelido por algo para agir, então não seria agente simplesmente e primeiro. O que é falso, já que, assim como é a primeiramente, é também o primeiro agente. 2) Seguir-se-ia que Deus sofre, pois seria movido por alguma coisa — e ser movido é sofrer. Ora, Deus é imutável e impassível. 3) Seguir-se-ia que Deus, ao agir, seria menos perfeito que alguma outra coisa, e seria causa menos principal que alguma outra mais principal — o que contradiz à ideia de causa primeira. 4) Se houvesse algo que movesse Deus a determinar isto ou aquilo, então as coisas não dependeriam do decreto de Deus. Mas todas as coisas dependem de Deus — as boas, porque Ele as efetua; as más, porque as permite. E nada pode acontecer a Deus de forma imprevista, pois tudo ocorre segundo o Seu santíssimo conselho, e por isso Ele não pode ser movido por coisa alguma. Nós, de fato, somos movidos pelas coisas boas ou más que nos sucedem fora da expectativa; mas a Deus nada sucede fora da expectativa, como está em Lm 3.37. 5) Se Deus fosse movido por algo, então dependeria disso como causa para agir, e, ao operar, dependeria de outro. Ora, isso é contrário à natureza de Deus, pois então Ele não seria Deus. Como algo é em seu ser, assim é em sua operação — e vice-versa. 6) Seguir-se-ia que haveria mudança em Deus, pois antes de ser movido, não era; e, portanto, sucederia algo a Deus: o começar a ser movido.

Em segundo lugar, diz-se que a predestinação não é absoluta quanto ao fim, o que é certo — pois Deus, sendo sapientíssimo, nada quer sem um fim. O fim da predestinação é a manifestação de Sua glória. 2) Diz-se, ainda, que ela não é absoluta quanto aos meios. Por isso, de forma imprópria nos contradizem os adversários, como se, dado que tudo se realiza pelo decreto e pela providência de Deus, não fosse necessário que nos empenhássemos com diligência, bastando-nos dormir ociosos e apenas esperar o impulso de Deus. Ora, se Ele necessitar de nossa ação, mesmo contra nossa vontade nos moverá à obra que quiser realizar por meio de nós. Resposta: Os santos nas Escrituras nos são apresentados de forma muito mais sincera no modo como pensam, falam e julgam sobre os decretos e a providência de Deus. O anjo, em Gn 19, diz com palavras explícitas a Ló: “Apressa-te a ir para Zoar, e ali salva-te, pois não posso fazer coisa alguma até que tu ali chegues.” Eis a providência de Deus: Ló é preservado com os seus, os cidadãos de Sodoma e das cidades vizinhas são destruídos; no entanto, na própria obra da preservação, é requerido o esforço de Ló — e esse esforço é espontâneo. “Não posso fazer nada”, diz o anjo, “até que tu chegue a Zoar.” O profeta e rei Davi claramente diz no Sl 31: “Em ti confiei, Senhor, disse: Tu és o meu Deus, nas tuas mãos estão os meus tempos.” Ainda assim, aquele que havia entregue inteiramente sua vida à providência divina, diligentemente deliberou como, com sua cautela e esforço, poderia escapar das ciladas de Saul, seu sogro. Tampouco desprezou a ajuda e os artifícios de Mical, sua amada esposa; não disse: “Todas as coisas são conduzidas pela providência de Deus, logo não preciso de artifícios. Ele pode me livrar das mãos dos soldados de Saul, pois é onipotente, ou pode salvar-me por outro modo miraculoso; descansemos, pois, e deixemos que Deus opere em nós.” Antes, ele entendeu que a providência de Deus procede por meios e por certa ordem, e que era seu dever, no temor de Deus, aplicar-se aos meios e mover todas as pedras possíveis.

Paulo ouviu do Senhor: “Assim como em Jerusalém testemunhaste de mim, assim também é necessário que em Roma o faças.” E embora ele não duvidasse da verdade das promessas divinas, nem ignorasse o poder da providência divina, ainda assim, quando seu sobrinho (filho de sua irmã) lhe contou que os judeus conspiravam contra sua vida, secretamente o enviou ao tribuno, pedindo que Paulo não fosse conduzido à presença dos judeus; tampouco se opôs aos soldados romanos que o conduziam a Antipátrida e, de lá, o escoltavam com cavaleiros até Cesareia. O mesmo Paulo, navegando no mar Adriático e já próximo de um naufrágio perigosíssimo, ao ver os demais na embarcação aterrados, disse: “Exorto-vos a ter ânimo, pois não haverá perda de vida entre vós, senão do navio. Pois apareceu-me esta noite o anjo de Deus, a quem pertenço e a quem sirvo, dizendo: Não temas, Paulo; importa que compareças diante de César; e eis que Deus te deu todos os que contigo navegam. Por isso, tende ânimo, varões. Pois creio em Deus, que assim será, conforme me foi dito.” No entanto, pouco depois, quando os marinheiros procuravam fugir do navio, disse o mesmo Paulo ao centurião e aos soldados: “Se estes não permanecerem no navio, não podereis salvar-vos.

O objeto da predestinação é uma coisa segundo a razão do fim, enquanto está na intenção, e outra coisa enquanto está na execução: segundo a razão do fim, enquanto está na intenção, é o homem possível de fato, ou, como gostam de dizer nas Escolas, criável; segundo a razão do fim, enquanto está na execução, é o homem condenado, criado, a ser permitido no pecado, e pecador. Para que isto se entenda, explicaremos em poucas palavras antes de provarmos isto. Deus, antes que tivesse decretado criar estas coisas que criou, soube que todas estas coisas eram para si possíveis, e portanto soube que o gênero humano também era possível de fato para si; mas também soube isto: se fosse criar o homem na integridade, justiça e santidade, e fosse permitir que ele caísse, então ele cairia, e desta forma seria oferecida a ocasião para manifestar sua justiça punitiva em alguns, e simultaneamente sua misericórdia em outros; Ele, porém, quis esses fins, e por conseguinte decretou também criar o homem, e, uma vez criado na integridade, permiti-lo cair, e deixar alguns caídos no pecado, libertar outros, que em nada eram melhores que aqueles, da queda; e assim perder aqueles, e salvar estes.

De modo que se deve considerar que assim estabeleceu consigo mesmo: Quero manifestar o poder nos homens, bem como a justiça punitiva e a misericórdia; e porque isso não pode acontecer sem o pecado, e o pecado não ocorre sem permissão, e não há permissão sem que se permita alguém cair, por isso quero criar o homem, permiti-lo na queda, e que caia. Esta, com efeito, é a razão dos decretos de Deus (se é permitido, mesmo que balbuciando, alcançar sua profundidade, ou, se for lícito, tentarmos fazê-lo); precede o conhecimento de Deus, pelo qual Ele sabe o que é possível de fato para si, como é o homem. E de fato sabe que, se fosse permitir que ele caísse, ele cairia; e se ele fosse cair, seria dada ocasião para manifestar a misericórdia em alguns, e a justiça em outros. Portanto, Ele decretou: Quero punir Caim, Saul, etc.; logo, permitirei que caiam. Quero salvar Paulo, Pedro; logo, manifestarei a misericórdia a eles, e os levantarei da queda.

Ora, que isto seja assim, mostro a partir daqui: (1) Segundo a razão do fim, enquanto se considera na intenção, o gênero humano, como possível a Deus, é o objeto da predestinação. Se Deus tivesse decretado criar algo antes que estivesse estabelecido junto a si o fim, então certamente teria decretado fazer algo sem fim algum: mas isso é absurdo; pois não é próprio do sábio ignorar o porquê faz alguma coisa. Logo, teve previamente estabelecido junto a si o fim, antes de ter decretado criar as coisas; (2) Além disso, se Deus decretava o fim antes (usamos essas palavras não para denotar prioridade ou posteridade temporal, mas de ordem), do que decretava a existência futura das coisas: então decretava o fim ou a partir do nada, ou a partir das coisas possíveis de fato. Não a partir do nada, pois o não-ser não tem fim. Logo, a partir das coisas possíveis de fato. Mas, para que não pareçamos trazer algo novo, confirmemos a questão com autoridade: pensa assim conosco o claríssimo Doutor Gomarus, na disputa da trigésima quarta sobre a predestinação, tese 23. Eis suas palavras: “O objeto da vontade predestinante, que não pode se mover ao desconhecido ou ao acaso, foi mostrado pelo intelecto — pela presciência divina —, ou seja, foram as criaturas racionais que podiam, todas, ser predestinadas e criadas.” E assim, já está claro o que se deve responder àquele argumento do adversário, que é o seguinte: “Todo ato é posterior, por sua natureza, ao objeto; pois o objeto é dito relativamente: logo, aquilo que nele é absoluto, é por natureza anterior à relação; o objeto, portanto, é anterior em si ao ato que a ele se dirige. Ora, o homem é o objeto da predestinação. Logo, o homem é anterior ao ato da predestinação. Mas o homem é o que é pela criação; logo, a criação é anterior à predestinação etc.

Vamos agora, portanto, ao objeto da predestinação, enquanto considerado na ordem da execução; ora, este é o homem a ser criado, criado, a ser permitido no pecado, e pecador. Isto mesmo é desenvolvido pelo doutíssimo Piscator, no livrinho De gratia Dei, na questão sobre o objeto da predestinação, pág. 176, deste modo: "Se Deus, desde a eternidade, decretou salvar alguns homens por misericórdia, e punir outros por justiça, então considerou os homens tanto como a serem salvos quanto a serem punidos, e como a serem criados, como criados íntegros, mas capazes de cair, e finalmente como pecadores; a razão disso é que, sem a intervenção desses três meios, Ele não poderia ter chegado a esses fins, como é evidente." Quanto ao que se acrescenta, que Deus não poderia ter chegado a esses fins senão com a intervenção desses meios, isso se deduz do seguinte: Se esses fins são a manifestação da justiça e da misericórdia, então não teria havido lugar para manifestar nem misericórdia nem justiça, se o pecado não tivesse existido; mas o pecado não teria existido, se não tivesse existido um homem que pudesse pecar; e um homem que pudesse pecar não teria existido, se não tivesse sido criado por Deus íntegro e permitido a cair.

Objeção 1: Isso pode parecer duro de se afirmar — que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios; pois assim parece que Deus não pode agir sem meios. Resposta: Quando dizemos que Deus não pôde alcançar esses fins sem a intervenção desses meios, não o afirmamos em razão de alguma deficiência de poder em Deus, mas sim por uma deficiência de objeto no qual o poder de Deus pudesse exercer-se; do mesmo modo, por exemplo, como quando digo que Deus não poderia manifestar sua sabedoria a uma criatura racional, se tal criatura racional não existisse. Com isso não quero dizer que tal coisa não pudesse ser feita por deficiência de poder em Deus, mas sim por deficiência do objeto ao qual a sabedoria de Deus deveria ser manifestada. Assim como um homem liberal não pode distribuir esmolas onde não há quem as receba — não por deficiência de poder, mas por deficiência de objeto.

Objeção 2: se sem esses meios Deus não pode alcançar tais fins, então Deus destinou os homens ao pecado.

Resposta: Isto é certo. Assim como Deus não pôde perdoar pecados àqueles que não pecaram, nem tampouco pôde punir por pecados aqueles que não pecaram, assim, para que pudesse fazer ambas as coisas, foi necessário que ele destinasse todos os homens ao pecado. Com efeito, quem quer o fim, também quer os meios necessários. Mas os adversários negam que Deus tenha proposto a si mesmo tais fins. Resposta: é em vão que o fazem, pois o Apóstolo o afirma, em Rm 9.22–23.

A controvérsia entre nós e os adversários é a seguinte: se o Apóstolo, no capítulo 9 da Epístola aos Romanos, trata da justiça pela fé ou da predestinação?

O adversário e os seus seguidores sustentam que o Apóstolo trata da justiça pela fé. Com efeito, imaginam que o intento do Apóstolo é ensinar que devem ser considerados filhos de Abraão apenas aqueles dentre os judeus que, abandonando a justificação pela lei, seguem a justiça e a fé; e eles torcem o Apóstolo e, como que à força, com tenazes, extraem dele aquilo que pensam favorecer seu erro a respeito da eleição com base na fé prevista. Contudo, toda essa dissertação de Paulo, sobre a eleição, que se estende do versículo 16 ao 30, não trata da justificação pela fé, nem quer o Apóstolo aqui provar que o homem é justificado pela fé, ou que Deus elege aqueles que, pela fé, se apegam a Cristo. Ele quer provar unicamente isto: que o homem não é verdadeiramente filho da promessa por causa das obras da lei, mas por causa da eleição gratuita e da misericórdia.

Com efeito, é manifesto que aqui não se opõem obras e fé, mas eleição e o Deus que chama. Assim no versículo 11: ele não diz "não pelas obras, mas pela fé", mas "não pelas obras, mas pelo que chama". Do mesmo modo, quando no versículo 16 diz: "não é do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece".

Por isso também, a salvação por Cristo a ser obtida não é sequer aqui mencionada; e os argumentos que o Apóstolo aduz não ensinam qual é o meio para obter-se a salvação, mas todos são dirigidos a provar que a causa da eleição de um — por exemplo, de Pedro — e da rejeição de outro — por exemplo, de Judas — reside unicamente no beneplácito divino, e que isso não faz com que Deus seja injusto.

Além disso, aplica-se aqui também a distinção entre os filhos de Abraão, segundo a qual eles são divididos em filhos da carne e filhos da promessa. Filhos da carne são aqueles que descendem de Abraão apenas segundo a carne, ou de algum outro modo carnal. Pois ser unicamente semente natural e carnal de Abraão e ser filho da carne são a mesma coisa. Já filhos da promessa são aqueles que, pela promessa gratuita, foram dados a Abraão como pai dos crentes, conforme o versículo 9. Com isso já está claro o quão profundamente se engana o adversário, ao pensar que aqui se trata de justificação. Pois o Apóstolo ensina que aquilo que expôs a respeito da distinção entre os filhos de Abraão deve ser aplicado ao seu propósito, isto é, que são e se chamam filhos da carne aqueles que buscam a justiça pelas obras da lei, e que são e se chamam filhos da promessa aqueles que procuram ser justificados pela fé.

Mas, se são filhos da carne, e por isso são chamados tais os que pela obra da lei procuram alcançar a justiça, então Ismael e Esaú não foram filhos da carne, pois eles foram — como diz o termo grego βέβηλοι, profanos — assim como o Apóstolo atesta expressamente a respeito de Esaú em Hb 12.16, e Moisés diz acerca de Ismael, em Gn 21, que ele foi um zombador; veja Gl 4.29.

Do mesmo modo, se os filhos da promessa o são também por isso, que são justificados pela fé, como o Adversário quer, então certamente o Apóstolo deveria ter apresentado isso aqui como argumento; mas disso não há nenhuma menção, antes se propõe outra coisa, a saber, isto: “Esta é a palavra da promessa: por este tempo virei, e Sara terá um filho.” Trata-se, portanto, aqui da causa pela qual Israel foi filho da promessa: a saber, a promessa gratuita de Deus. E certamente, se ser filho da promessa é o mesmo que ser nascido segundo o espírito, isto é, ser um homem espiritual — o que, contudo, ninguém tem de si mesmo, mas do dom gratuito de Deus, que o concede a quem quer, e igualmente a quem quer o nega.

Porque, então, Deus faz isso, não pode ser dada outra causa além daquela que o Apóstolo apresenta: que, a saber, este — por exemplo, Isaque e Jacó — Deus elegeu para a salvação, e, por isso, também para os meios pelos quais esta é conferida; aqueles — a saber, Ismael e Esaú — reprovou, como se mostra pelos versículos seguintes.

Contudo, os Adversários não querem admitir que essas pessoas, que aqui são nomeadas por Paulo, sejam consideradas em si mesmas, mas apenas como tipos: Isaque e Jacó como filhos da promessa, Ismael e Esaú como filhos da carne; e tentam provar isso a partir da Epístola aos Gálatas, cap. 4, verss. 21–24, onde se diz que foram tipos das coisas futuras.

Os Adversários alegam isso sem nenhum fundamento. E que espécie de argumento é esse, pergunto? “Paulo, em Gl 4, ensina que esses foram tipos das coisas futuras; logo, ensina que não foram considerados em si mesmos.” Acaso suportaria o Adversário alguém argumentando assim: “Isaque e Jacó foram tipos dos filhos da promessa; logo, não foram considerados em si mesmos, filhos da promessa?”

Se ponderarmos com atenção o que significa odiar um homem ainda no ventre, antes que ele fizesse qualquer bem, veremos facilmente que Esaú aqui não é citado apenas como tipo, mas como exemplo, a quem isso verdadeiramente se aplica, mesmo que não fosse utilizado como protótipo. Pois nem mesmo Malaquias, de onde essas palavras são tomadas, o apresenta como tipo, mas como exemplo.

Por isso, alguns fazem a distinção entre tipos: uns que representam a coisa apenas por sombras, os quais são chamados σκιαί (sombras) ou σκιώδεις (sombrios), e outros que representam a coisa com a verdade da própria realidade, os quais também são chamados προτυπώσεως (protótipos). Tais tipos foram, de fato, no presente caso, Ismael e Isaque, Esaú e Jacó, dos quais se atesta que Deus verdadeiramente odiou os primeiros e verdadeiramente amou os últimos.

Mas deve-nos ser mostrado a razão pela qual um é filho da carne, o outro da promessa, a depender do beneplácito de Deus. Portanto, Paulo ensina isso neste lugar, onde diz: "Ainda não haviam nascido os meninos, e quando nada tinham feito de bom ou de mau, para que o propósito de Deus, segundo a eleição, permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama, foi dito a ela: O maior servirá ao menor." O Adversário deve adaptar essas palavras à doutrina da justificação como ele a propõe, e verá que de modo algum isso poderá ser ajustado a ela.

Pois se ele afirma que Deus decretou escolher para si os homens não quaisquer, mas aqueles que previu que creriam, e que decretou rejeitar aqueles que previu não creriam, nem buscariam a justiça que é pela fé, então, se a situação é essa, as palavras do Apóstolo devem ser invertidas, e se deve dizer: Não depende do que chama, mas daqueles que foram chamados, visto que também Jacó foi amado por Deus pela previsão da fé, e Esaú rejeitado pela incredulidade, por que, então, seria dito no texto, antes de fazerem qualquer coisa boa ou má, ainda não por obras, mas pelo que chama?

O Adversário pensa que essas palavras, "não por obras", devem ser restritas apenas a Esaú, e àqueles cujo tipo ele representa, isto é, aqueles que somente por obras, ou seja, que interpretam como por obras da lei, buscam a salvação. Mas isso é facilmente desmascarado como falso. O Apóstolo diz que, quando ainda não haviam feito nada de bom ou de mau, foi dito a Rebeca: "O maior servirá ao menor." Não deveria o Apóstolo apresentar a razão de por que isso foi dito a Rebeca, antes de qualquer coisa boa ou má ser feita? E ninguém duvidaria de que ele deveria fazer isso. Ele trouxe, na verdade, que o propósito de Deus, que é segundo a eleição, permanecesse firme, não por obras, mas pelo que chama. Quem agora não vê que as palavras "não por obras" se referem a aqueles, quando ainda não haviam feito nada de bom ou de mau, e, consequentemente, essas palavras, "não por obras", devem ser entendidas tanto das boas obras de Jacó quanto das más obras de Esaú, e excluir ambas desse propósito? O Adversário, no entanto, restringe isso apenas a Esaú, ou melhor, àqueles que foram significados por Esaú, nomeadamente, os filhos da carne, que somente por obras, isto é, conforme eles interpretam, pela lei buscam a salvação. Quando, no entanto, entre todos aqueles que não odeiam a verdade, é claro que o Apóstolo fala e ensina que o propósito de Deus, que é segundo a eleição (que necessariamente envolve a reprovação), não depende de obras, sejam boas ou más, dos filhos da promessa ou da carne, mas de Deus, segundo a liberdade de Sua vocação, distinguir entre ambos, sem qualquer consideração pelas suas boas ou más obras.

Em seguida, como as obras da lei, ou a obediência legal, sejam internas ou externas, e o Apóstolo exclui toda a obediência legal desse propósito, isto é, não apenas as obras externas dos hipócritas, mas também a obediência interna do coração dos fiéis, torna-se manifesto que essas obras da lei não podem ser restringidas apenas aos filhos da carne. E excluir todas as obras legais, que são feitas por nós, seja pelos fiéis ou pelos infiéis, é provado:

I. Porque se ele excluísse apenas as obras externas dos hipócritas, os judeus ou quaisquer outros não teriam protestado, nem poderiam acusar Deus de injustiça, quando ouviam frequentemente de seus profetas a condenação desse tipo de obra. Em segundo lugar, no capítulo 4, o Apóstolo exclui claramente da causa da justificação as obras do fiel Abraão e do fiel Davi. Em terceiro lugar, se não forem excluídas todas as nossas obras, tanto as de graça e fé, quanto as que são feitas sem graça e fé, não será excluída a glória, a razão, porque a graça, pela qual somos feitos aptos para as obras de graça e fé, segundo os Adversários, não é irresistível. Portanto, o homem tem algo de que se gloriar por sua boa vontade, por não ter resistido à graça, a qual, sendo aceita, não tem origem na graça, pois a graça não foi resistida.

Mas maior se revela a audácia quando o Adversário interpreta essas palavras "não por obras, mas pelo que chama" por meio da "fé", na qual obedecemos a Deus que chama. Pois esses dois, a saber, Deus chamando, de quem o Apóstolo fala, e nossa fé, pela qual obedecemos a Deus que chama, estão muito distantes entre si. E, de fato, o Adversário sequer tentou introduzir qualquer argumento que mostrasse que estas seriam equivalentes. A falsidade dessa exposição aparece aqui. Primeiramente, não pode ser provado por nenhuma expressão da Escritura que, quando se diz "Deus chamando", se entenda a nossa fé. Como está em 1 Ts 2.12, "para que andásseis de maneira digna do Deus que vos chama para o seu reino" (θεο το καλοντος μς ες τν αυτο βασιλείαν), ou como em Gl 1.6, "Admiro-me de que tão rapidamente tenhais passado para outro evangelho", π το καλέσαντος μς ν χάριτι Χριστο, ou ainda em Gl 5.8, "A persuasão não vem daquele que vos chama", πεισμον οκ κ το καλοντος μς. Nunca o καλν, isto é, Deus chamando, é nossa fé.

Além disso, o Apóstolo disse: “não por obras” — como então seria por fé? Acaso a fé não é uma obra? Aliás, segundo o Adversário, ela justifica precisamente enquanto é uma obra. E de nada lhe servirá a distinção entre obra evangélica e legal. Pois aquelas obras que os Adversários costumam chamar de evangélicas — a saber, esperança, fé e caridade — foram prescritas pela lei. Além disso, essa exposição contradiz diametralmente as Escrituras, que testemunham que a fé segue a eleição como efeito, e não a precede como causa. Em Rm 8.30: “Aos que predestinou, a esses também chamou”, ou seja, concedendo-lhes fé; pois segue: “aos que chamou, a esses também justificou.” Em 1Co 2.7, o Apóstolo diz: “[falamos] a sabedoria de Deus, em mistério, que estava oculta, a qual Deus preordenou antes dos séculos para nossa glória” — ou seja, foi também predestinada a fé, que vem do ouvir do Evangelho (Rm 10) e da vocação eficaz, a qual o Apóstolo também ensina depender da predestinação. Em Rm 8.28, ele diz que somos chamados κατ πρόθεσιν, “segundo o propósito”. Em Ef 1.4: “Escolheu-nos nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele, em amor.” Ora, a fé é parte dessa santidade. Logo, é também efeito da eleição. Mas, de forma claríssima acima de todas, At 13.48: “Creram todos os que haviam sido ordenados para a vida eterna.” A razão por que, ao pregar Paulo, alguns creram e outros não, Lucas atribui à ordenação de Deus, que é anterior à fé. Com efeito, traduzir a expressão grega τεταγμένοι por “dispostos”, como fazem os Adversários — ou por “inclinados” e “bem afetos” — não se sustenta nem pelo vocábulo grego em si, nem pelo uso costumeiro de Lucas. Veja-se At 15.2: ταξαν ναβαίνειν Παλον κα Βαρναβν, “decidiram que Paulo e Barnabé subissem”; ou At 28.23: ταξάμενοι δ ατ μέραν, “tendo-lhe designado um dia”; ou Lc 7.8: π ξουσίαν τασσόμενος, “constituído sob autoridade”. Em todos esses lugares, não se significa disposição, ou afeto, ou inclinação, mas sim constituição e ordenação.

A própria analogia da fé rejeita tal interpretação. Pois ninguém não regenerado, e carente de fé, é bem disposto ou inclinado para a vida eterna — como eram aqueles de quem Lucas fala nesse texto, antes que, pela pregação dos Apóstolos, Deus lhes traspassasse os corações. E certamente ninguém em juízo usaria as palavras de modo tão licencioso a ponto de dizer que alguém é inclinado ou bem disposto para a vida eterna. Pois toda propensão, no negócio da salvação, é para agir, não para fruir. Uma coisa é o desejo; outra, a propensão.

E de fato, os escolásticos mais doutos, movidos pelas palavras de Paulo em Rm 11, afirmam com constância que não só a causa da eleição, mas também da reprovação, é a vontade de Deus somente. Lombardo diz, livro 1, dist. 41: “Assim como não houve méritos para a predestinação, assim também para a reprovação. Jacó não foi eleito, nem Esaú reprovado, por méritos que então tivessem, nem por méritos futuros.” Tomás [de Aquino] manteve essa doutrina recebida do Mestre, e a defendeu cuidadosamente. Ele diz, na Suma Teológica, parte I, questão 23, art. 3: “Assim como a predestinação inclui a vontade de conceder graça e glória, assim a reprovação inclui a vontade de permitir a queda na culpa, e de infligir a pena da condenação por causa da culpa.” Domingo Bañez explica assim a sentença de Tomás, na mesma parte I, questão 23, art. 5: “A sentença de Tomás é que, falando simplesmente, não há causa ou razão da reprovação do lado do reprovado, assim como não há do lado do predestinado.” E acrescenta depois: “Por isso, a reprovação não pressupõe presciência do pecado, segundo Tomás, porque o primeiro efeito da reprovação é a permissão do pecado; portanto, a permissão do pecado é posterior à reprovação na ordem das causas.” Pedro de Ailly, na questão 12, art. 2: “A quem quer que Deus reprovou, reprovou sem qualquer causa nele mesmo.” Cornélio de Zierikzee, que participou do Concílio de Trento como bispo, em seu comentário ao capítulo 9 da carta aos Romanos, diz: “Uma coisa é dizer: sem deméritos, Deus permite que alguém pereça; outra coisa é dizer: Deus permite que alguém pereça sem deméritos. A primeira é verdadeira, a segunda é falsa.

Mas também deve ser aqui bem considerado que estas palavras “não por obras” de modo algum podem ser desviadas para o tema da justificação. Pois a justificação, sobretudo a passiva, que é pela fé, segue, não precede, a vocação. Com efeito, acima, no capítulo 8, versículo 30, o Apóstolo disse: “Aos que chamou, a esses também justificou.” Além disso, seria uma maneira de falar extremamente dura opor a vocação às obras, quando se trata da justificação. Pois o Apóstolo, todas as vezes que discute a justificação, costuma opor a fé às obras, jamais opõe a vocação às obras.

Ademais — o que é o ponto principal da questão — isso não pode ser feito, se a vocação for comum (segundo a opinião dos Adversários). Com efeito, aquilo que é comum não se opõe a coisa alguma. Assim, se a vocação é comum tanto ao que obra quanto ao que não obra, em vão se diria: “não por obras, mas por aquele que chama.”

Já mostramos, a partir do capítulo 9, versículo 11, que o Apóstolo de modo algum trata aqui da justificação, e agora isso mesmo se torna evidente a partir da objeção que ele apresenta, e da razão que o Apóstolo havia dado para mostrar por que Deus quis que tais exemplos ilustres existissem e fossem conhecidos por todos. Ora, essa razão é a seguinte: Se Deus, sem consideração alguma pelas obras, amou a um e odiou a outro, então Ele é injusto. Mas a primeira parte é verdadeira. Logo, também a segunda. Ou, para formular de outro modo: Mas Deus não é injusto. Logo, não foi sem alguma consideração pelas obras que Ele amou a um e odiou o outro.

O Adversário entende estas coisas como se Paulo estivesse perguntando se haveria injustiça em Deus, por excluir do pacto aqueles que querem ser justificados pela Lei que Ele mesmo instituiu, e por querer justificar aqueles que creem em Cristo.

Respondo: não há aqui nem mesmo aparência, nem razão alguma para tal questão. Pois que espécie de injustiça seria essa em Deus? Ou quem seria tão insensato a ponto de querer discutir com Deus o fato de Ele querer justificar por meio da fé em Cristo e absolver os culpados da transgressão da Lei?

De fato, quem quer que se admire ou questione por que Deus quis que os pecadores fossem salvos pela fé em Cristo, não está buscando a justiça em Deus, mas investigando os arcanos da sabedoria divina.

Se este fosse o sentido do Apóstolo, como o Adversário lhe atribui, teria sido fácil responder: que Deus não é injusto por salvar os que creem, e por oferecer uma justiça melhor àqueles que não podem ser justificados pela Lei da qual são transgressores; ou por substituir ao pacto da Lei — que foi invalidado pelo pecado — outro pacto, por meio do qual o homem é salvo.

Portanto, outro é o propósito de Paulo neste lugar: ele nega a consequência daquele argumento quando diz: “De modo nenhum!” (Absit). Ora, a razão dessa negação consiste em dois membros, correspondentes aos dois membros da objeção, pela qual a acusação de injustiça havia sido lançada contra Deus pelo oponente. Com efeito, o segundo membro, ao qual o Apóstolo primeiro responde, é: “Se Deus amou Jacó antes que tivesse feito qualquer bem, então Ele é injusto.” A força da consequência baseia-se em um raciocínio comum, que parece ditar que é injusto amar a um mais que a outro, se ambos são em tudo iguais. O Apóstolo prova a falsidade dessa consequência com a citação da Escritura, no versículo 15: “Pois a Moisés Ele diz: Terei misericórdia de quem Eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem Eu me compadecer.” Aqui, não deve ser buscada na palavra “misericórdia” a destruição da consequência, como fazem os Adversários, mas ela se baseia somente na autoridade da Sagrada Escritura, do seguinte modo: Aquilo que a Sagrada Escritura atribui a Deus não pode ser injusto. Ora, a Sagrada Escritura atribui isto a Deus, a saber: que Lhe é lícito ter misericórdia de quem quiser. Pois diz a Moisés: “Terei misericórdia”, etc. E assim, de forma mais sólida e eficaz, o Apóstolo destrói a consequência do silogismo anterior — ao menos quanto ao segundo membro — pois Paulo escreve estas coisas não a infiéis, mas aos Romanos convertidos à fé de Cristo, os quais criam nas Sagradas Escrituras, mesmo contra o juízo da carne, sem qualquer hesitação.

Contudo, os Adversários recobrem seu próprio comentário com verniz e afirmam, além disso, que aqui o Apóstolo trata dos pecadores — o que seria evidente a partir do versículo 16, onde o Apóstolo diz: “Assim, pois, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus que usa de misericórdia.” Donde parece seguir-se, segundo eles, que Deus não é justo, porque o Seu propósito segundo a eleição — ao rejeitar os filhos da carne (isto é, os infiéis) e ao considerar como filhos da promessa (isto é, os fiéis) — tem por única causa a misericórdia e a compaixão de Deus. Pois, dizem eles, quando a misericórdia de Deus é posta em oposição à vontade e à corrida do homem, é certo que se entende aquele esforço e curso pelo qual o homem, sem a misericórdia de Deus, espera alcançar a justiça e a salvação. E reciprocamente, quando a misericórdia é oposta à vontade e ao esforço, compreende-se que aquele meio ordenado para se alcançar justiça e vida é justamente a misericórdia — e o que é mais próximo da misericórdia é a fé em Cristo, o Mediador.

Respondo. Antes de tudo, o doutíssimo Twillus não admite que a eleição proceda da misericórdia, e isso por argumentos gravíssimos e, além disso, veríssimos, sendo por eles movido. Pois, diz ele: Se atentarmos à forma de falar da Escritura, perceberemos que tanto a graça quanto a glória procedem da misericórdia divina, porém nunca a predestinação ou eleição. Esta, com efeito, é dita ocorrer segundo o propósito (Ef 1.11), ou segundo a presciência (1Pe 1.2), ou a partir do afeto benevolente da vontade (Ef 1.5). Acrescento ainda — diz ele — que os gentios alcançaram misericórdia por causa da incredulidade dos judeus (Rm 11.32). Ora, se a eleição fosse procedente da misericórdia, há muito teriam alcançado misericórdia, desde que foram eleitos, isto é, desde a eternidade. Também se diz que Deus encerrou todos debaixo da desobediência, para usar de misericórdia para com todos (Rm 11.32). Logo, a misericórdia divina segue a desobediência do homem. Mas quem em sã consciência atribuiria tal previsão da desobediência a essas palavras? Por fim, todos são chamados de “não alcançaram misericórdia” antes da vocação (1Pe 2.10). Portanto, a vocação é o primeiro ato da misericórdia divina exercida sobre os miseráveis, e não a predestinação ou eleição.

Contudo, objeta-se com base em Rm 9.16: “Logo, não depende de quem quer, nem de quem corre, mas de Deus, que usa de misericórdia.” Respondo: 1. O termo “eleição” é aqui suprido conforme a interpretação de Beza. 2. Piscator interpreta esse versículo do Apóstolo não a respeito da eleição, mas da salvação. Outra objeção é feita: a Escritura chama os eleitos de vasos de misericórdia (Rm 9.23). Ora, não há lugar para a misericórdia senão para com os miseráveis. Respondo: Os eleitos são chamados vasos de misericórdia, não porque foram eleitos por causa da misericórdia, mas porque foram eleitos não apenas para a salvação, mas também para a misericórdia que Deus lhes mostraria no perdão dos pecados, na imputação da justiça e na concessão da salvação eterna.

Em segundo lugar, respondemos que os adversários erram. Pois, ao fim, sua explicação tende a isto: que nas palavras “não é de quem quer, nem de quem corre”, se deve subentender aqueles que querem ser justificados pela lei. Ora, isso não é provado em nenhuma parte da Escritura; e o texto ensina claramente que se exclui todo e qualquer esforço humano. Pois, como essas palavras remetem, com o assentimento dos próprios adversários, àquelas anteriores: “não por obras, mas por aquele que chama” — pelas quais o Apóstolo havia excluído dessa proposição não apenas as más obras de Esaú, mas também as boas de Jacó —, vê-se claramente que aqui se opõe não só a corrida de Esaú, sem misericórdia de Deus, mas também a de Jacó, unida à misericórdia, ao Deus que usa de misericórdia como causa desta proposição. E acaso o crente não é aquele que quer? Acaso não é aquele que corre?

Quanto às palavras dos adversários que mencionamos acima, as quais colocam em paralelo a misericórdia etc., dizemos que os adversários acumulam absurdos sobre absurdos. Pois anteriormente explicavam as palavras “não por obras, mas por aquele que chama (Deus)” como se significassem: por Deus chamando através da fé de um homem obediente. Assim também aqui interpretam: “o propósito de Deus não é de quem quer nem de quem corre, mas daquele que usa de misericórdia”, como se significasse: do homem crente pela misericórdia. Admitimos que tal meio para alcançar a vida — a saber, a fé em Cristo — foi ordenado por esse propósito e está o mais próximo da misericórdia; mas será que, por isso, estas palavras “mas de Deus, que usa de misericórdia” devem ser explicadas como “do homem crente pela misericórdia de Deus”? Isto é: será que, por isso, o Apóstolo, em lugar da misericórdia de Deus, fundamenta este propósito sobre a fé do homem? Isso seria um sofisma grosseiríssimo. Pois Paulo trata aqui — como os próprios adversários reconhecem — do propósito da eleição; e diz que sua causa não é o esforço ou a vontade do homem, mas a misericórdia de Deus. Isto é: segundo os adversários, a fé do homem. A fé, então, seria a causa do propósito da eleição? Isso contraria o que a Escritura tantas vezes testifica. E se, todavia, fosse assim, o Apóstolo poderia ter resolvido a objeção com uma única palavra, dizendo: “Não há injustiça em Deus, pois escolhe um e rejeita outro com base na causa de que um crê em Cristo e o outro não.”

E assim se tratou do segundo membro da objeção, a saber: se Deus amou a Jacó antes que ele tivesse feito qualquer bem, então Deus é injusto. Agora é necessário tratar do primeiro, que é este: se Esaú foi destinado ao ódio antes que nascesse e antes que tivesse feito qualquer mal, então Deus é injusto. A isso, no versículo 17, ele responde com estas palavras: Diz, com efeito, a Escritura a Faraó, etc. Um argumento solidíssimo, qualquer que seja a opinião dos homens: sabemos que a Escritura nada atribui de injusto a Deus. Ora, a Escritura atribui isto a Deus, pois diz a Faraó: para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder. Logo, isto não é injusto. E assim o Apóstolo responde ao primeiro ponto. Pois, com relação a ambos os membros, ele conclui com uma sentença geral no versículo 18: Logo, de quem quer tem misericórdia, e a quem quer, endurece.

Do que mais uma vez se torna evidente que o Apóstolo neste capítulo não trata da justificação. Pois estas palavras de modo algum podem ser aplicadas à justificação, já que o endurecimento se opõe ao amolecimento do coração, e não à condenação. Tampouco é crível que o Apóstolo tenha recorrido à vontade de Deus quando o assunto era dar razão por que uns, e não outros, são justificados — pois a causa estava clara: este creu em Deus, aquele se arrependeu do pecado; aquele outro não creu, aquele não se arrependeu; causa justa e suficiente, até mesmo ao juízo da razão humana — a menos que alguém esteja fora de si. Mas, embora Deus não endureça senão os merecedores, contudo não parece que se possa com razão indignar-se contra os endurecidos, uma vez que eles foram destinados a isso pela vontade eterna de Deus, ou seja, por seu decreto, ao qual não se pode resistir, e isso não por causa de obras que fariam, mas por seu mero beneplácito.

Os adversários pensam que o oponente, que aqui é introduzido pelo Apóstolo, deseja saber nada além do seguinte: se aqueles que são endurecidos mereceram o endurecimento e, portanto, se Deus justamente se irrita contra eles. Se assim fosse, então o Apóstolo não teria repreendido com severidade uma ousada resposta contra Deus — que, nesse caso, não haveria —, mas sim uma ignorância torpe e mais que bruta, uma vez que nada é mais comum nas Escrituras, nada mais evidente na natureza, do que que Deus pune apenas os que merecem. Mas agora o Apóstolo, vendo que o oponente não duvida da equidade de Deus em endurecer os ímpios, mas contesta, na verdade, a eterna vontade de Deus — pela qual, não com base em obras, mas segundo seu próprio beneplácito, ele decretou exaltar uns graciosamente à glória, e outros ao opróbrio —, com razão o refreia com estas palavras: Antes, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? E acrescenta uma razão gravíssima: Acaso dirá o vaso ao oleiro: por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra, e outro para desonra?

Com que fim, pergunto, se apresenta aqui resposta tão elevada e sublime, afirmando o supremo poder de Deus ξουσίαν sobre as criaturas, se aquele que é introduzido como perguntante estivesse disposto a aquiescer, uma vez que entendesse que os endurecidos mereceram o endurecimento? Pois isso ele poderia ter provado facilmente sem esta resposta profunda — aliás, já o havia provado amplamente no capítulo 3 desta epístola.

Mas vejamos as palavras seguintes, que mostram clarissimamente que não se trata aqui, em Rm 9, de justificação, mas de predestinação. As palavras são: Acaso dirá o vaso ao oleiro: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra, e outro para desonra? Daí se conclui clarissimamente que o Apóstolo ensina que Deus tem o poder de, a partir da mesma massa, fazer um vaso para honra, outro para desonra. Ora, pelo nome de “massa” não se pode entender o gênero humano corrompido, como querem alguns. Pois, se assim fosse, o Apóstolo não teria dito que Deus faz, a partir dessa massa, vasos de ira, mas que os deixa naquela mísera massa como vasos que já são de ira; e não teria sido necessário ao Apóstolo esforçar-se por defender a justiça de Deus na perdição dos réprobos.

Portanto, Deus é ali comparado a um oleiro, ao qual, se se concede o direito de, segundo seu arbítrio, fazer tanto vasos para usos honrosos como para usos vis, sem que o barro por isso pareça sofrer injustiça — quanto mais Deus teve o direito de dispor daquele barro do qual, em um só homem, criou o gênero humano, para que dele tirasse a uns, nos quais exerceria sua justa ira, e a outros, que abençoaria por sua excelsa bondade?

Mas como os criou? Certamente em Adão, à cuja criação o Apóstolo, sem dúvida, alude ao mencionar o oleiro e o barro. E como, então, em Adão? Certamente não sem a intervenção da queda voluntária. Pois, se Adão não tivesse caído por livre vontade — ainda que não sem a ordenação de Deus, mas sem qualquer culpa de Deus —, então não haveria lugar para a misericórdia nem para a severidade, e, por conseguinte, o desígnio de Deus teria sido frustrado.

Em Gl 3.22, o Apóstolo diz que Deus encerrou todos debaixo do pecado, para que a promessa fosse dada aos que creem, por meio da fé em Jesus Cristo: não é evidente que ele remonta até a própria origem da culpa, isto é, até a queda de Adão, para que aí se inicie a distinção entre os vasos?

Conclui-se, portanto, com toda clareza, que Paulo ensina aqui que Deus destinou alguns, não apenas à destruição, mas também ao pecado. E o que isso tem a ver com a justificação? Talvez alguém ache duro o que dizemos — que Deus destina ao pecado. Resposta: Não deve parecer duro aquilo que a Escritura diz. Pois como poderia Ele destinar à destruição, se não destinasse também àquilo por causa do qual a destruição justamente se impõe?

De fato, a Escritura ensina que alguns são destinados aos próprios pecados, conforme 1Pe 2.8: os que tropeçam na pedra de tropeço, para o que também foram postos; e na Epístola de Judas: Certos homens se introduziram dissimuladamente, os quais já antes estavam destinados a esta condenação, ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus, e negam o único Soberano e Senhor nosso, Jesus Cristo. Pode-se aqui objetar que a Escritura em parte alguma ensina que Adão foi destinado ao mal da culpa, e que, portanto, essa doutrina não deve ser tolerada. Respondemos: quantas passagens das Escrituras afirmam que em Deus não há temeridade, que Deus é onipotente, que não apenas criou todas as coisas, mas também as governa — especialmente os homens —, e que jamais muda? Tantas vezes, pois, é dito que Adão caiu, mas também, não só com presciência, mas com ordenação de Deus, ele caiu. Pois, se antes da criação do homem Deus não deliberou sobre o fim para o qual o criaria, então agiu temerária e imprudentemente. Mas, se decretou algo diferente do que aconteceu, ou Ele não foi onipotente — pois seus desígnios foram frustrados por Satanás —, ou foi inconstante, porque mudou de plano. E se alguém quiser objetar que foi adicionada ao plano de Deus a condição de que Adão perseverasse na integridade, respondo: ainda que eu não negue isso, pergunto, contudo, se o fundamento do próprio plano divino dependia de Adão? Se o adversário ousar afirmar isso, então o julgamento estará — como bem disse Agostinho — não nas mãos do oleiro, mas nas do barro. E que Deus será esse, que faz depender o fundamento de seus desígnios da vontade da criatura?

E se isso ainda não bastasse, a Escritura clama que nem mesmo os pardais caem em terra sem a vontade do Pai celestial, e que todos os cabelos de nossa cabeça estão contados — não testifica isso abertamente que sem a vontade do Pai aquele primeiro pai não caiu? A não ser que, porventura, os pardais ou os vossos cabelos sejam de mais valor para Ele do que todo o gênero humano. E, se nem mesmo os porcos Satanás pôde atacar sem permissão do Senhor, dirá alguém que, sem que Deus soubesse, quisesse ou se importasse, Satanás subverteu todo o gênero humano em um só homem?

Eis que, primeiro, o Apóstolo respondeu a essa objeção: Pois de que se queixa ainda? Quem jamais resistiu à sua vontade? (Rm 9.19). Em segundo lugar, agora nos versículos 22 e 23, o Apóstolo responde remetendo-nos às coisas que Deus realiza no tempo. Ele propõe três coisas: Primeiro, que Deus suporta com muita paciência os vasos preparados para a perdição. Deus tolera por muito tempo os ímpios, os cumula de vários benefícios, e durante toda a sua vida se mostra a eles de tal modo que são forçados a confessar que Deus não deixa de agir com suma justiça para com eles. Segundo, Deus condena os ímpios para manifestar sua ira e para mostrar o quanto detesta os pecados, e para tornar conhecida sua potência. Terceiro, para que também fique evidente quão imensa é sua bondade e incompreensível sua misericórdia para com os eleitos. Nenhuma dessas coisas que se realizam no tempo — e que estão expostas a nossos olhos, podemos nós reprovar; ao contrário, somos obrigados a proclamá-las. Que impiedade, pois, é esta, de julgar mal as coisas ocultas de Deus?

Os adversários dizem: com estas palavras — suportou com muita longanimidade os vasos preparados para a perdição — ensina-se claramente que essa voz passiva κατηρτισμένα (isto é, “preparados”) se refere não a uma preparação por parte de Deus, mas feita pelo diabo e pela vontade própria [dos ímpios], e, por isso, destinados com justiça ao castigo eterno.

Resposta: 1. Se por essa razão Deus deve ser excluído da ação expressa por καταρτίζω, por que não o excluiríamos também da causa de nossa salvação? Pois também somos designados por vozes passivas: γαπημένοι, λεηθέντες, δικαιωθέντες. Portanto, o fundamento dessa conclusão é vão. Depois, o próprio verbo καταρτίζειν, aplicado por analogia ao oleiro, refere-se aos vasos tanto para honra quanto para desonra, conforme o fim proposto pelo modelador. Quem não vê que isso não se refere às causas secundárias — subordinadas à execução do decreto, e que pertencem aos próprios condenados, e não a Deus —, mas sim ao decreto do próprio Deus artífice, o qual precede todas essas causas em ordem, com uma clara alusão à criação do gênero humano em Adão?

E que mais? Não é o próprio Apóstolo que, no versículo anterior, ao comparar o artífice do gênero humano ao oleiro, usa o verbo ativo ποισαι (“fazer”), tanto com relação aos vasos de desonra quanto aos vasos de honra? Seja, enfim, para nós o melhor intérprete deste lugar o próprio Salomão, que usa o verbo criar, e menciona o dia do mal, pelo qual nada mais se entende senão aquela πώλεια (perdição), quando diz: O Senhor fez todas as coisas para si mesmo, até o ímpio para o dia do mal (Pv 16.4).

Em segundo lugar, eles (os adversários) ensinam, por estas palavras, Deus suportou com muita paciência os vasos da ira, que o Apóstolo indicaria um modo de endurecimento por meio da paciência e mansidão, não por meio de uma ação onipotente da vontade, à qual não se pode resistir. Mas que lógica ensinou os adversários a raciocinar assim: "O Apóstolo indica que os ímpios são endurecidos pela paciência de Deus, portanto, ele nega que sejam endurecidos por uma ação irresistível da sua vontade"?

Agostinho, justamente com base neste lugar, demonstra que Deus endurece os ímpios não apenas com paciência, mas também com potência. Eis o raciocínio lógico contrário: “O que é isso que dizes”, afirma ele no Livro 3 contra Juliano, capítulo 5: “Quando se diz que foram entregues aos seus desejos, entende-se que o foram por paciência divina, e não compelidos ao pecado por sua potência?” Como se o mesmo Apóstolo não tivesse justamente colocado ambas as coisas, paciência e potência, no mesmo lugar, quando diz: Mas se Deus, querendo mostrar a sua ira e fazer conhecida a sua potência, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição (Rm 9.22). Mas o que dizes sobre o que está escrito: E se o profeta for enganado e falar, eu, o Senhor, enganei o tal profeta (Ez 14.9)? Foi por paciência ou por potência? Qualquer uma das duas que escolhas — ou mesmo ambas que admitas —, é necessário reconhecer: as palavras falsas do profeta constituem pecado, e são também castigo pelo pecado. O mesmo Agostinho, no mesmo lugar, diz: “Quem seria tão insensato, que ao ouvir o que se canta no Salmo — Não me entregues, Senhor, ao meu desejo (Sl 140.8) — dissesse que o homem rogava para que Deus não fosse paciente com ele? Se Deus não entrega senão quando a sua bondade paciente tolera que se cometam males, que sentido tem aquilo que todos os dias dizemos: não nos deixes cair em tentação, senão que não sejamos entregues às nossas concupiscências? Pois cada um é tentado, arrastado e seduzido pela sua própria cobiça (Tg 1.14). Acaso pedimos a Deus que não exerça paciência para conosco com sua bondade? Não estamos invocando sua misericórdia, mas provocando sua ira? Quem em seu juízo perfeito — ou mesmo insano — diria tal coisa?”

Portanto, Deus entrega aos afetos de ignomínia, para que os mesmos pecados sejam simultaneamente pecados e castigos dos pecados passados, bem como méritos para os castigos futuros. Assim como entregou Acabe ao engano dos falsos profetas; assim como entregou Roboão a um mau conselho. Deus faz isso de modos admiráveis e inefáveis, Ele que sabe operar julgamentos justos não apenas nos corpos dos homens, mas também em seus corações; que não produz vontades más, mas delas se serve como quer, ainda que nunca deseje algo injustamente.

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