OS DEZ MANDAMENTOS, por Johannes Maccovius

CONSIDERAÇÕES INICIAIS DA LEI DIVINA COM O EVANGELHO DE CRISTO

As partes da Palavra de Deus são: Lei e Evangelho

Embora haja muitas coisas nas Escrituras que não são nem Lei nem Evangelho, a Escritura, no entanto, é dividida em Lei e Evangelho com base em sua parte principal. Pois as outras partes existem em função dessas duas, de modo que, quando a Escritura trata dessas partes, atribui a elas o nome de toda a Escritura (2Tm 3.16).

A Lei é a doutrina divinamente transmitida, que ordena o que deve ser feito e ensina o que deve ser evitado.

A Lei é moral ou forense. Uma terceira espécie geralmente é adicionada às mencionadas comumente, a Lei cerimonial; porém, mostraremos mais adiante, se Deus permitir, que esta não pertence à doutrina da Lei, mas ao Evangelho.

A Lei moral é aquela cuja essência está contida no Decálogo. A Lei moral é considerada ou como aliança, ou como regra de vida. Esta distinção é muito útil para entendermos de que maneira a Lei se opõe ao Evangelho nas Escrituras; pois a Lei, enquanto aliança, se contrapõe ao Evangelho, como é dito em 2 Coríntios 3:8-9, porque a Lei prende o pecador; mas o Evangelho promete perdão ao penitente. No entanto, na medida em que a Lei é uma regra de vida, ela se harmoniza perfeitamente com o Evangelho. Porque aquele a quem são perdoados os pecados, a quem o Evangelho é pregado, deve empenhar-se em realizar boas obras, das quais a Lei é a regra.

Consideram-se desta Lei: o fundamento, a divisão, as propriedades, os fins e os efeitos. O fundamento das leis divinas é o beneplácito de Deus, pois esta é a primeira regra da justiça.

Isso se comprova: I. Pela constituição livre de Deus, que estabelece que essa obediência é justa, e não outra; como, por exemplo, por que a não ingestão do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal é considerada obediência, mas a não ingestão da árvore da vida não o é; por que o sacrifício de Isaque, o despojo dos egípcios e a construção do templo por Salomão, e não por Davi, foram ordenados; por que os homens foram instruídos a confessar Cristo, enquanto os demônios foram proibidos de o fazer. Porque todas essas coisas são equitativas e justas não decorre de outra coisa senão da vontade de Deus. II. Se algo fosse justo e bom antes da vontade de Deus, então Deus seria obrigado, por dever e obrigação, a querer isso, e também a fazê-lo; mas Deus não está sujeito a nenhum dever ou obrigação moral, exceto à Sua infinita sabedoria ou a Si mesmo, o que constitui uma obrigação sem sentido. Ele não deve nada à criatura, pois tudo o que Deus deve à Sua criatura é devido a uma promessa ou ameaça feitas livremente. O que Deus promete ou ameaça é, portanto, fruto de Sua livre vontade; nada, então, Deus deve querer ou fazer como justo antes de Sua constituição livre. III. Se algo fosse bom e justo intrinsecamente antes do beneplácito de Deus, então o beneplácito de Deus seria necessariamente regulado por essa coisa ao querer; mas o beneplácito de Deus é a primeira regra, não regulada por outra anterior. Isso se prova pela conexão: porque Deus não seria infinitamente justo e bom se pudesse agir contra o justo e o bom. IV. Toda justiça moral, seja pela lei da natureza ou por outro modo, é revelada pela sábia vontade livre de Deus, pois não é devida a uma necessidade da natureza. Pois, se Deus impusesse a lei por impulso natural, então não poderia deixar de ordenar e proibir o que ordena e proíbe. Isso se prova pela consequência, porque não há terceira opção. V. Se algo fosse justo e bom antes do beneplácito de Deus, haveria algo justo e bom que não emanaria do sumo bem e do primeiro justo; o que seria absurdo. Haveria, então, um efeito que não poderia ser resolvido em sua causa primeira. Nada há aqui que os adversários possam dizer, exceto que o bom e o justo fluem de Deus como a luz do Sol por impulso natural. No entanto, quem diria que Deus, por necessidade da natureza, proibiu o consumo do fruto da árvore proibida? Quem diria que Deus, por necessidade da natureza, prescreveu a lei aos judeus, ou ainda, que por necessidade da natureza, foi obrigado a criar criaturas intelectuais às quais pudesse impor a lei, e, portanto, criar o mundo? Isso implicaria que o mundo teria emanado eternamente de Deus por uma eterna emanação, o que seria necessário. Pois não haveria razão para que o mundo começasse em algum momento; assim como não há razão para que Deus seja infinitamente bom e justo hoje e não há mil anos. Mas a razão e a experiência clamam, e os oráculos sagrados testemunham que Deus criou livremente o mundo e todos os seres para a Sua glória, conforme Provérbios 16:4 e Romanos 11:36. Além disso, Deus não poderia ter criado as criaturas de outra maneira, em estatura, espécie, número, peso, medida ou perfeição, diferente da forma como foram criadas, o que é contrário às Escrituras, como em Romanos 9:21-22. Os Padres e Escolásticos ensinam que Deus não quer as coisas porque são boas, mas que elas são boas porque foram queridas por Deus. De tal maneira que, se Ele quisesse que elas não existissem ou fossem diferentes, isso também seria agora bom.

Objeção I: Nada é vergonhoso em relação à vontade divina. Resposta: Esta afirmação é em parte verdadeira e em parte falsa. É verdadeira porque, devido à constituição livre de Deus, algo moralmente injusto pode existir; pois Deus poderia não ter prescrito nenhuma regra aos homens, assim como o fez com os agentes naturais, de modo que, se os homens ou os anjos seguissem ou não o ditame da razão, não haveria culpa, porque Deus poderia ter deixado livre a eles a escolha de seguir ou não esse ditame. E, uma vez que a lei é um decreto absolutamente livre de Deus, se Ele não tivesse estabelecido tal decreto, não haveria nada vergonhoso ou pecaminoso; pois Deus não estabeleceu a lei por impulso natural. No entanto, é também falso que nada seja vergonhoso em relação à vontade divina, porque, dado que Deus livremente decretou o bem moral e estabeleceu a lei, tudo o que se opõe a tal lei desagrada profundamente a Deus como vergonhoso e desonesto. Portanto, assim como Deus se opõe naturalmente ao pecado por causa da sua retidão natural e da constância da natureza divina, pela qual Ele não pode deixar de odiar o que é contrário à sua sabedoria.

Objeção 2: Deus ama a verdade e a sinceridade, pois Ele mesmo é veraz e justo; não pode aprovar a lascívia e a intemperança, nem condenar a castidade em qualquer pessoa, e tampouco pode legitimar a violência. A lascívia e a violência não são apenas más para nós, a quem são proibidas, mas também em si mesmas, de tal modo que o onipotente não poderia deixar de condená-las e vetá-las como inimigas manifestas de sua santíssima majestade. Resposta: O adversário se desvia do estado da questão; pois, posto que essas coisas sejam intemperança, violência, lascívia impura, barbárie, não pode Ele não proibi-las, visto que as vetou. Portanto, foi necessário que Deus proibisse a violência, uma vez que essa é violência; mas essa necessidade é hipotética, derivada do beneplácito livre de Deus, que pode ordenar ou proibir algo à criatura, ou não ordenar nem proibir. Contudo, se ele disser que, antecedente ao beneplácito divino, essas coisas se opõem hostilmente à santíssima majestade de Deus, tal afirmação não seria outra coisa senão uma blasfêmia; pois o que, essencialmente, na natureza de Deus, é contrário a comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Não circuncidar os judeus? O que levou os judeus a pouparem os cananeus, que Deus quis que fossem completamente exterminados por eles? Então, a lei de não comer o fruto proibido flui da necessidade da natureza de Deus? Nada poderia ser mais absurdo. Além disso, o adversário argumenta: Deus não pode infringir sua própria vontade ou afastar-se da estrita observância daquela regra de justiça que nos propõe como exemplo a ser seguido. Resposta: 1. Pela hipótese de que isso seja um estatuto da vontade divina, Deus não pode deixar de seguir sua própria vontade; mas, absolutamente, Deus não deseja nem faz nada fora de si cuja contrariedade Ele não possa desejar ou fazer. 2. Nada é mais falso do que dizer que Deus não pode deixar de observar a regra de justiça proposta a nós, pois Ele estabeleceu a lei para nós, não para si mesmo. O quê? Então Deus é obrigado pela sua natureza santa a cumprir a lei e o Evangelho, ou seja, a temer a si mesmo, a guardar o sábado, a se santificar, a acreditar em seu próprio Filho, visto que nos prescreve essa regra de justiça? Mas qual é a lei que obriga Deus a permitir o pecado, a instituir sacrifícios e sacramentos, a exigir fé em vez de boas obras como condição da nova aliança? Será que Deus está obrigado pela regra mosaica dos sacrifícios a comandar sacrifícios? Contudo, não existe tal regra, a não ser que recorramos ao beneplácito de Deus. Daqui se conclui, segundo ele, que os exemplos de santidade que devemos imitar perfeitamente em Deus não devem ser retirados de um mero comando dele ou de uma revelação de sua vontade, mas sim dos objetos revelados de sua vontade ou das ações eternas de Deus, que nos foram mostradas como tantas provas e testemunhos expressos de que sua vontade é justa e santa. Deus quer que sejamos conformes a essa sua vontade, para que nos tornemos conformes à sua natureza, pois Ele ordena que sejamos santos e perfeitos como Ele é. Resposta: 1. A santidade que Deus exige de nós é conformidade com a sua vontade livremente revelada, e não simplesmente com a natureza de Deus, o que é evidente: pois o que é a lei de Deus senão o livre beneplácito de Deus, pelo qual quis que o adorássemos de um modo e não de outro? Quando poderia ter sido que, se assim tivesse parecido ao sábio beneplácito de Deus, Ele nos exigisse um modo de culto completamente diferente, ou mesmo contrário? Será que é por necessidade da natureza divina que Deus quis que o Evangelho, e não a lei, fosse o caminho para os pecadores alcançarem a glória, que Ele quis que a fé, e não as obras da lei, fosse a condição da nova aliança? Será que por necessidade da natureza divina Deus instituiu a água no Batismo, o pão e o vinho na Ceia do Senhor como sinais elementares, de tal modo que Deus teria pecado contra sua própria justiça essencial se tivesse instituído outros sinais? E Deus teria sido injusto se tivesse instituído a Circuncisão para os gentios e o Batismo como o selo da aliança para os judeus? 2. Ele deseja que os exemplos de santidade divina que devemos imitar sejam tirados dos objetos da vontade revelada. Bem, seja quem for, aqui está o objeto da vontade revelada: que os cananeus devem ser exterminados, que Isaque deve ser imolado pelo Pai, que a água deve ser o sinal no Batismo. Se o exemplo de santidade deve ser buscado nesses casos, então será verdade, antecedentemente à vontade de Deus, que Isaque deve ser imolado. Logo, os judeus que imolaram crianças pequenas não estavam pecando, mas estavam imitando a santidade essencial de Deus. Além disso, essas coisas são santas (os cananeus devem ser exterminados, as crianças devem ser batizadas com água) ou porque Deus livremente as quis; e assim, os exemplos de santidade divina que devemos imitar devem ser tirados da vontade revelada de Deus; ou são santas e justas em si mesmas, essencialmente e objetivamente, e portanto Deus é santo pela santidade objetiva das coisas criadas — o que seria o cúmulo do absurdo? 3. Se a razão formal da santidade nos ordenada deve ser retirada dos atos eternos e da prática de Deus: bem, então a prática de Deus foi ordenar que Abraão imolasse seu filho; portanto, também nos será lícito imolar nossos filhos. A prática de Deus foi permitir o pecado; portanto, o sacerdote Eli não pecou ao permitir que seus filhos pecassem, mas nisso foi santo, como Deus é santo. A prática de Deus é destruir reis; portanto, será lícito a nós matar os ungidos do Senhor. Que teologia absurda! 4. É totalmente falso que devemos ser conformes à natureza divina, e isso não se aplica nem mesmo às criaturas, nem mesmo às angelicais: os homens e os anjos são conformes a Deus porque se conformam à sua vontade, ordenada livremente, e não porque se conformam à sua natureza. 5. E a santidade de Deus, que devemos imitar, consiste em agir de forma santa e irrepreensível com suas criaturas; e está em Deus essencialmente, mas deriva do seu beneplácito absoluto, como é evidente na misericórdia e na justiça, na medida em que se referem às criaturas. Pois a santidade de Deus se manifesta nisso: que Ele ama e aprova seriamente aquilo que ordena às criaturas racionais; e se Deus tivesse ordenado tanto aos anjos quanto aos homens coisas muito diferentes, ou mesmo contrárias àquelas que agora de fato ordena, Jeová não teria sido menos santo do que é agora: Cristo ordena que sejamos misericordiosos e amantes dos inimigos, assim como é o Pai celestial. Mas, na verdade, o Pai celestial teria sido igualmente misericordioso e igualmente perfeito como é agora, se não tivesse concedido aos seus inimigos nem a luz do Sol, nem a chuva, nem tivesse, de qualquer modo, se compadecido deles, pois Ele se compadece de quem quer.

Objeção adicional: Deus não deve ser considerado bom porque ama a si mesmo, mas ama a si mesmo porque é bom. Se isso for verdade, como de fato é, então o mesmo deve necessariamente valer para a imagem de Deus. Se Deus é inclinado por uma propensão natural e imutável ao amor por si mesmo, Ele abraçará sua imagem com um afeto completamente semelhante. Resposta: 1. A consequência é inválida. Deus é bom essencialmente e não bom por participação. Os seres criados são bons por participação na bondade divina e Deus lhes concede essa bondade livremente porque Ele deseja, e assim elas são boas porque Deus as quer. 2. De modo algum se segue que Deus ama a imagem de si mesmo por uma propensão natural, pois o fato de o Pai favorecer o Filho e cuidar de sua vida, e de que se retribua isso, é uma parte significativa da imagem de Deus no homem. No entanto, Deus pode desejar que Abraão sacrifique seu filho, ou que os israelitas não devolvam o empréstimo aos egípcios. Portanto, Ele ama sua imagem livremente e não por um impulso da natureza. Pois a imagem de Deus é apenas a santidade legal no homem. E a santidade legal é a conformidade com a vontade livre de Deus, não com o desejo natural de Deus; caso contrário, Deus não poderia ordenar nada diferente do que ordena ou proibir algo diferente do que proíbe. Mais ainda, a Sagrada Escritura não seria o conselho livre de Deus, mas um desejo natural de Deus, que não pode deixar de existir em Deus, assim como Deus não pode deixar de ser Deus.

Eles dizem: Existem certas coisas que são indiferentes e que não expressam a imagem de Deus, exceto na medida em que se referem ao ser, mas não enquanto bem moral, ou seja, enquanto Deus é um ser, mas não enquanto é justo e santo. Ele pode ordenar ou proibir essas coisas como quiser. No entanto, Deus não pode condenar um inocente, absolver um culpado, proibir o amor a si mesmo, recomendar o ódio a si mesmo, ou ordenar tais ações. Solução: 1. Todas as coisas criadas e as ações humanas, consideradas de forma isolada, são indiferentes e são moralmente boas na medida em que Deus as deseja e ordena, e más na medida em que Deus não as deseja. Por exemplo, amar, adorar, falar, comer, beber, matar uma pessoa. Pois todas as coisas, sob a perspectiva física, são nem boas nem más, e amar a Deus, fisicamente, é indiferente, e moralmente bom porque é ordenado por Deus. 2. As partes da distinção não existem. Pois não há maior razão para que as coisas sejam em si indiferentes porque se referem a Deus enquanto ser, do que porque se referem a Deus enquanto justo e santo. De fato, aquilo que se refere à justiça e santidade de Deus não é bom porque se refere à natureza de Deus, mas porque concorda com a vontade justa e santa de Deus, que é, no entanto, livre. 3. Eles dizem que Deus não pode condenar um inocente, mas essa impossibilidade não surge da natureza de Deus, mas da vontade de Deus. De fato, Ele condenou Seu Filho inocente e nos absolveu, culpados. No entanto, se Deus não tivesse determinado desde a eternidade e livremente desejado absolver os culpados, Ele poderia, de fato, não tê-los absolvido. 4. Proibir o amor a Deus não se opõe simplesmente à natureza de Deus, mas à vontade livre de Deus. Eles dizem isso porque acreditam que amar a Deus está em conformidade com a natureza de Deus, e, portanto, acreditam que não amar a Deus se opõe à natureza de Deus. Mas pergunto: em que sentido se opõe? Em sentido relativo, contraditório, contrário ou privativo? Certamente, nada se opõe a Deus em Sua substância essencial, nem de forma relativa, nem contrária; pois Deus não é um acidente; nem de forma contraditória, exceto da mesma maneira que todas as coisas criadas se opõem a Ele contraditoriamente. Portanto, deve-se dizer que não amar a Deus se opõe a Deus de forma privativa. Contudo, não amar a Deus privaria Deus de sua própria natureza, o que seria blasfêmia. Pois, se fosse posto que não amar a Deus privaria Deus de sua própria existência, Deus seria anulado. Portanto, amar a Deus pertence a Deus de forma extrínseca, na medida em que está de acordo com Sua vontade revelada; pois nada é acrescentado a Deus quando Sua vontade é cumprida, e Ele não é mais feliz por isso. Assim, nada é colocado contra a natureza divina pelo fato de que os homens não amam a Deus, mas se coloca algo que Deus livremente deseja que não aconteça.

São do mesmo gênero as objeções que levantam em quarto lugar. Dizem: Há muitas coisas que Deus quer porque são justas; é justo que apenas Deus seja reconhecido pela criatura como o verdadeiro Deus; isso Deus quer porque é justo, e não é justo porque Deus quer. Resposta: Tudo isso é concedido em um sentido adequado; pois, depois que Deus expressou isso uma vez em palavra e, na criação, incutiu na mente humana por uma certa lei da natureza (que é justo que Deus seja reconhecido como o verdadeiro Deus pela criatura racional), então Deus não pode deixar de querer isso sem cair em uma nota de inconstância. Assim, Deus quer aquilo que é justo, justamente porque em um ato anterior de Seu beneplácito determinou que essas coisas fossem justas. No entanto, uma vez que Deus livremente decidiu que algo deve acontecer, isso não cai sob outra constituição livre de Deus, como algo que poderia ser livremente realizado ou não por Ele. Agora, pela necessidade hipotética, Deus não pode deixar de querer isso. Mas, considerando as coisas em sua existência objetiva e material, ou seja, no sinal da razão pelo qual a sua existência deve ser sancionada pelo decreto livre de Deus e ainda não sancionada, elas podem cair sob a constituição livre de Deus como justas ou injustas por um decreto negativo. Portanto, se o culto a Deus está incluído na natureza e quididade da criatura racional, desvia-se completamente da questão em debate. De fato, não se pergunta se é justo desde a eternidade que o homem cultue a Deus, e se Deus quer isso porque é justo, mas se o culto a Deus pudesse ser separado da equidade da obrigação natural da natureza da criatura racional, então dizemos que seria possível, se assim tivesse parecido bem a Deus, que não fosse justo que a criatura racional cultuasse o Criador. Pois, se Ele tivesse determinado que a criatura racional não cultuasse o Criador, isso seria tão justo e equitativo quanto é justo o contrário.

A Lei se divide em primeira e segunda tábua. A primeira, que prescreve o culto a Deus; a segunda, que prescreve o dever em relação ao próximo. A primeira abrange os quatro primeiros mandamentos, e a segunda, os seis últimos. Aqui, não me desviarei do tema se acrescentar aquilo que Maccovius, em suas dez Disputas, comentou anteriormente sobre cada um dos preceitos do Decálogo.

O PRIMEIRO MANDAMENTO

"Não terás outros deuses diante de mim."

Contra esse mandamento pecam primeiramente os Pontífices, que atribuem às criaturas o mesmo culto que se deve a Deus, como à Virgem Maria e a outros. E especialmente a Maria, mais do que aos demais, pois o que nas Sagradas Escrituras é atribuído a Cristo, eles transferem para ela. Em Gênesis 3:15, o que Deus prometeu a Adão — a semente que esmagaria a cabeça da serpente — eles transferem para Maria. Daí que a tradução da Vulgata diz: ipsa [a mulher] conteret caput serpentis “esmagará a cabeça da serpente”, e por essa mulher os Pontífices querem entender a Virgem Maria.

Mas no hebraico está escrito הוא “ele”, não הי “ela"— a mulher. Além disso, o verbo תשופנו ("esmagará") está acompanhado de um sufixo masculino, de modo que não pode se referir à mulher. Os tradutores da Septuaginta traduzem como ατός "autos" (ele), não ατή "auté" (ela).

Objeção: O que fez aquele que Maria gerou preservou nossa salvação e venceu Satanás. Pela mesma razão, diz-se que Eva matou Abel, porque gerou aquele que matou Abel, e que Olímpia, mãe de Alexandre, derrotou Dario em Arbela, porque gerou Alexandre.

Não somente igualam Maria a Cristo, mas também a colocam acima dele. Cassander, um célebre doutor de Colônia, na "Consulta sobre a Intercessão dos Santos", afirma: "Chegou ao ponto de que, mesmo Cristo, já reinando no céu, se submete à mãe, como em algumas igrejas se canta".

Ó Feliz Parturiente,

que expia nossos pecados,

ordena com o direito de mãe

ao Redentor.

Houve um tempo em que, quando essas palavras eram citadas do antigo Missal Parisiense, os adversários negavam que tal coisa estivesse escrita ou afirmavam que tinha sido inserida imprudentemente por alguns. Agora, no entanto, não há necessidade de tal desculpa ou suavização. O jesuíta Salazar atribui a Maria tal dignidade real que, comentando o Provérbios de Salomão, no capítulo 8, verso 16, escreve que Maria, com o direito materno, verdadeiramente goza de poder régio acima de Cristo. E, certamente, diz ele, a santíssima Virgem frequentemente utilizou esse direito e poder, mas especialmente o utiliza quando intercede por nós, o que Pedro Damião capturou numa oração muito eloquente: "Aproximas-te do tribunal dourado da divina severidade, não rogando, mas ordenando, Senhora, não Serva." Adiciona ao verso 29 que aquela mãe, sendo a mais amada por nós, e também a mais impositiva para com o próprio Juiz, perante quem é pleiteada a causa da nossa salvação, como disse São Boaventura no "Espelho": “Louvor a Deus, à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo," e assim frequentemente Barônio encerra seus tomos, concordando que a mãe deve ser preferida ao Filho. No cânone da Missa, Maria é claramente colocada acima de Cristo, pois, enquanto Cristo ordenou que a Santíssima Ceia fosse celebrada em memória de Si, e Paulo, em 1 Coríntios 11, diz: "Todas as vezes que comerdes deste pão, anunciais a morte do Senhor," o sacerdote que celebra a Missa declara que, em primeiro e principal lugar, celebra a memória da Virgem Maria, dizendo: "Comunicantes, e venerando primeiramente a gloriosa e sempre Virgem Maria," rebaixando Cristo a uma posição inferior. Eles também conferem a ela honras próprias de Deus. Vázquez, na terceira parte de Tomás, Disputatio 100, diz que Maria, devido à sua dignidade maternal, merece culto de "latria" (adoração), reservado somente a Deus. Além disso, todo o Saltério foi modificado, substituindo em todos os lugares o nome do Senhor pelo de Maria. Este Saltério, cujo autor é Boaventura, é amplamente difundido. E eles ensinam que o culto dos Salmos é um culto religioso, não diferente daquele que se deve somente a Deus, e ao conferirem-no a Maria, têm-na como um segundo Deus, em contradição ao primeiro mandamento do Decálogo.

Mas também este argumento contra essa interpretação é válido: Cristo discutiu com Satanás durante o tempo do Novo Testamento. Se, contudo, esse trecho se referisse apenas ao Antigo Testamento, Cristo não poderia tê-lo usado legitimamente, e não teria sido difícil para Satanás refutá-lo, dizendo que o trecho tinha valor apenas no tempo do Antigo Testamento, mas não no Novo. Além disso, Paulo, no tempo do Novo Testamento, menciona um ato reprovável dos Gálatas, em Gálatas 4, ao dizer que, por não conhecerem a Deus, serviam àqueles que por natureza não eram deuses. Portanto, não é permitido, nem mesmo sob o Novo Testamento, servir religiosamente àqueles que não são deuses por natureza. Consequentemente, este mandamento dado no Antigo Testamento, "Adorarás o Senhor teu Deus, e a Ele somente servirás", não foi abolido no Novo Testamento. E assim, é certo que os socinianos são idólatras por oferecerem culto divino a Cristo, a quem consideram uma criatura, seja ela grande ou pequena.

O SEGUNDO MANDAMENTO

"Não farás para ti imagem esculpida, nem qualquer semelhança do que está no céu acima, nem do que está na terra abaixo, nem do que está nas águas abaixo da terra. Não te inclinarás diante delas, nem as honrarás, nem as cultuarás."

Aqui, em primeiro lugar, pecam os Pontífices junto com os Luteranos, que juntam o segundo mandamento com o primeiro. E, assim, confundem o τ ν κα τ ποιν, não percebendo que o primeiro mandamento ensina quem deve ser cultuado como o verdadeiro Deus; e o segundo, de que maneira Ele deseja ser cultuado. Em seguida, completam os Dez Mandamentos, dividindo uma única e mesma sentença em duas partes. Finalmente, introduzem neste epítome uma tautologia inapropriada e, ao eliminar o segundo mandamento da primeira tábua, estabelecem a idolatria na Igreja. Em segundo lugar, pecam contra este mandamento os Luteranos, que introduzem imagens na Igreja. Esses dois grupos têm suas justificativas: uma delas é a seguinte: "Primeiro, dizem, devemos removê-las do coração dos homens, e depois, dos olhos dos homens." 2. Deus não proíbe totalmente que se façam imagens, mas apenas que se façam com o objetivo de serem adoradas. Esta canção começou a ser entoada no tempo de Lutero, ou seja, há cento e alguns anos, e ainda hoje a entoam; e, pergunto, quando finalmente removerão isso do coração dos ouvintes? Serão eternamente idólatras? Pois não há dúvida de que quem traz ídolos no coração é idólatra. Além disso, sua culpa é agravada pelo fato de que, enquanto constroem novos templos, cuidam para que neles sejam feitas imagens. Pois, se as imagens antigas não deveriam ser removidas dos templos antes de serem removidas dos corações, ao menos não deveriam ser importadas para templos recém-construídos. Pois, desse modo, mostram, ou melhor, demonstram abertamente, que não têm a intenção de remover as imagens dos templos. A desculpa deles, de que é necessário primeiro remover as imagens do coração dos ouvintes antes de removê-las dos templos, seria semelhante à desculpa de um príncipe que, advertido a proibir o adultério e o homicídio e a puni-los devidamente, dissesse: "É necessário primeiro extirpar isso das almas dos homens, e só depois proibir e punir os próprios atos."

Quanto à desculpa posterior, ela anula e invalida a anterior. Pois, se Deus não proibiu as imagens em si, mas apenas o seu propósito de culto, então elas são lícitas. Por que, então, seria necessário removê-las dos corações dos homens? O mandamento sobre esta questão soa de modo muito diferente, pois proíbe distintamente ambas as práticas. Primeiro, com estas palavras: "não farás para ti imagem de escultura nem qualquer semelhança do que há no céu acima, nem do que há na terra abaixo, nem do que há nas águas abaixo da terra". Segundo, com estas: "não te inclinarás diante delas, nem as servirás". Por que esses mandamentos são ordenados de forma distinta, a menos que Deus não quisesse nem que fossem feitas, nem que fossem cultuadas? Teria sido suficiente dizer: "não farás para ti imagem de escultura, para que a adores". A razão que Deus continuamente enfatiza sobre não querer ser pintado ou esculpido também prova isso, pois Ele afirma claramente que nenhuma imagem de Deus deve ser fabricada, como está em Deuteronômio, capítulo 4, versículo 15: "Guardem-se bem, pois vocês não viram nenhuma forma no dia em que o Senhor lhes falou em Horebe do meio do fogo. Para que não se corrompam, fazendo para si imagem esculpida na forma de qualquer figura: forma masculina ou feminina". E em Isaías, capítulo 40, versículo 18: "A quem, então, vocês compararão Deus? Que imagem vocês colocarão ao lado dele?" e no versículo 25: "A quem, então, vocês me assemelharão, para que eu seja comparado a ele? diz o Santo."

Em terceiro lugar, os Pontifícios também transgridem este mandamento, mas para que não sejam ouvidos como idólatras, recorrem a várias desculpas, sobre as quais falaremos mais adiante. Agora, apresentaremos a doutrina deles sobre esta questão, usando as próprias palavras deles. Assim, Tomás de Aquino, na terceira parte da Suma Teológica, questão 25, artigo 3, afirma: "Segue-se, portanto, que a mesma reverência seja dada à imagem de Cristo, e ao próprio Cristo, pois Cristo é adorado com adoração de latria, consequentemente, sua imagem deve ser adorada com adoração de latria." Caetano, em suas notas, ecoa essa ideia: "A imagem de Cristo, propriamente falando, deve ser adorada com adoração de latria." Bellarmine, no livro sobre imagens, capítulo 21, profere esta blasfêmia: "As imagens de Cristo e dos Santos devem ser veneradas, não apenas acidentalmente e impropriamente, mas também por si mesmas e propriamente, de modo que elas mesmas são o fim da veneração, consideradas em si mesmas, e não apenas como substitutas do original." Temos, portanto, os culpados confessos.

Vamos agora examinar os artifícios com os quais tentam escapar da acusação de idolatria; assim, eles desejam distinguir entre ídolo e imagem, ou simulacro: afirmam que veneram imagens, mas não ídolos, e, portanto, não podem ser chamados de idólatras. Alegam que o simulacro significa a imagem de algo realmente existente, enquanto o ídolo é a imagem de algo fictício, e, portanto, os ídolos e seu culto são proibidos, mas não os simulacros. Contudo, é claro que essa distinção é absurda. Primeiramente, pelo próprio etimológico, onde simulacro e ídolo não diferem mais que pão e ρτος; o primeiro é um termo latino, o segundo, grego, mas ambos designam a mesma coisa. Assim como a palavra forma vem de "formar", simulacro vem de "simular", segundo Lactâncio. Em segundo lugar, os intérpretes das Escrituras usam ambos os termos indistintamente. Pois, os tradutores da Septuaginta em todas as partes traduziram a palavra hebraica עצב por εδωλον (ídolo), e os latinos, por simulachrum. O uso misto de ambos os termos também aparece em bons autores; Cícero chama os átomos de imagens e ídolos dos deuses, Eurípides chama a sombra de Polidoro e a sombra de Aquiles de εδωλον, em Hércules. Portanto, ídolo não é apenas a imagem de algo fictício, mas também de algo real. Por outro lado, simulacro é usado para designar a imagem de algo fictício. Plínio chama o ídolo de Ceres, uma divindade fictícia, de simulacro, no livro 13, capítulo 4. E Vitrúvio chama a imagem, ou ídolo, de Diana, de simulacro. Portanto, é fictícia a distinção dos sofistas entre ídolo e simulacro.

No entanto, não há motivo para que os adversários levantem uma disputa sobre o vocábulo "imagem" ou "ídolo", pois o termo "semelhança" elimina qualquer dúvida. Por essa razão, no templo de Salomão não havia imagens de Abraão, nem de Moisés, nem de qualquer santo; os querubins, de fato, estavam afastados dos olhos do povo, não eram adorados, nem eram imagens de anjos, mas caracteres de ofício, assim como são pintadas as virtudes. E os adversários não podem dizer de qual anjo ou de quem eram essas imagens. Certamente, a Igreja Romana não toleraria uma imagem de Santos sem nome, νάνυμ.

Portanto, essa é uma evasiva inútil dos pontifícios, algo bem percebido por Gregório de Valência, que admite que de fato podem ser chamados de idólatras, mas distingue a idolatria em seu tratado "De Idololatria", livro 2, capítulo 7. E não se poderia supor, com absurdo, que São Pedro tenha insinuado que algum culto de imagens (a saber, imagens sagradas) fosse correto, uma vez que ele queria deter especificamente os fiéis dos cultos ilícitos de ídolos, conforme 1 Pedro 4:3. Pois, o que significaria especificar tão claramente os cultos de imagens, se ele realmente considerasse que nenhum culto de ídolos fosse lícito? Certamente, quando ouvimos que uma injustiça humana é condenada, costumamos entender que algum tipo de condenação humana possa ser justo. E, se você deseja afastar alguém da blasfêmia ou de outro crime, em toda e qualquer circunstância ilícita, não é necessário dizer que a blasfêmia ou o crime seja ilícito.

Gregório conclui que Pedro insinuou que alguma forma de idolatria era lícita, uma vez que ele desencoraja os fiéis de idolatrias ao adicionar a palavra "nefastas". Pois Pedro acrescentou isso porque a idolatria é o mais grave e atroz de todos os pecados, como tanto as Escrituras quanto os teólogos ensinam consensualmente. De Valência, no entanto, argumenta que, como os epítetos são usados às vezes não para amplificação, mas para distinção, e, portanto, não haveria necessidade de qualificar a idolatria como ilícita, a menos que houvesse alguma idolatria lícita.

Com esse mesmo raciocínio, poderia se inferir que algum adultério seria puro, pois, de outra forma, não haveria necessidade de ser especificado por Catulo, na elegia à cabeleira de Berenice: "Que se entregou ao adultério impuro." E que algum estupro poderia ser sagrado, pois, de outra forma, não haveria necessidade de Cícero condenar os nefandos estupros de Catilina em sua segunda Catilinária. E que algum crime poderia ser amável, pois, de outra forma, não haveria necessidade de Quintiliano, no livro 8, capítulo 6, afirmar: "Ó crime abominável!" E que alguns pecados poderiam ser piedosos, pois, de outra forma, não haveria necessidade de Enoque, o Judeu, profetizar o julgamento vindouro por todas as duras palavras que os pecadores ímpios falaram contra o Senhor.

O terceiro mandamento é: Não tomarás o nome de Senhor, teu Deus, em vão, pois o Senhor não deixará impune aquele que tomar o Seu nome em vão.

Contra esse mandamento, pecam primeiramente os Anabatistas, que negam que o juramento seja lícito aos cristãos sob o Novo Testamento. No entanto, esses são facilmente refutados pela Escritura, primeiramente pelos profetas, como em Isaías 45:23: "Diante de mim se dobrará todo joelho, e jurará toda língua." E em Jeremias 12:16: "E será que, se diligentemente aprenderem os caminhos do meu povo, e jurarem pelo meu nome: Vivo é o Senhor." Esses testemunhos se referem aos tempos do Novo Testamento. Além disso, santos homens, após a manifestação de Cristo, não ignoraram a prática, cujos exemplos também se encontram no Novo Testamento, além do próprio exemplo de Deus, que se encontra em Hebreus 6:16. Da mesma forma, Paulo jura em Romanos 1:9 e 2 Coríntios 1:23. A razão é permanente, conforme o apóstolo menciona em Hebreus 6:16, pois não é menos necessário agora do que foi outrora terminar controvérsias; e o apóstolo fala sobre o modo de resolvê-las, que era observado naquele tempo. Portanto, já que o juramento tem um bom propósito, a confirmação da verdade, a rejeição da mentira, a resolução de disputas, e a promoção da paz e tranquilidade entre os homens, por qual direito deveria ser eliminado do âmbito dos cristãos? Especialmente quando não apenas o objetivo é bom, mas também o princípio, pois o juramento é feito com base na estima que se tem pela infalibilidade divina. Não há dúvida, portanto, de que, se realizado com as circunstâncias legítimas, é algo bom e útil para o Estado e para a Igreja, seja para que os inocentes e injustamente difamados possam se purificar, seja para que outras controvérsias emergentes sejam resolvidas. E embora o juramento tenha sido instituído principalmente para nós, porque nossa fraqueza deu causa a ele, seja porque somos sujeitos à vaidade e à mentira, seja porque não facilmente damos crédito às palavras dos outros, ele é, consequentemente, relacionado à glória de Deus, de modo que, na sua própria execução, é um ato de religião, na medida em que juramos por aquilo que reverenciamos e amamos. Por isso, Deus, o maior, onisciente e justo, e que deseja punir os perjúrios, é tido em alta consideração quando se respeita o juramento exigido.

Aqueles que pensam de maneira contrária, são principalmente movidos pelas palavras de Cristo em Mateus 5:34 e Tiago 5:12. Há aqueles que respondem que o que foi dito por Cristo e repetido por Tiago não se refere ao juramento assertivo, mas sim aos eventos incertos das promessas, cujos exemplos são encontrados no apóstolo Paulo. Eles provam isso com base na oposição nas palavras de Cristo: "Ouvistes o que foi dito aos antigos: não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo: não jureis de modo algum." Aqui, cumprir os juramentos ao Senhor parece não ser outra coisa senão cumprir o que foi prometido. Eles também ponderam a razão que Tiago acrescenta, "para que não caiais em condenação," que traduzem como "para que não sejais achados falsos," pois este é o sentido que a palavra ποκρίσεως tem entre os helenistas, como aparece em Mateus 24:51. Mas estas e outras coisas que são apresentadas aqui não têm valor algum e são refutadas tanto pelos lugares das Escrituras, como no Salmo 15:4, quanto pelos exemplos, como em Gênesis 21:23-24; 24:3-9; 31:53. O argumento baseado na incerteza do evento (o qual também objetam), que afirma que não está em nosso poder realizar o que prometemos, colocando-nos assim em perigo de perjúrio caso juremos e não cumpramos, também não é válido. Pois é suficiente para evitar esse crime que, ao jurarmos ou prometermos, tenhamos firmemente em mente cumprir o que juramos. Se, posteriormente, formos impedidos não por nossa culpa, mas por necessidade natural, ou se compreendermos que é contra a vontade de Deus, então, aquele a quem juramos não deve exigir a execução do juramento, e nós, ao não o executar, não seremos culpados de perjúrio.

De outra forma, deve-se responder ao argumento extraído das palavras de Cristo: O objetivo, portanto, de toda a passagem é que todos os juramentos referentes a uma questão inútil e desnecessária, feitos de qualquer maneira, pecam contra o mandamento de Deus; e, por conseguinte, que a facilidade em jurar e a temeridade, onde não há nada que exija um juramento, são absolutamente proibidas. Portanto, o que se opõe a isso não foi a abolição da lei, como querem os anabatistas, ou a adição à lei, como querem os socinianos, mas a interpretação de duas corrupções dos fariseus, que falsamente ensinavam duas coisas contra o juramento: primeiro, que não era juramento, nem obrigava ao perjúrio, se alguém afirmasse algo sem usar explicitamente o nome de Deus, mas o nome de uma criatura, como o templo, o céu, ou a terra; e assim o próprio Cristo testifica em Mateus 23:16. O segundo ponto da falsa doutrina era que, no uso do juramento, não havia pecado a temer, a menos que, por falta de veracidade, fosse admitido o perjúrio. Pois acreditavam que as palavras de Levítico 19:12, "não perjurarás pelo meu nome", constituíam a explicação completa da lei do Decálogo, e que, portanto, apenas o perjúrio era proibido por essa lei; assim, se alguém jurasse levianamente, sem ser induzido por uma causa necessária, sobre uma questão verdadeira, não violaria o mandamento. Socinus tem a mesma opinião que os fariseus, e não admite que a lei tenha proibido algo além do perjúrio. Pois ele restringe o que é dito sobre "não tomar o nome de Deus em vão" à falsidade e à mentira. No entanto, ele corrompeu a lei de Levítico 12 e negligenciou ou não considerou a outra parte do mesmo preceito, como fazem todos os que negam que um juramento em vão sobre uma questão verdadeira seja proibido. Pois, após as palavras "não perjurarás", é acrescentado "não profanarás o nome do Senhor". Ora, o nome do Senhor é profanado sempre que é usado levianamente.

Assim se encerra a discussão sobre os anabatistas: agora trataremos dos papistas, que também infringem este mandamento ao insistirem que é lícito jurar pelas criaturas. Nós negamos essa posição, e nossas razões são as seguintes: 1. Deus ordenou que se jurasse apenas pelo Seu nome, e por nenhum outro, conforme Deuteronômio 6:13 e 10:20. Por isso, em Jeremias 5:7, são repreendidos aqueles que juram por aqueles que não são deuses. 2. Quando Deus descreve o juramento que deve ser prestado, em Jeremias 4:2, Ele diz: "Jura pelo Senhor, com verdade, justiça e retidão". 3. O próprio Deus define o ato de jurar como um culto a Ele, conforme Isaías 19:18; 8:1, e Oséias 4:15. Ora, o culto a Deus não deve ser atribuído a nenhuma criatura.

Objeta-se que quem jura pelas criaturas jura por Deus, e que, portanto, é lícito jurar pelas criaturas. O antecedente parece claro em Mateus 23:21. A consequência é certa, porque quem jura por Deus em uma causa grave e urgente não peca, e, portanto, os juramentos seriam lícitos nessas circunstâncias. Resposta: Na ação de jurar, diz-se que o nome de Deus é usado quando se menciona a criatura, por causa da própria ação, que pertence exclusivamente a Deus e a Ele se refere. Por isso, qualquer um que jure, mesmo sem mencionar explicitamente o nome de Deus, ao jurar, invoca a Deus, ainda que de maneira imprudente e inconsciente, já que Ele é sempre o fiscalizador e vingador dos juramentos. No entanto, não se segue daí que seja lícito jurar por uma criatura, nem se pode deduzir uma consequência sólida a partir desta declaração de Cristo, nem inferir que, se alguém jura por criaturas que têm alguma relação com Deus, e depois não cumpre o juramento, comete perjúrio, que aquele que jura por criaturas e cumpre o juramento realiza um culto aceitável a Deus ou não infringe o mandamento que nos obriga a jurar somente pelo nome de Deus. Isso porque não é válida a consequência da negação de algo, em razão de um efeito, para a afirmação do mesmo, em razão de outro.

O argumento dos papistas sofre de um vício semelhante, que, a partir do fato de que a injúria cometida contra uma imagem ou madeira não instituída por um mandamento de Deus, por parte de quem pretende desprezar o protótipo através do sinal, recai sobre o protótipo, concluem que prestar a mesma honra ao sinal, conforme a intenção daquele que a presta, é agradável a Deus. Mas essa consequência não é válida, porque os contrários não são atribuídos corretamente aos contrários, quando a contrariedade dos predicados não depende do próprio sujeito ao qual se opõem, mas de outra coisa. A honra não decorre da honra ao sinal, a menos que o sinal seja instituído por Deus e ordenado para tal honra, pois a intenção, que é suficiente para a injúria, não basta para a honra de Deus.

O TERCEIRO MANDAMENTO

"Lembra-te de santificar o dia de sábado"

A primeira questão entre os ortodoxos diz respeito à origem do sábado, que alguns atribuem à criação do mundo, enquanto outros à queda do maná. Nós subscrevemos à primeira opinião, movidos por estes argumentos: Gênesis 2, versículo 3: "Quando Deus completou, no sétimo dia, a obra que havia feito, descansou no sétimo dia e o santificou".

O segundo argumento que comprova isso é derivado de Hebreus 4, onde o apóstolo, ao descrever o repouso espiritual prometido por Deus e ao querer mostrar que este era distinto do sábado final, que os judeus observavam segundo a lei, bem como do repouso na terra de Canaã, para onde Josué conduziu o povo, diz que as palavras "Jurei na minha ira: 'Se entrarão no meu descanso'" foram pronunciadas por Davi, apesar das obras de Deus terem sido concluídas desde a fundação do mundo, citando assim este trecho de Gênesis 2. Pois ele disse, em algum lugar, a respeito do sétimo dia: "E Deus descansou no sétimo dia de todas as suas obras". Daqui se conclui que, segundo o apóstolo, o descanso do dia de sábado começou com a perfeição das obras de Deus, após o sexto dia.

O terceiro argumento é que os patriarcas, antes de Moisés, tinham tempos estabelecidos de piedade e religião em relação a Deus; portanto, é verossímil que tenham observado o sétimo dia para esse propósito. Mas qual dia eles escolheriam, senão aquele que Deus havia santificado? E parece também que, por essa razão, Deus posteriormente deu o sétimo dia para ser observado pelos israelitas, como aquele que, sendo um monumento do descanso divino (que Deus realizou nesse dia), parecia mais apto e apropriado para o culto a Ele.

Objeção: A benção divina, isto é, a benção, não convém ao dia sétimo desde a criação do mundo, mas é apropriada ao sétimo dia após a doação do maná, como indicado em Êxodo 16. Portanto, parece que não é apropriado afirmar que o dia sétimo é abençoado desde a criação. Pois a cessação da benção não é benção; mas a cessação do repouso divino era a partir da benção. Portanto, o fato de cessar a benção não implica que a benção esteja presente no dia sétimo. Resposta: Este argumento baseia-se em duas hipóteses falsas. Primeiramente, que o repouso divino seja medido de forma natural, já que, como Agostinho afirma, Deus sempre age e sempre descansa, age sem movimento e descansa na ação. Em segundo lugar, pressupõe que repouso e ação não podem coexistir, o que é falso, especialmente no caso do repouso sabático, tanto para os homens quanto para Deus. Pois os próprios judeus, embora estivessem estritamente obrigados a observar e descansar no sábado, ainda eram obrigados a louvar e abençoar a Deus. E abençoar é um ato de ação.

Passando à segunda questão sobre a moralidade do sábado, e primeiramente sobre se o sábado é um preceito cerimonial ou moral, subscrevemos a segunda opinião: o preceito de guardar o sábado está contido no Decálogo tanto quanto os outros preceitos; portanto, é tão moral quanto os demais. A razão da consequência é buscada na Epístola de Tiago 2:10: "Quem guarda toda a lei, mas tropeça em um ponto, é culpado de todos." Adiciona-se ainda o ensinamento de Cristo: "Nem um jota ou um til da lei passará."

Esse argumento é refutado por alguns que dizem que há certos aspectos no Decálogo que se referem de maneira especial aos judeus. Resposta: Os exemplos apresentados não sustentam o que prometem. Pois, primeiro, o Senhor Deus que tirou os israelitas da terra do Egito e a promessa adicionada ao quinto preceito, embora sejam de essência do Decálogo, não são de forma primária e formal, mas são substituídos por alguns acréscimos. Portanto, o argumento não é válido. Há alguma razão secundária de algum preceito que se aplica aos judeus; portanto, também a razão primária de outro preceito pode se aplicar apenas a eles. Segundo argumento: se for aceito que o sábado existiu desde o início do mundo, antes de qualquer noção cerimonial, não há razão para que, com a abolição das cerimônias, ele não permaneça intacto.

A terceira questão é: Se, por este preceito, é ordenado que um dos sete dias seja santificado? Afirmamos que sim, o que provamos com os seguintes argumentos: Primeiro, se pela força e analogia deste preceito não se conclui corretamente que um dia dos sete deve ser dedicado ao culto divino, então nenhum número específico de dias poderia ser limitado por qualquer preceito; o que é absurdo. O segundo argumento é baseado no número de seis dias concedidos para o trabalho, número que não seria completo a menos que fosse terminado pelo repouso e cessação de um sétimo dia. O terceiro argumento é extraído do exemplo dos Apóstolos e da Igreja Apostólica, que, no lugar do sábado, invariavelmente observaram o primeiro dia da semana. Ou, como preferimos dizer, observaram inalteravelmente o sábado, transferido do sétimo dia para o primeiro: Portanto, pela força deste preceito, um dia dos sete deveria ser observado. A premissa será suficientemente provada na questão seguinte. A consequência, dado o argumento, é sólida.

A quarta questão trata da instituição do Dia do Senhor. Argumentamos que o Dia do Senhor foi instituído por Cristo com base em três pontos: primeiro, na ressurreição de Cristo no primeiro dia da semana, em sua aparição aos discípulos, que estavam reunidos naquele dia, e na descida do Espírito Santo. Portanto, parece-nos correto deduzir que a causa da instituição desse dia é a ressurreição de Cristo no primeiro dia da semana, a própria instituição se dá posteriormente pela observação dos Apóstolos, e a sua bênção e santificação se manifestam de forma milagrosa com a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos nesse dia.

O segundo argumento afirma que, se Cristo não tivesse instituído o Dia do Senhor, haveria um intervalo em que os homens não seriam obrigados, por preceito divino, a consagrar qualquer dia ao culto divino. Isso ocorre porque o sétimo dia foi ab-rogado com a morte de Cristo, e os homens não estariam mais obrigados a observá-lo. Alguns respondem que os Apóstolos observaram o sétimo dia por um tempo, em consideração aos judeus. No entanto, questiona-se se o fizeram por dever. Certamente, se fosse por dever, aquele dia ainda deveria ser observado. Além disso, é falso que os Apóstolos observaram o sábado judaico; embora tivessem frequentemente sermões e debates nesse dia, aproveitando-se da presença dos judeus, isso não implica que observaram o sábado, assim como o fato de Paulo ter discutido no Areópago e em escolas pagãs não significa que ele adorava os deuses gentios ou observava suas festas.

O terceiro argumento baseia-se na denominação "Dia do Senhor". É chamado assim, mas não poderia ser, a menos que o Senhor o tivesse instituído, como ocorreu com a Ceia do Senhor e a Oração do Senhor. Alguns respondem que o dia poderia ser chamado de "Dia do Senhor" porque seria em comemoração ao Senhor, mesmo que não tenha sido instituído por Ele. No entanto, essa afirmação não é apoiada por nenhum argumento pelos adversários. E, de fato, enquanto a Igreja manteve a memória do nascimento e da ascensão de Cristo, esses dias não foram chamados de "Dias do Senhor". Além disso, afirmamos que os Apóstolos costumavam se reunir nesse dia para prestar culto a Deus, como se vê em 1 Coríntios 16:2, Atos 20, etc.

O QUINTO MANDAMENTO

"Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá."

Sob os nomes de pai e mãe, compreendem-se também o avô, a avó e outros ascendentes que são enumerados na linha ascendente, assim como sob o nome de filhos incluem-se os netos e todos aqueles que descendem de alguém. É aceito por todos os teólogos que também são abrangidos por este mandamento aqueles que exercem autoridade sobre nós ou que, de alguma forma, são superiores a nós, ou seja, aqueles que no estado doméstico são nossos tutores ou curadores, senhores ou senhoras; também aqueles que, no estado político, nos governam, como os magistrados políticos supremos e outros que, sob estes, estão constituídos de modo subordinado; no estado eclesiástico, os pastores, doutores e outros nossos guias; entre os quais também devem ser considerados nossos professores, aos quais se acrescentam os anciãos e outros que são de idade avançada, ou que possuem alguma dignidade que os recomenda a nós, como se vê em Gênesis 20, onde Abimeleque é chamado de "meu pai, o rei"; assim como José é chamado de "pai" por Faraó, em Gênesis 45:8; Micaías disse ao levita: "Sê para mim como um pai e sacerdote," Juízes 17:10; Davi chama Saul, seu sogro, de pai, 1 Samuel 24:11; Eliseu chama Elias de pai, 2 Reis 2:12; os servos de Naamã o chamam de pai, 2 Reis 5:13; o rei de Israel chama o profeta de pai, 2 Reis 6:21; Paulo se refere aos judeus, em razão da idade, como pais e irmãos, Atos 22:1; e a si mesmo também como pai, 1 Coríntios 4:15. Nesse sentido, a Escritura menciona os "filhos dos profetas."

Até aqui tratamos do objeto; segue-se agora o mandamento, que consiste nesta palavra: "Honra." Este termo abrange todos os deveres que se devem aos pais, ou àqueles que ocupam o lugar de pais. Embora a palavra "honra", estritamente tomada, refira-se à devida estima da eminência e prerrogativa dos pais, bem como a um julgamento correto sobre sua pessoa e função no intelecto, também inclui a observância e o respeito devidos a eles, a obediência, o auxílio e o socorro nas suas necessidades. Isso deve ser feito de coração, com palavras e com ações, pois no intelecto deve preceder o julgamento, como já dissemos; na vontade deve seguir-se a inclinação para amá-los e reverenciá-los conforme Deus. Daí que o Apóstolo recomenda a obediência em Colossenses 3:20.

No entanto, pergunta-se por que o Apóstolo chama este mandamento de o primeiro com promessa, uma vez que o segundo mandamento claramente contém a promessa de misericórdia por mil gerações daqueles que amam a Deus e guardam Seus mandamentos? Respondemos que é chamado assim porque é o primeiro com uma promessa especial, enquanto a promessa que foi acrescentada ao segundo mandamento é comum a todos os mandamentos, como se depreende das palavras "àqueles que me amam e guardam meus mandamentos". No entanto, a promessa do quinto mandamento é específica quanto à longevidade, o que é altamente adequado à natureza da matéria em questão. É adequado e justo que aquele que honra aqueles de quem recebeu a vida temporal, veja sua própria vida temporal prolongada.

Objeção: Contudo, como a vida humana é cheia de tribulações (Jó 7; Gn 47.9; 1Co 15.31) e está sujeita a várias dificuldades e desventuras, não parece que aqui se prometa algo feliz ou bem-aventurado, mas sim calamitoso e infeliz. Resposta: Não se promete apenas uma longa duração desta vida e desta luz, mas também a prosperidade a ela associada, conforme Deuteronômio 5:16. Além disso, a própria vida humana, se considerada em si mesma, é o mais belo dom de Deus. A razão é que esta vida terrena é o primeiro passo para alcançar a imortalidade; aqueles que nunca existiram ou viveram não podem ser felizes ou tornar-se felizes. Pois aquilo que não existe não tem qualidades; e o que se diz sobre essas tribulações, elas não surgem da vida em si, mas do pecado (Gênesis 3). Assim, as tribulações da vida são acidentais; e o que é acidental não deve ser considerado como a natureza da coisa em si.

Objeção: Mas não acontece a todos os filhos piedosos e obedientes a seus pais viverem por muito tempo; pois alguns são chamados por Deus desta vida ainda jovens. Resposta: É verdade que, às vezes, são retirados desta vida para que não se corrompam ou não experimentem algum mal terrível, ou porque o mundo é indigno deles; contudo, o Senhor permanece fiel ao cumprimento de Sua promessa, assim como alguém que presenteia com cem alqueires de terra, mesmo que tivesse prometido apenas um único.

Além disso, pergunta-se sobre este mandamento: A autoridade paterna é contrária à liberdade? Resposta: Negamos, porque a autoridade dos pais não é tirânica, nem a condição dos filhos é servil, mas livre; daí o motivo pelo qual os filhos eram chamados de "liberi" entre os latinos, para distingui-los dos servos. É verdade que, assim como o servo está sob a autoridade de seu senhor, também os filhos estão sob a autoridade de seus pais; assim como entre os servos há manumissão, para que sejam libertados de seu senhor, também há emancipação dos filhos, para que sejam livres de seus pais. Embora haja algumas semelhanças entre os dois, há uma grande diferença na natureza do poder. Aristóteles, no livro 1 da "Política", capítulo final, afirma que o poder conjugal deve ser semelhante ao poder político, o poder tirânico ao dos senhores, e o poder paterno ao do rei. Pois os pais devem governar seus filhos não apenas com autoridade, idade e prudência, mas também com benevolência e beneficência, refletindo assim o modelo de um bom rei; e tal poder não é contrário à liberdade, mas elimina a licença desenfreada e une as necessidades humanas por um vínculo adequado.

Pergunta-se: Podem os filhos, contra a vontade dos pais, subtrair-se à sua autoridade? Resposta: Paulo, em Colossenses 3:20, exorta os filhos a obedecerem aos pais em tudo, mas, na Epístola aos Efésios 6:1, ele limita essa obediência com as palavras "no Senhor", ou seja, na medida em que o Senhor permite, naquilo em que a obediência dos filhos é agradável a Deus. Pois é verdade que a autoridade inferior não deve ser obedecida contra o mandamento da autoridade superior. Esta limitação (como anotamos aqui de passagem), mal compreendida e pessimamente explicada, foi outrora abusada pelos fariseus, como ensina Cristo em Mateus 15:4-5. Sob o pretexto de piedade e votos, eles negavam os deveres devidos aos pais; pois havia neles uma certa inclinação inata para pronunciar votos ímpios, de modo que era comum entre eles este voto, pelo qual se comprometiam sob juramento a não concederem qualquer benefício a uma pessoa em particular. Com estas palavras proferidas, juravam solenemente: "Pelo presente ou pela oferta" (pois assim aprenderam). "Se alguém jurar pelo altar, nada é; mas quem jurar pelo presente ou oferta sobre ele, está obrigado" (Mateus 23:18). Ou seja, está vinculado a cumprir o que jurou. Ora, os escribas e fariseus ensinavam que, se alguém pronunciasse este voto solene, isto é, dissesse ao pai ou à mãe: "Pelo presente, não te beneficiarei em nada", de forma alguma poderia fazer-lhes algum bem ou honrá-los conforme o mandamento de Deus. No entanto, é sobre isso que Cristo os repreende em Mateus 15: "Por que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa das suas tradições? Pois Deus ordenou, dizendo: ‘Honra teu pai e tua mãe’ e ‘quem amaldiçoar o pai ou a mãe será punido com a morte’. Mas vocês dizem que, se alguém disser ao pai ou à mãe: ‘Qualquer benefício que eu possa te dar é uma oferta dedicada a Deus’, ele não precisará honrar seu pai ou sua mãe. E assim vocês invalidam o mandamento de Deus por causa da sua tradição" (versos 4, 5, 6). Esta tradição dos fariseus não se tornou tão prevalente, o que obscureceu o discurso de Cristo sobre ela, resultando em várias interpretações divergentes entre os estudiosos; porém, esta interpretação que aqui aplicamos é a mais adequada ao contexto e à intenção de Cristo. Mas retornemos do desvio ao tema proposto.

O segundo argumento, que toca os pontifícios (que ensinam que, após a puberdade [pubertatis], os filhos podem obrigar-se por voto à religião sem o consentimento dos pais), é o seguinte: Ninguém pode oferecer a Deus o que pertence a outrem, contra a vontade daquele a quem pertence; pois tal ato é abominável a Deus. Ora, quem pronuncia tal voto oferece a Deus o que pertence aos pais, contra a vontade dos pais, pois retira o direito dos pais ao sujeitar-se a outra autoridade; portanto, faz algo que ninguém deve fazer e que é extremamente desagradável a Deus.

O terceiro argumento. Na lei de Deus, em Números 30:3, o voto de uma mulher que havia feito um voto na casa de seu pai, enquanto ainda estava em sua juventude, era anulado por Deus se o pai o contradissesse. No entanto, nunca houve um voto que permitisse aos filhos assumir uma condição de vida por causa da religião que os libertasse da autoridade dos pais; portanto, se não era permitido fazer o mínimo voto contra a vontade dos pais, como poderia ser permitido fazer um voto que diretamente contrariasse o direito dos pais?

Quarto argumento. O que é temerário e condenável fazer sem consultar os pais, é muito mais ímpio fazer contra a vontade dos pais. Ora, ninguém em sã consciência jamais julgou lícito a um jovem de dezesseis anos ou a uma moça de quinze anos deliberar, e até mesmo decidir, sobre o tipo de vida a ser escolhido sem o conhecimento e o conselho dos pais. O que dizer, então, se tais jovens decidirem, contra a vontade dos pais, sobre um tipo de vida que, de alguma forma, os afasta do dever de obedecer e servir aos pais?

O SEXTO MANDAMENTO

"Não matarás"

Este mandamento nada mais é do que uma repetição da lei em Gênesis 9:6, que diz: "Quem derramar o sangue de um homem, pelo homem o seu sangue será derramado". Agem contra este mandamento aqueles que, de qualquer maneira, matam o próximo por meio de um ato externo, seja de que forma for, seja com a mão, seja com uma espada, seja com um bastão, etc. Por isso, também se deve julgar como homicida quem deu causa eficaz à morte, como aqueles que impedem a concepção, que expulsam o feto do útero, que provocam o aborto com poções ou outros meios, que agridem mulheres grávidas, e até aqueles que, imprudentemente e sem conhecimento da arte médica, prescrevem remédios que causam dano.

Agora, vamos explicar algumas questões que costumam ser levantadas em torno deste mandamento e que são de maior importância.

A primeira será: é permitido a alguém causar a própria morte em alguma circunstância? Negamos isso. 1. Ninguém deve privar-se da vida sem a permissão de Deus. Aquilo que Deus proíbe em sua lei não deve ser feito. Deus proíbe o suicídio em sua lei. Portanto, não deve ser feito. A menor premissa é provada: porque não se acrescenta "o próximo", como na lei sobre falso testemunho. 2. Mesmo que fosse acrescentado, o argumento ainda valeria, pois aquilo que não devemos causar de mal ao próximo, também não devemos causar a nós mesmos. A razão é que devemos amar o próximo como a nós mesmos: portanto, o que devemos ao próximo, devemos a nós mesmos, e vice-versa, de modo que a razão é equivalente.

Objeção: o exemplo de Sansão, que matou a si mesmo junto com os inimigos, ao derrubar o templo sobre eles. Resposta: Isso foi feito por um instinto singular; por isso, Agostinho diz: "O Espírito Santo ordenou secretamente isso, pois por meio dele realizava milagres".

Segunda questão: em algum caso é permitido a um particular matar alguém? Resposta: é permitido nesse caso, quando defendemos nossos entes queridos de um ataque mortal ou quando defendemos o próprio corpo contra a violência, de modo que matamos o agressor por uma necessidade inevitável, porque não podemos fugir ou defender a vida de outra forma. Mas isso deve ser feito sob estas condições: 1. Que a força seja repentina, de modo que não possamos escapar de outra maneira. 2. Que a força seja evidente, e não possamos proteger a vida de outra forma senão ferindo ou matando. 3. Que se observe a moderação na defesa. Para isso, é necessário, 1. Que a defesa seja imediata, pois se for feita após algum intervalo, é vingança, não defesa. 2. Que se tenha apenas a intenção de se defender, não por impaciência ou desejo de vingança. 3. Que haja proporção nos instrumentos, para que não se atire imediatamente com um canhão contra alguém que o ataca sem colocar em risco iminente sua vida. 4. Que não matemos imediatamente, se pudermos escapar infligindo apenas um ferimento. 5. Que a intenção primária não seja matar o próximo, mas apenas defender o próprio corpo. Se, portanto, em tal caso e observadas essas limitações, o agressor for morto, o que se deve pensar de tal ato? Resposta: O ato é lícito, pois é permitido pela Escritura, em Êxodo 22:2.

A terceira questão é: é lícito para um magistrado cristão aplicar a pena capital a criminosos? Os adversários negam isso, alegando que, sob o Evangelho, Cristo aboliu ou pelo menos mitigou muito as penas dos malfeitores. O que poderia ser mais absurdo de se dizer ou pensar? Que Cristo teria trazido impunidade e imunidade dos castigos para os malfeitores? O que mais seria isso senão conceder licença para pecar e liberar as rédeas para a desenfreada cobiça humana em cometer malefícios? Isso significaria que aquele que veio para destruir as obras do Diabo estaria, na verdade, ampliando seu reino, e que aquele cujo julgamento veio ao mundo e que expulsou o príncipe deste século estaria causando completa confusão? Como, no entanto, os pecados aumentam e se multiplicam com o advento do Evangelho e a maior compreensão das coisas e a abundante efusão do Espírito, certamente é justo que as penas também aumentem, em vez de diminuírem (muito menos serem abolidas) com a vinda de Cristo. O Evangelho não é contrário à Lei. Daí que Moisés e Elias, o legislador e o restaurador, na transfiguração, dialogam com o Salvador como se estivessem em plena concordância, e que Paulo confirma em Romanos 3:21-22 que a justificação pela fé é testemunhada pela Lei, e em 1 Timóteo 1:10-11 pronuncia que os crimes proibidos pela Lei são contrários à sã doutrina do Evangelho.

O primeiro argumento em favor desta posição tiramos de Romanos 13:3. Pois, depois de falar sobre o magistrado civil, Paulo acrescenta: "Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela". Smalcius, em sua resposta a Frantzius, argumenta contra isso da seguinte forma: "O trecho de Romanos 13 não apoia a causa de Frantzius, pois, em primeiro lugar, é certo que Paulo fala de um magistrado infiel, ao qual não cabia ao apóstolo prescrever leis. No entanto, porque tal magistrado tinha suas próprias leis políticas, segundo as quais governava seus súditos, Paulo admoesta os fiéis a não resistirem a essas leis enquanto políticas, argumentando, entre outras razões, que o magistrado poderia punir os desobedientes." Mas não te saíras assim tão facilmente, Smalcius. Primeiro, perguntaremos a ti de onde, no Novo Testamento, foi dito que um magistrado fiel tenha executado essas penas? Em segundo lugar, perguntaremos por que Paulo chama esse magistrado de ministro de Deus e não um qualquer, mas aquele estabelecido por ordenação divina? Terceiro, Deus estabelece e constitui algum poder sem lhe prescrever certas leis? Por isso, algumas coisas feitas por esse poder são justas; outras, na medida em que se desviam das leis divinas, são injustas. Perguntaremos em quarto lugar: se isso não contraria a Deus, não seríamos obrigados a acatar esses julgamentos? Pois, se esses julgamentos desagradam a Deus, por que não os rejeitamos? Por que não aplicamos aqui Atos 5:29: "Importa obedecer antes a Deus do que aos homens"?

Tu dirás que essa situação é semelhante à quando se cai nas mãos de ladrões, onde se deve suportar os danos que eles infligem, sem protestar. Respondemos: Mas é permitido ao menos acusar os ladrões de latrocínio, como algo que Deus abomina; será que te será permitido acusar o magistrado e seus julgamentos da mesma forma? Se afirmas isso, então essas palavras não podem permanecer, "por causa da consciência" (v. 5). Pois aquilo que concedemos ao ladrão, o fazemos sob coerção, não por causa da consciência, mas pela preservação da vida, fora de qualquer julgamento de consciência. Portanto, quer o magistrado ordene coisas justas ou injustas, deves sujeitar-te a ele, pois é isso que ele quer de ti. Mas se dizes, como deves dizer, que, se ele te ordena algo injusto (por exemplo, dar falso testemunho contra alguém, ou eliminar alguém), tu não deves obedecer; não estarás, portanto, admitindo que as outras coisas nas quais deves sujeitar-te a ele são justas? E se isso for verdade, ousarias afirmar que Deus proíbe as coisas justas?

O segundo argumento que apresentamos sobre esta questão é tirado do mesmo capítulo, versículo 4: "Se, porém, fizeres o mal, teme, pois não é à toa que ele traz a espada. Ele é ministro de Deus, vingador para castigar o que pratica o mal". Daqui, se ele traz a espada, é para usá-la. E o uso da espada, como as palavras de Cristo deixam claro em Mateus 26:52, é específico: "Quem com a espada ferir, com a espada será morto". Smalcius responde a isso dizendo: "Este trecho não ensina de que maneira os culpados podem e devem ser punidos; pois o magistrado pode trazer a espada mesmo sem impor as penas mais severas. O fato de portar a espada significa apenas que o magistrado tem o poder de punir, mas não indica de que modo deve punir; caso contrário, seguir-se-ia que em todos os delitos a pena mais severa deveria ser aplicada, já que o fato de portar a espada é dado pelo apóstolo como uma razão pela qual se deve obedecer ao magistrado em todas as coisas. No entanto, de que modo o magistrado cristão deve punir, isso deve ser aprendido de outra parte, a saber, de toda a analogia do Novo Testamento. Além disso, um cristão pode temer o magistrado, mesmo que este não aplique todos os tipos de punições, inclusive as mais severas." Reconheço que o termo "espada" aqui é tomado como qualquer coerção legítima, mas ao mesmo tempo nego que essa coerção exclua aquela que é propriamente a da espada. Minhas razões são as seguintes: Primeiro, porque com que direito os magistrados fiéis exerceram as penas capitais, senão por que lhes foi dado o poder da espada para isso? Segundo, os adversários não poderão apresentar outro argumento em sua defesa, exceto este, que isso contraria a perfeição ordenada no Novo Testamento e o amor ao próximo. Mas ambos esses argumentos são sem fundamento. Pois a perfeição é a mesma tanto no Velho como no Novo Testamento, e o amor é o mesmo, como se pode ver no resumo da lei, que é o mesmo tanto no Velho como no Novo Testamento: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo". No entanto, com esse resumo da lei estando presente no Velho Testamento, era permitido punir com a espada os culpados; e, se isso não será permitido mantendo-se o resumo no Novo Testamento, então os adversários devem explicar.

O terceiro argumento que apresentamos é baseado nas palavras de Cristo em Mateus 26:52: “Todos, disse ele, que lançarem mão da espada, pela espada perecerão.” O mesmo ocorre após a ascensão de Cristo, como se vê em Apocalipse 13:10: “Se alguém deve ser morto à espada, é necessário que ele seja morto à espada.” Responde Smalcius ao primeiro lugar: mas, como já ensinamos em outro lugar, neste texto Cristo apenas prediz o que acontecerá, se alguém tomar a espada; não ensina o que pode ou deve acontecer segundo o direito. Da mesma forma, hoje alguém que nega que é permitido matar pode ser dissuadido dessa leveza com tal argumento, que o destino que ele enfrenta é conforme a justiça: pois é comparado de tal maneira que aqueles que tomam armas perecem por armas. Portanto, não é especificado quem deve causar a morte, aquele que toma a espada, ou seja, o Magistrado, como afirma Frantzius; contudo, alguém pode perecer pela espada sem qualquer pena. Assim argumenta Smalcius. Mas, em contraste, se a questão é se a predicação se aplica aqui, então a predicação no outro lugar deve ser igualmente aplicável, como em Gênesis 9:6: “Quem derramar o sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado.” Da mesma forma, em Êxodo 21:12: “Quem ferir alguém de modo que morra, morrerá.

Smalcius afirma que é inadequado dizer que Cristo prediz o que acontecerá a tais pessoas, e não o que deve ocorrer conforme a justiça. Pois, se Cristo censura um ato conforme a lei de Deus, ele também indica o que a lei de Deus prevê para esse ato. Quanto ao lugar em Apocalipse 13:10, Smalcius diz que se pode confirmar a lei sobre o castigo capital por parte do Magistrado, já que ninguém é especificamente nomeado como quem deve executar a pena com a espada. É incerto entender que isso se refere ao Magistrado, pois muitos matam com a espada sem necessariamente serem punidos, ou até mesmo podem ser punidos pelo Magistrado; aqui, no entanto, a afirmação é sobre o que não pode ser de outra forma, ao dizer que é necessário que ele seja morto à espada.

A resposta é que, se não é nomeado quem deve derramar o sangue de quem derrama sangue, ele é nomeado em outro lugar, nomeadamente em Romanos 13:4, uma autoridade superior, que não leva a espada sem causa. As Escrituras são escritas com método histórico, onde não se coloca em um lugar todas as coisas que pertencem a um assunto a ser completamente descrito, mas sim, as coisas são reunidas de vários lugares em um só corpo, que se referem à declaração de um assunto específico. O mesmo se aplica ao texto de Êxodo 21:12, que não nomeia especificamente quem deve executar a pena ao homicida; mas isso é contido em outros lugares, como em Números 35 e Deuteronômio 17, por analogia.

Quanto ao argumento sobre a palavra "é necessário", se é que você se opõe, deve ser considerado que se refere à segunda acepção, que implica o dever do Magistrado, e, portanto, é um dever do Magistrado matar tais pessoas com a espada. Assim, se aceitarmos a segunda interpretação, sua resposta, Smalcius, falha. O maior silogismo é provado pela utilização geral da palavra “é necessário”, pois ela nunca é encontrada exceto em uma das três significações possíveis. Portanto, deve-se entender “é necessário” na segunda acepção, e, portanto, é um dever do Magistrado executar tal pena com a espada.

Adicione a isso o texto de Mateus 15, onde Cristo expressamente aprova a lei de Moisés, que determinava que quem maldissesse pai ou mãe fosse punido com pena capital.

A quarta questão é: é permitido a um cristão fazer guerra? Socinus nega isso. Assim, ele afirma em seu livro de epístolas, pág. 498: “Sobre a expedição desse tipo de guerra geral, eu acreditaria que, se não houver nenhum outro modo de evitar a destruição ou a perda de bens, ou de satisfazer a necessidade de pagar dinheiro, com o qual alguém poderia ser contratado para substituir-te, sem violar os preceitos de Cristo, então é permitido armar-se e partir, desde que se abstenha de matar ou mutilar membros de outros. De outro modo, eu não vejo como o perigo, que não ameaça o que está partindo, pode ser evitado sem violar a obediência a Cristo.” No entanto, a afirmação é verdadeira, como se mostrará a partir dos argumentos seguintes.

O argumento é o seguinte: em relação a isso, é tirado do Antigo Testamento, onde são lidos muitos exemplos de guerras que foram ordenadas ou aprovadas por Deus ao Magistrado. Portanto, é permitido ao Magistrado cristão fazer guerra. Os adversários respondem que há uma diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, pois as leis e preceitos do Antigo Testamento foram ou ab-rogados ou corrigidos por Cristo. Respondemos que isso é vã e deriva da falsa hipótese de que uma certa perfeição maior é prescrita no Novo Testamento do que no Antigo. Pois, quer olhe para o primeiro ou para o segundo tabuleiro, a mesma perfeição era prescrita; o que é evidente pelo resumo da lei, que é o mesmo tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

O segundo argumento que apresentamos sobre este assunto é baseado em Lucas 3:14, onde João ordena aos soldados que vivam contentes com seus salários e não extorquem ninguém, o que claramente não teria sido dito se ele condenasse as guerras. Smalcius responde a Frantzius com as seguintes palavras: "Que relação têm as palavras de João Batista conosco, para que possamos derivar delas uma norma de vida? João Batista não era a luz que devia nos iluminar; Cristo é a luz verdadeira que ilumina todo homem. João estava apenas começando a pregar o Evangelho, pregando apenas arrependimento, e isso apenas em parte, sem ensinar o que exatamente deveria ser seguido pelos cristãos em relação a coisas completamente novas. Quem é menor no reino dos céus é maior que João Batista, ou seja: cada cristão possui mais conhecimento da vontade divina do que João Batista, assim como João era maior que todos os profetas, porque tinha mais conhecimento da vontade divina do que todos os profetas anteriores." Smalcius, no entanto, está errado, pois baseia seu raciocínio em várias suposições inadequadas. Primeiro, ele pressupõe erroneamente que o Evangelho não era conhecido antes de Cristo. Mas, se não era conhecido, como Paulo, ao ensinar o Evangelho, afirma que ele não ensinou nada além de Moisés e dos Profetas? (Atos 26).

A segunda hipótese inadequada é que João não era aquela luz que ilumina todo homem que vem ao mundo; portanto, nada do que ele ensinou nos diz respeito. Se isso fosse verdade, então Moisés, os Profetas, os Apóstolos e os Evangelistas seriam igualmente irrelevantes, pois nenhum deles era essa luz. Portanto, Smalcius está errado, conforme Lucas 1:17, que diz: "Ele irá diante do Senhor com o espírito e poder de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos e os desobedientes à prudência dos justos, para preparar para o Senhor um povo bem disposto." Veja, Smalcius, não eram as instruções de João que se dirigiam àqueles que davam nome a Cristo? Se assim era, então também se dirigiam a nós. Além disso, se as coisas que João ensinava não dizem respeito a nós, então ou nada diz respeito a nós, ou apenas algumas coisas. Mas não se pode dizer que nada diz respeito a nós. Pois, se nada, então também não se aplicaria a isso. Por exemplo, "Arrependei-vos, porque o reino dos céus está próximo" (Mateus 3:2), e "Produzi frutos dignos de arrependimento", e muitos outros semelhantes são lidos neste e em outros capítulos das Escrituras. Se algumas coisas se aplicam, Smalcius deveria ter adicionado uma nota indicando quais se aplicam e quais não se aplicam, já que, ao não fazê-lo, você mostra que usa esse tipo de resposta não para o que deveria, mas para evitar dizer qualquer coisa relevante. Pois o que ele adiciona, de que no Novo Testamento cada cristão possui mais conhecimento do que João teve, assim como João era maior do que todos os profetas, é tão inadequado quanto nas alegações anteriores. Pois como pode um cristão ter mais conhecimento da vontade de Deus do que João, se João Batista teve mais desse mesmo conhecimento do que os profetas? Ou, se João Batista teve mais conhecimento do que os profetas, então qualquer cristão deve ter mais conhecimento do que os profetas. Isso é o que se prova, pois, se cada cristão possui mais conhecimento do que os profetas, então essas passagens das Escrituras, como Efésios 2:20, "edificados sobre o fundamento dos Apóstolos e Profetas", são vãs. Pois, como pode alguém confiar em escritos se ele sabe algo melhor? Você dirá: Os profetas estão unidos aos apóstolos, e não é dito que eles estão sozinhos, mas sim em conjunto com os apóstolos. Respondo que isso é desfeito pelo fato de que os apóstolos tinham o que ensinar a partir dos profetas (At 17:26). Além disso, este lugar não se sustenta, como está em 2 Pedro 1:19: "Temos também a palavra profética mais segura, à qual fazeis bem se atendendo, como a uma luz que brilha em lugar escuro." Pois, por que devemos prestar atenção a essas coisas que nós superamos? (Se devemos acreditar em Smalcius.) Isso seria o mesmo que ordenar a uma pessoa instruída que preste atenção às primeiras letras do alfabeto, que são apresentadas às crianças. Isso mostra qual é o lugar da Velha Aliança. Pois, como devem ser explicadas as palavras: "Quem é menor no reino dos céus, é maior do que João Batista"? Deixo de lado, já que isso está suficientemente estabelecido em nossos escritos mais eruditos; para mim, é suficiente ter exposto a falácia da explicação de Smalcius.

Agora passemos ao terceiro argumento. Este buscamos na Epístola aos Romanos, capítulo 13, onde se afirma que o Magistrado é ministro de Deus, vingador para aplicar a ira àquele que pratica o mal. Pois, se o Príncipe deve punir com a espada um ladrão privado, ele também deve, pela espada, vingar-se do inimigo público, que ameaça a religião, os bens, a paz, a saúde e a castidade de seus súditos. Smalcius responde a Frantzius a este respeito, no folio 395, da seguinte maneira: "Já decidimos antes que isso foi dito sobre o Magistrado em geral ou, mais precisamente, sobre o infiel. Este, portanto, que não está sob o jugo de Cristo, poderia de fato vingar com guerras a injúria infligida a si mesmo e a seus súditos, mas isso não implica que seja lícito ao Magistrado cristão fazer guerra. Embora esse texto não fale de uma vingança pública a ser empreendida contra um inimigo. O que isso teria a ver com o fato de que o Magistrado deve ser temido, por que pode fazer guerra? A fala se refere propriamente à vingança privada que o Magistrado pode exercer contra seus súditos." O Magistrado, especialmente o infiel, pode exercer essa vingança quando quiser; mas a situação da guerra é bem diferente. Pois, quer o Magistrado faça guerra ou não, ele é sempre ministro de Deus, vingador para aplicar a ira àquele que pratica o mal. Respondemos: isso é falso, que se referisse apenas ao Magistrado infiel. Considere, Smalcius, que Moisés, Josué, Davi e outros reis muito piedosos foram magistrados infiéis? Você poderia argumentar que a situação no Antigo Testamento era diferente. Mas isso precisa ser demonstrado, pois não se pode provar verdadeiramente que isso fosse eterno, a menos que se parta do princípio, ou seja, a menos que você recorra à sua hipótese inadequada de que uma perfeição maior é exigida no Novo Testamento em comparação com o Antigo Testamento, ou um modo de vida mais rigoroso. Segundo, o que ele responde: "Não se fala, diz ele, de uma vingança pública a ser empreendida contra o inimigo: o que isso teria a ver?" Na verdade, teria tudo a ver. Pois se pode perguntar a você, Smalcius: Acaso Abraão, Davi e outros piedosos tomaram vingança contra inimigos, reis, e príncipes estrangeiros que atacaram seus súditos, ou por outra razão? Se você nega, será facilmente refutado pelas Escrituras Sagradas, onde ocorrem muitos exemplos desse fato. Se você afirma, dirá com que direito fizeram isso, se o fizeram legitimamente, a menos que a espada lhes tenha sido dada para vingança. Quanto ao que diz: "Pode ser um ministro para a ira, mesmo que não faça guerra", não leva em conta o fato de que ali se faz menção à espada. Não há razão para pensar que a palavra "espada" deva ser tomada em sentido figurado. Pois isso seria refutado pela prática do Antigo Testamento, bem como pelos preceitos dados sobre este assunto, que podem ser vistos ali.

O quarto argumento com o qual provamos isso é o seguinte: Deus ajuda as guerras justas, o que de modo algum faria se a guerra fosse ilícita, pois o mal pode ser permitido, mas não se daria auxílio para realizá-lo. Em Gênesis 14, a Abraão, depois que derrotou quatro reis com apenas 318 de seus servos, foi dito por Melquisedeque: "Bendito seja o Deus forte e elevado, que entregou os teus inimigos em tuas mãos." Em Êxodo 17, Deus, em resposta às orações de Moisés, deu vitória aos israelitas contra Amaleque. Em Josué 10, quando Josué lutava, o sol parou, e o Senhor fez chover grandes pedras do céu, e Deus matou mais com pedras de granizo do que os filhos de Israel com lanças e espadas. Concluímos o seguinte: a quem foi divinamente confiada a responsabilidade e a proteção dos súditos, a este é concedido repelir os inimigos, pois, de outro modo, ele não pode proteger os súditos. Mas ao Magistrado foi divinamente confiada essa responsabilidade. Portanto, também lhe é concedido repelir os inimigos. Mas os adversários caíram na insensatez de pensar que as guerras simplesmente não podem ser compatíveis com a doutrina do Evangelho. Nisso, pressupõem tolamente que no Antigo Testamento não havia a doutrina do Evangelho, o que refutamos com este único argumento: Paulo anunciou perfeitamente todo o conselho de Deus, e também a doutrina do Evangelho, Atos 20:27. Mas Paulo não ensinou nada além de Moisés e dos Profetas, Atos 26:22. E certamente o Evangelho não elimina as políticas, nem as Repúblicas, mas antes as estabelece e fortalece; de fato, os meios ordenados por Deus para estabelecer e manter a ordem são aprovados. Daí a palavra de Cristo em Mateus 22: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus." E também a palavra de Paulo em Romanos 13: "Por isso também pagais tributos, porque são ministros de Deus dedicados a este serviço." Portanto, pagai a todos o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra. Isso também é comprovado pelo testemunho de Paulo, que em 1 Coríntios 9:7 escreve: "Quem milita alguma vez à sua própria custa?" Com essa frase, ele não obscurece a aprovação do serviço militar, mas sugere que os soldados sejam devidamente pagos. Isso é igualmente comprovado pelo exemplo do centurião, cuja fé foi elogiada por Cristo em Mateus 8:10. Ele permaneceu centurião e comandante de soldados mesmo após se tornar cristão, e não se lê que ele tenha mudado espontaneamente de vida, nem que Cristo tenha sugerido que o fizesse. Mas outro exemplo, o de Cornélio, também comprova isso, pois, embora vivesse em estado militar e fosse comandante de uma coorte italiana, ainda assim podia ser um homem religioso e temente a Deus com toda a sua casa, fazendo muitas esmolas ao povo e sempre orando a Deus, tanto que suas orações subiram à presença de Deus, Atos 10:2. Mas como os adversários poderiam argumentar que primeiro deveria ser discutido se é lícito para um cristão ocupar um cargo de Magistrado, antes de demonstrar quais são os deveres desse cargo.

Portanto, em quinto lugar, pergunta-se: É permitido a um cristão exercer o cargo de magistrado? A resposta ortodoxa é afirmativa. Apresentamos os seguintes argumentos para sustentar essa posição.

Primeiro, porque as Sagradas Escrituras dignificam o magistrado com os mais honrosos elogios, tanto no Antigo como no Novo Testamento. No Antigo Testamento, são chamados "deuses" (Salmo 82:6 e 1 Samuel 2:25), título que Cristo confirmou em João 10:35, quando disse: "Se ele os chama de deuses, a quem a palavra de Deus foi dirigida".

O segundo argumento é que se deseja que a maior reverência seja prestada a eles, conforme está em Eclesiastes 10:20, onde se diz: "Não amaldiçoes o rei, nem mesmo em pensamento, nem no teu quarto amaldiçoes o rico, porque as aves dos céus levarão a voz, e o que tem asas anunciará a palavra". Esse ponto é corroborado no Novo Testamento por Judas em sua Epístola, versículo 8, quando condena aqueles que rejeitam o domínio e insultam as dignidades. Do mesmo modo, Pedro se opõe àqueles que desprezam o domínio (mesmo que fosse pagão) de seus tempos e que, audaciosos e autossuficientes, não temem insultar as dignidades.

O terceiro argumento é que somos exortados a oferecer preces pelos magistrados. Assim, Jeremias 29:7 diz: "Procurai a paz da cidade para a qual vos fiz deportar, e orai por ela ao Senhor, porque na paz dela vós tereis paz". Aqui, somos orientados a orar pelo magistrado pagão babilônico; semelhantemente, o apóstolo Paulo exorta, em 1 Timóteo 2:1-2, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens e por todos os que estão em posição eminente, para que possamos levar uma vida tranquila e pacífica, com toda piedade e honestidade.

O quarto argumento é que Cristo expressamente ordena que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de Deus (Mateus 22:21), ou seja, ele deseja que o tributo seja pago. Paulo ensina a mesma coisa em Romanos 13:7, quando diz: "Dai a cada um o que lhe é devido: tributo a quem tributo, imposto a quem imposto, temor a quem temor, honra a quem honra".

O quinto argumento que apresentamos provém do fato de que os magistrados são chamados de servos de Deus. Em 2 Crônicas 19:6, Josafá exorta seus juízes a que vejam bem o que julgam, pois, diz ele, "não julgais para o homem, mas para o Senhor, e ele estará convosco no julgamento". Como se dissesse que os juízes julgam em lugar de Deus. De modo semelhante, em Romanos 13, o magistrado é chamado de "ministro de Deus para o bem", e "ministro de Deus, vingador para castigar aquele que pratica o mal".

O sexto argumento que apresentamos é extraído das leis. Se as leis foram divinamente promulgadas e seu exercício prescrito, então certamente se segue necessariamente que deve haver magistrados. O primeiro ponto é verdadeiro, e, portanto, também o segundo. Sobre a veracidade da premissa, ninguém que leia Moisés duvida, o que é também reiterado em Romanos 3:4. A consequência é evidente por si só. Pois quem, pergunto eu, poderá exigir o cumprimento das leis, se não o magistrado? A este, todas as coisas divinamente foram confiadas, como fica claro em vários trechos, inclusive em Romanos 13.

Pode-se argumentar que as leis mosaicas foram abolidas ou corrigidas por Cristo, de modo que, embora anteriormente o magistrado devesse punir com severidade, agora isso não é mais permitido. Respondemos que isso é falso: o Novo Testamento também deseja isso, como aparece em Romanos 13, assim como em Apocalipse 13:10 e Mateus 26:52. Daí se deduz claramente que Mateus 5 não se refere à Lei de Moisés, mas às corrupções farisaicas.

Se a vingança não é proibida ao magistrado, então o argumento de que a Lei de Moisés exige vingança enquanto Cristo a proíbe é inválido. Isso levaria à conclusão errônea de que a Lei de Moisés e a de Cristo prescrevem ordens contraditórias, o que, por conseguinte, significaria que não são a mesma e única lei.

Cristo não proíbe a vingança pública, mas trata da vingança privada; caso contrário, ele se contradiz em Mateus 26:52.

Pode-se dizer que, nos lugares citados, se afirma que ocorrerá que quem levar ao cativeiro será levado ao cativeiro, e quem derramar sangue, terá seu sangue derramado. Mas isso não significa que seja ordenado por Deus. Do mesmo modo, a Escritura diz que é necessário que escândalos aconteçam, mas não se pode concluir que os escândalos ocorram por ordem de Deus. Respondemos: aqui a situação é completamente diferente. Deus nunca é autor de escândalos; mas ele é o autor do mal que é infligido aos ímpios, como o Espírito Santo ensina amplamente, por exemplo, em Isaías 10. Daí também a passagem de Amós 3: "Não há mal na cidade que o Senhor não tenha feito". Se ele é o autor, então essas ações são boas; por que, então, se poderia dizer que são proibidas ao magistrado cristão, especialmente se eram permitidas no Antigo Testamento? Deus quis que os homens do Novo Testamento fossem melhores do que os do Antigo Testamento? E que razão, pergunto eu, pode ser dada para isso? Além disso, o magistrado é expressamente chamado de instrumento de Deus, e ele mesmo é quem lhe confere a espada para punir os maus e recompensar os bons (Romanos 13).

Agora, vamos às objeções. Primeiramente, afirma-se contra o magistrado que foi Ninrode quem primeiro instaurou a monarquia, e a Escritura parece condená-lo por isso. Além disso, Deus declarou estar descontente com o fato de os israelitas, imitando as nações, terem escolhido um rei para si, como registrado em 1 Samuel 8. Isso parece indicar que o ofício de magistrado desagrada a Deus. Respondemos: 1. Isso poderia talvez concluir que a monarquia, ou seja, a forma de governo que é a monarquia, desagrada a Deus, mas não que todo tipo de governo, e assim todo magistrado, desagrada. Pois também inferimos com certeza que a ordem política foi estabelecida por Deus no próprio paraíso, o que pode ser deduzido do fato de que os primogênitos eram colocados acima dos outros irmãos. Veja, por exemplo, Gênesis 27:31. E certamente, antes que os israelitas escolhessem um rei, não lhes faltavam magistrados, como se pode ver no livro dos Juízes. Segundo, respondemos: embora Nimrod tenha instaurado a monarquia e, assim, aspirado ao domínio sobre todos os outros magistrados então existentes no mundo; embora os israelitas finalmente tenham escolhido um rei imitando as nações, Deus mesmo aprovou essa ordem superior de magistrado político quando Cristo confirmou a preeminência de César em Mateus 22, e o apóstolo Paulo apelou do juiz inferior a César em Atos 25, e ele também deseja que sejam feitas preces até mesmo pelos reis.

É levantada uma segunda objeção: Como pode o magistrado derivar sua origem de Deus, quando Deus expressamente afirma em 1 Samuel 8 que a intenção do rei será tomar os filhos dos súditos e fazer deles seus servos? Além disso, que ele tomará seus bens e os entregará aos seus ministros? Pode-se, então, dizer que Deus é o autor de uma ordem que age dessa maneira? Isso parece absurdo. Respondemos: 1. Não se trata aqui de qualquer magistrado, mas especificamente do rei. Em segundo lugar, Piscator, em seus comentários sobre este trecho, responde: "A conduta do rei, como já mencionado no capítulo 2, versículo 13 (em hebraico, משפט [juízo]), continuará dessa forma. Pois aqui não se descreve o direito legítimo do rei, mas um direito usurpado. Porque, se fosse permitido aos reis agir dessa maneira pelo direito divino, Deus não teria punido Acabe por tomar à força a vinha de Nabote, e Acabe teria exercido esse direito legalmente ao tomar a vinha de Nabote pela força, ao invés de pedir que ele a vendesse". Veja 1 Reis 21. Ademais, o termo hebraico também tem essa significação em outros contextos, como em 1 Samuel 27:11, onde se fala das ações de Davi enquanto estava em Ziclague, dizendo: "Assim fez Davi, e assim foi o seu costume durante todos os dias que habitou no campo dos filisteus".

Sexta questão: O duelo é em algum caso lícito? Respondemos: Se for lícito em algum caso, será apenas neste caso, quando, no contexto de um exército, para evitar o perigo de perder toda a tropa, a sorte de todos seja colocada no risco de dois combatentes. Portanto, se o príncipe estiver conduzindo uma guerra justa e temer, com razão, ser derrotado, a menos que a guerra se converta em duelo, acreditamos que, neste caso, será lícito ao príncipe não apenas aceitar o duelo, mas também oferecê-lo e provocá-lo.

O SÉTIMO MANDAMENTO

“Não cometerás adultério”

O adultério ocorre de três maneiras: 1. Quando uma pessoa casada mantém relações com uma pessoa solteira; 2. Quando uma pessoa solteira mantém relações com uma pessoa casada; 3. Quando duas pessoas casadas mantêm relações entre si, sendo que o adultério é sempre um pecado grave, veementemente condenado nas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, como em Gênesis 39,7 e Levítico 20,10. No entanto, é certo que, entre essas três formas de adultério, a última é a mais grave, e a segunda é mais grave que a primeira, devido à implicação de uma prole ilegítima.

Os juristas entendem o termo "estupro" como a coabitação de um homem casado com uma mulher livre, e consideram todo adultério a partir da mulher, não do homem; nossos teólogos, porém, com base na palavra de Deus, tomam o termo em um sentido mais amplo. Com efeito, eles ensinam que, por essa proibição, toda impureza é condenada; pois, sendo diversas as espécies desse pecado, umas mais graves que outras, e dado que a Lei é perfeita, proibindo todos os pecados e recomendando todas as virtudes, deve-se concluir que todas as formas de luxúria estão incluídas sob alguma parte da Lei, e não há outra parte que possa abarcar essas transgressões, senão a do sétimo mandamento. Por isso, Paulo as reúne em uma única categoria em Gálatas 5,16, onde, ao listar as obras da carne, menciona fornicação, impureza, luxúria e adultério.

Em relação a este mandamento, as seguintes questões são frequentemente levantadas:

Primeira questão: Pode a simples fornicação ser desculpada como pecado? Responde-se que as Escrituras condenam expressamente a fornicação; no Antigo Testamento, temos a passagem em Deuteronômio 22.20-21, que fala sobre a jovem que não foi encontrada virgem, devendo ela ser levada para fora da casa de seu pai e apedrejada, pois cometeu um ato infame em Israel, ao se prostituir na casa de seu pai; e em Deuteronômio 23.17, onde se diz que não deve haver prostituta entre as filhas de Israel. No Novo Testamento, em 1 Coríntios 6.18, lemos que os fornicadores e adúlteros não herdarão o Reino de Deus, e logo depois é dito: "Tomarei eu os membros de Cristo e farei deles membros de uma prostituta?"

Segunda questão: É permitido a uma pessoa contrair matrimônio com várias outras, ou seja, é a poligamia lícita? Responde-se que não é lícito a um cristão ter várias esposas ao mesmo tempo. 1. Porque as Escrituras Sagradas proíbem, em Gênesis 2.24, um texto que é aprovado e explicado pelo próprio Cristo em Mateus 19.4-6. 2. Porque o homem não tem poder sobre seu próprio corpo, mas a mulher tem; e vice-versa, conforme 1 Coríntios 7.4. Portanto, como os cônjuges não têm poder sobre si mesmos, não podem conceder esse poder a outros. 3. Porque o amor conjugal, tal como Deus ordena, não pode existir entre várias pessoas, conforme Efésios 5.25 e 28. Quanto ao exemplo dos Patriarcas, que tiveram muitas esposas, ou que adicionaram concubinas às suas esposas, como Abraão fez com Quetura, Jacó com Lia e Raquel, e Salomão que teve mais de trezentas, responde-se que os Patriarcas pecaram gravemente nesse aspecto, pois, uma vez que Deus estabeleceu o número de cônjuges no matrimônio, como está em Gênesis 2, qualquer pessoa que ultrapasse esse número viola o casamento.

Terceira questão: Devem ser tolerados bordéis? Responde-se que as palavras do Apóstolo em 1 Coríntios 6 são claras: fornicadores e adúlteros não herdarão o Reino de Deus. A isso se acrescenta a afirmação do Apóstolo em Hebreus 13.4: Deus julgará os fornicadores e adúlteros. Alguns podem argumentar que a prostituição é permitida para evitar males maiores, como o adultério. Responde-se que isso pressupõe que possa haver um mal maior do que a transgressão contra Deus e sua Lei, contrária tanto à lei quanto à permissão divina. Afirmamos, com Paulo, que não se deve fazer o mal para que venham bens: deve-se obedecer à lei divina e deixar os resultados nas mãos de Deus. Aliás, quais seriam esses males que seriam evitados pela licença da prostituição? Certamente, em regiões e cidades onde não há bordéis e as prostitutas são severamente controladas, são raras as prostitutas; mas, onde os bordéis são permitidos, a chama da luxúria arde intensamente, pois a natureza da luxúria é crescer com a licença, como o fogo que é sufocado em um espaço restrito, mas que, ao ser ventilado em ar livre, se reacende e queima ainda mais.

Quarta questão: O adultério justifica o divórcio, como Cristo ensina em Mateus 5.32? E a deserção, como Paulo ensina em 1 Coríntios 7.15? E também a impotência? Responde-se que o divórcio, tomado em sentido amplo, pode ser distinguido em real e nominal; o real, por sua vez, em voluntário e involuntário. O divórcio voluntário ocorre quando a parte inocente deseja e solicita o divórcio da parte culpada; esse tipo de divórcio ocorre por causa de adultério, como Cristo menciona em Mateus 5.32, e é chamado de divórcio. O divórcio involuntário ocorre quando a parte inocente é abandonada pela outra, e isso contra sua vontade, sem que tenha dado qualquer motivo suficiente; Paulo fala sobre esse tipo de divórcio em 1 Coríntios 7. Já o divórcio nominal pode ser considerado quando um eunuco, que já possuía essa condição antes do casamento, é separado ao ser descoberta a causa, pois entre tais pessoas nunca houve um casamento real, mas apenas em nome. Por isso, tal divórcio não deve ser considerado um divórcio.

OITAVO MANDAMENTO

“Não furtarás”

Furto é toda usurpação ilícita de uma coisa alheia. Daqui se conclui que nem tudo deve ser comum. A razão é que, caso tudo fosse comum, não haveria possibilidade de cometer furto, nem seria necessário um mandamento que proibisse o furto. Ademais, não se pode negar que, nas Escrituras Sagradas, nas leis e nos exemplos dos Santos Padres, são aprovados contratos de compra e venda, dos quais resulta a distinção de propriedades, pois, se tudo fosse comum, tais contratos não seriam necessários. Portanto, aqueles que pensam o contrário não podem evitar outra via a não ser dizer que o Antigo Testamento não se aplica a nós, o que é verdadeiro em alguns aspectos que pertenciam à antiga pedagogia; contudo, é falso no que se refere ao direito natural e ao direito das gentes. Nenhum deles foi abolido pelo Evangelho. Isso se confirma pelo fato de que, após a ressurreição de Cristo, os Apóstolos propuseram regras para as relações entre senhores e servos, e Paulo, em 1 Coríntios 7, não proíbe as compras, mas apenas exorta para que os que compram estejam dispostos como se não possuíssem. E, em 1 Tessalonicenses 4, ordena: "Que ninguém oprima ou defraude seu irmão em qualquer assunto," advertência que seria supérflua se tudo fosse comum. A Escritura do Novo Testamento em toda parte recomenda a esmola. No entanto, não haveria quem recebesse esmola se tudo fosse comum, nem quem pudesse dar, pois deve ser dada de bens próprios; ninguém deve ser generoso com o que é alheio. Assim, todos os trechos que tratam de coletas confirmam a propriedade distinta das coisas e dos domínios. Acrescem-se os muitos exemplos dos Santos em ambos os Testamentos, que possuíam bens próprios. Sobre o Antigo Testamento não há dúvidas. No Novo Testamento, há menção de Tabita, uma mulher rica e generosa; Lídia, vendedora de púrpura; Filipe, o diácono, que recebeu o Apóstolo Paulo em sua casa; Filemom, que possuía Onésimo; e outros. A escravidão, por outro lado, pareceria mais contrária à lei natural do que a propriedade de bens, especialmente porque em Cristo não há Senhor nem Servo, e o Servo fiel é irmão. Contudo, a servidão não é por isso abolida, como se confirma nas Epístolas dos Apóstolos e nos exemplos dos piedosos.

Pergunta-se ainda se alguma vez pode-se apropriar de um bem alheio, sem cometer o crime de furto, contra a vontade do dono. Essa questão diz respeito principalmente aos pobres, que, sem posses próprias, dependem de algo para sustentar sua vida, parecendo poderem ser desculpados se furtarem o que lhes é necessário para a sustentação da vida. Mas a lei de Deus não faz distinção entre os gêneros, sexo, idade ou condição das pessoas, proibindo o furto igualmente a todos, homens e mulheres, púberes e impúberes, magistrados e súditos, ricos e pobres. No entanto, se coloca um caso em que muitos não consideram o pobre como pecador se ele furtar algo para sua subsistência, a saber, se estiver em extrema necessidade e em perigo evidente de morte, sem outra forma de socorrer-se. Assim, Tomás de Aquino considera que, nesse caso, não se trata da apropriação de um bem alheio, mas de algo próprio, pois a lei positiva, que estabeleceu a distinção e a propriedade dos bens, quando induz à iniquidade e contraria uma lei superior, perde sua validade. A lei superior, no entanto, é aquela que ordena os bens terrenos para a sustentação dos homens. Portanto, se, ao observar a lei sobre a distinção dos bens, o homem fosse levado à morte ou à prática do mal, como no caso da lei de restituição de depósito que induz à iniquidade, se observada quando alguém retoma a espada depositada com a intenção de matar a si mesmo ou a outro.

Além disso, a respeito desse mandamento, pergunta-se: Qual a pena deve ser imposta aos ladrões? Resposta: A lei divina não impõe a pena capital para o furto, a menos que haja alguma circunstância agravante, seja de lugar, tempo ou da própria coisa furtada. No entanto, o plágio era punido com a pena capital, conforme Êxodo 21:16. Privar um homem de sua liberdade, que é mais do que metade da vida, e reduzi-lo à miserável condição de servo, pouco difere de um homicídio. O sacrilégio e o furto com violência também eram crimes capitais, conforme Josué 7:11,25 e Êxodo 22:2. Esses furtos são chamados compostos, enquanto o primeiro é chamado simples.

Como também se pode cometer furto ao conceder um empréstimo, é oportuno aqui discutir a questão: É lícito cobrar juros ou não? Resposta: Devem-se distinguir os tipos de juros. Existem juros compensatórios e juros lucrativos. Os juros compensatórios são certamente lícitos. Se, por exemplo, alguém utilizar o dinheiro que emprestei para comprar uma propriedade da qual recebe uma renda anual ou obtém um lucro significativo, enquanto eu fico sem o meu dinheiro, sem receber qualquer rendimento até que seja devolvido, e o outro, com o meu prejuízo, beneficia-se do lucro, isso certamente seria contrário à caridade, à justiça natural, à gratidão devida e, portanto, à própria lei divina. No entanto, os juros lucrativos são quase sempre proibidos. São aqueles cobrados quando se empresta dinheiro a um pobre com a expectativa de obter lucro. Deus proíbe cobrar juros e qualquer acréscimo sobre o principal de um pobre que, por necessidade urgente, é forçado a tomar dinheiro emprestado para sustentar a si e sua família. Isso não apenas contraria a caridade, mas também a própria natureza. Aquele que exige juros de um pobre age como inimigo, pois, muitas vezes, devido à extrema necessidade e miséria do devedor, deve-se até mesmo perdoar o próprio principal, quanto mais exigir algum acréscimo. Assim, tudo o que se exige além do principal de um pobre é furto. Por isso, Neemias se opôs severamente ao fato de que o povo de Deus, tendo esgotado seus recursos e tomado dinheiro emprestado de ricos, fosse onerado por juros e agravado com dívidas. Ele, portanto, proibiu os juros, e com sua autoridade fez com que as dívidas fossem perdoadas e os penhores fossem devolvidos gratuitamente. Ele mesmo não exigiu o alimento e sustento que era devido ao governador, mas renunciou ao seu direito ao ver que o povo estava oprimido pela pobreza, conforme Neemias 5. E a isso também se refere a declaração de Cristo em Lucas 6: "Emprestai, sem nada esperar em troca." Contudo, essas palavras não proíbem cobrar de volta um empréstimo ou que aqueles que o tomaram emprestado o devolvam, pois isso não seria um empréstimo, mas uma doação. Cristo não quer que se espere qualquer acréscimo ou aumento do que foi emprestado ao pobre; na verdade, Ele deseja que o empréstimo seja concedido àqueles de quem, por causa da pobreza, não se pode esperar nem mesmo a devolução do principal. E Ele ao mesmo tempo condena aqueles que, sob o pretexto de caridade, se esforçam para saciar sua insaciável avareza, dando empréstimos sob tais condições de penhor, hipotecas e juros que mais oneram os pobres, exercendo usura sobre usura, incluindo o principal na dívida caso os juros não sejam pagos estritamente, merecendo ser chamados de ladrões, e não de benfeitores, pois, sob o pretexto de amizade e caridade, devoram as casas, terras e fortunas dos pobres, comprando-os por um par de sapatos, como diz a Escritura em Amós. Deus, contudo, proíbe severamente em Sua lei que, se não houver esperança de lucro, sejamos cruéis com os pobres, endurecendo nossos corações e fechando a mão contra o irmão necessitado, acrescentando ainda a promessa de Sua bênção, que será abundantemente derramada sobre nós por esse ato de caridade.

O NONO MANDAMENTO

"Não dirás falso testemunho"

Toda mentira é abominável a Deus, conforme o Sl 5.7 e Pv 6.17, e é algo que costuma ser severamente punido por Ele, como está em Pv 19.5,9.

Alguns afirmam que a mentira oficiosa [mendacium aliqui, literalmente significando alguma mentira] não é pecado, definindo-a como aquela que não prejudica ninguém, mas beneficia alguém. No entanto, isso não é permitido, pois prejudica quem mente; de modo singular, lesa a majestade de Deus, que é o autor e amante da verdade, a ponto de não poder mentir. Ele imprimiu no homem a imagem de Sua veracidade para ser preservada e nunca concede, sob qualquer dispensa, o poder de mentir. Além disso, não se deve fazer o mal para que daí venha o bem, ou seja, não se deve pecar para que algum bem provenha, seja para si ou para o próximo; do mal não advém o bem, exceto acidentalmente.

Ironias, fábulas, brincadeiras, narrações de eventos fictícios, e similares, que alguns chamam de mentiras jocosas, não são mentiras, pois não são testemunhos; e testemunhos não são, pois não confirmam a autoridade daquele que fala.

Nem todo aquele que não diz a verdade mente. Pode-se não mentir mesmo se não disser a verdade, como no caso em que alguém acredita ser verdadeiro o que é falso e afirma aquilo como verdadeiro; nesse caso, diz algo falso, mas não mente. Da mesma forma, alguém pode dizer a verdade e, ainda assim, mentir, por exemplo, se alguém acredita que algo verdadeiro é falso e, no entanto, afirma que é verdadeiro; pois a mentira é a dissonância do discurso com a mente; dizer o falso é a conformidade com a mente, mas dissonância com a realidade.

Simulação e dissimulação, seja em atos ou palavras, não constituem mentira, a menos que, por sua natureza ou por um determinado instituto, possuam a força e o uso da palavra, como em 1Sm 20.20-22, ou Mt 26.49, porque esses tipos de atos e sinais não verbais não têm uma significação certa e determinada, de modo que possam ter a força de um testemunho. Portanto, tal simulação é lícita. Isso é confirmado pelo exemplo de Cristo; bem como pelo de Josué, em Josué 8.5-6, e de Salomão, em 1 Reis 3.24,25. Até mesmo Deus fingiu querer que Isaac fosse sacrificado a Ele, o que, entretanto, nunca decretou que fosse realizado. No entanto, a simulação se torna ilícita quando, pela razão do fim ou do modo, entra em conflito com a religião, a justiça ou a caridade.

Pergunta-se aqui sobre a licitude da equivocação jesuítica. Os jesuítas afirmam que é lícita, especialmente quando se lida com tiranos injustos ou ladrões. Nós, no entanto, estabelecemos o contrário; dizemos, em tais casos, que ou não se deve responder, ou, se respondermos, deve-se dar mais importância à verdade do que à própria vida ou à de outrem. Se isso na prática for difícil e raramente se encontrar alguém que não recorra à mentira se puder, a mentira, ainda assim, deve ser reconhecida como tal, e devemos nos arrepender desse pecado, se a fraqueza nos levar a isso. Caso contrário, com razão é louvado por Agostinho aquele firme Bispo de Tagaste, tanto por seu nome quanto por sua natureza, no capítulo 13 do livro "De mendacio," dirigido a Consentio. Pois, quando lhe foi perguntado por um homem, enviado pelo imperador através de seus oficiais, sobre o paradeiro de alguém que ele ocultava diligentemente, tanto quanto podia, respondeu aos inquiridores que não podia mentir nem trair a pessoa, e, tendo suportado muitas torturas corporais (pois os imperadores ainda não eram cristãos), manteve-se firme em sua posição.

Além disso, são apresentados muitos argumentos que militam contra a equivocação; aqui mencionaremos alguns. A palavra de Deus repreende aqueles que falam de paz com a boca, mas em seus corações planejam ciladas, como em Jeremias 9:8. Devem ser repudiados os subterfúgios vergonhosos de quem anda na astúcia, e é ordenado que nos recomendemos na manifestação da verdade, não apenas diante de Deus, mas também perante a consciência de todos os homens, como em 2 Coríntios 4:2. As equivocações jesuíticas, portanto, devem ser repudiadas e completamente rejeitadas, pois elas emboscam e não manifestam sua verdade. Outro argumento, da Escritura, diz que "o fim de toda controvérsia entre homens, que não podem penetrar na mente uns dos outros, é a confirmação por juramento," Hebreus 6:16. Consequentemente, onde não se exige juramento, a afirmação sincera "sim, sim" ou a negação "não, não," como em Tiago 5, versículo 12, deve bastar. Se houver suspeita de equivocação, as disputas se multiplicam, em vez de se resolverem, uma vez que nada se revela que permita a qualquer uma das partes inferir se a outra age de boa-fé ou não. Portanto, essa equivocação jesuítica não só perturba as relações humanas, mas também frustra o conselho de Deus sobre a resolução de litígios.

Enquanto o que equivoca, equivoca [dum æquivocans æquivocat]; ou ajusta sua resposta (se for interrogado) ao que o inquiridor deseja ouvir, ou não; se o faz, quando pronuncia algo diferente da realidade, mente; se não o faz, não apenas mente, mas também dissimula e brinca. Essa taciturnidade, pela qual alguém não diz a verdade quando a justiça ou a caridade o exigem, participa da natureza da mentira. Quando nem a justiça nem a caridade requerem o testemunho, então, sem pecado, a verdade ou parte dela pode ser ocultada, como em Jeremias 38. Também é lícito, às vezes, assegurar a verdade e proferir aquelas palavras das quais, com probabilidade, sabemos que os ouvintes tirarão conclusões errôneas, como em Atos 23.6-9. Isso, no entanto, não é mentir ou testemunhar falsamente, mas apenas oferecer ao outro a ocasião de se enganar, não para cometer pecado, mas para evitá-lo.

Costuma-se perguntar em relação ao nono preceito: Deve-se manter a palavra dada aos hereges? Os pontífices negam. A Escritura, porém, sugere o contrário. Pois Deus deseja que a palavra seja mantida com os gentios e pagãos; daí que Jacó, em Gênesis 49, detesta o ato dos seus filhos, que violaram fraudulentamente o pacto feito com os siquemitas e os mataram cruelmente, depois de os enganarem. "Simeão e Levi," diz ele, "são instrumentos de violência em suas convenções: minha alma não entre em seu conselho, minha honra não se associe à sua assembleia, pois, em sua ira, mataram homens, e, em seu capricho, mutilaram bois." Os descendentes de Saul também pagaram com a morte pelo pecado que ele cometeu ao quebrar a promessa feita por Josué e Israel aos gibeonitas; e pagaram, digo, com a morte, e isso por ordem de Deus. Veja 2 Samuel, capítulo 21.

O DÉCIMO MANDAMENTO

“Não cobiçarás”

Aqueles que dividem este mandamento da cobiça em dois, para que um seja sobre a cobiça da casa e o outro sobre a cobiça da esposa e outros aspectos relacionados, falham nisso por três razões: 1. Eles se afastam completamente da razão. 2. Eles são forçados a apagar ou pelo menos converter o segundo mandamento da primeira tábua em uma adição supérflua, para que o número de dez mandamentos pareça ser mantido; ou, o que é evidente em muitos deles, obscurecendo o significado do segundo mandamento, para que possam removê-lo de si mesmos e de suas superstições, eles se veem obrigados a mutilar o décimo mandamento. 3. Eles não podem definir com certeza qual é o nono e qual é o décimo mandamento, pois na repetição da lei, em Deuteronômio 5:21, a cobiça da esposa é mencionada antes da cobiça da casa. Embora o Senhor tenha dito duas vezes "não cobiçarás", isso não significa que haja dois mandamentos, mas um só. Da mesma forma, se alguém dissesse "não matarás pai, irmão, mãe; não matarás servo ou livre", isso não criaria dois mandamentos sobre o não matar, mas um só.

Embora homicídio, roubo e falso testemunho tenham diferentes objetos, não existem múltiplos mandamentos para cada um deles, mas apenas um; da mesma forma aqui, especialmente quando, no final desta lei, é acrescentada uma cláusula geral que mostra claramente que o objetivo dessas palavras sobre a cobiça é ordenar os desejos humanos em relação às coisas humanas.

Não é tautologia quando uma palavra é repetida de forma útil ou necessária. Como esta é uma instrução destinada ao povo, era próprio da sabedoria divina esclarecer ou confirmar certos mandamentos por meio de uma exposição ou sanção, de modo que, onde fosse mais necessário, a boca da licenciosidade e da negligência humanas fosse fechada; e como neste caso vários objetos de cobiça foram mencionados, era também importante que o povo aprendesse que aquela expressão "não cobiçarás" deveria ser repetida para todos aqueles objetos; o que o legislador ensinou com um exemplo, ele ensinou cada um a suprir nos demais. Contudo, por "cobiça" não se entende a força e a capacidade de desejar e apetecer, que são naturais, nem os atos naturais dessa capacidade, que também são naturais e lícitos, nem toda a inclinação da nossa natureza, que é corrupta, a qual não é condenada por um único mandamento específico, mas por toda a lei; nem todas aquelas cobiças atuais e primeiras que são desordenadas, das quais grande parte se opõe à religião e é condenada pela primeira tábua; nem, finalmente, todas as cobiças que tendem ao prejuízo do próximo; pois aquelas que possuem consentimento deliberado e propósito de perseguição são condenadas em cada mandamento específico. Mas a cobiça é aquela pela qual a alma é primeiramente incitada e estimulada pelo desejo dos bens que pertencem ao próximo, ainda que não tenha ainda decidido adquiri-los por meios ilícitos.

Os pontífices não podem negar que a cobiça que excita seja contra a lei, mas distinguem algumas que se opõem à lei material e efetivamente, e outras que se opõem de forma privativa e formal. A cobiça que excita e atrai sem consentimento se opõe à lei no primeiro modo, mas as que assim se opõem não são pecados, embora incitem ao pecado. No entanto, Paulo, quando disse que a lei não é pecado, ou seja, não é a causa do pecado, mas sim a causa do conhecimento do pecado, chamou de pecado a lei que luta em seus membros e o torna sujeito à lei do pecado. Isso ele afirma junto com muitas outras coisas no mesmo capítulo, de onde se constata que ele chama essa cobiça de pecado, porque a lei diz "não cobiçarás", o que ele já havia fundamentado antes. Portanto, essa cobiça foi proibida pela lei. Além disso, a lei que proíbe a cobiça fala em termos gerais e nunca distingue entre a cobiça que é sem consentimento e a que é com consentimento. Onde a lei e a Escritura não distinguem, não devemos fazer distinções.

Paulo mostrou que a concupiscência é um pecado ao dizer que os homens não reconheceriam os atos interiores, como o desejo da esposa ou dos bens alheios, se a lei não tivesse dito "não cobiçarás". Além disso, pelos versículos subsequentes, fica claro que Paulo estende este mandamento àquela concupiscência contra a qual o Espírito luta, que se opõe à lei da mente, que a mente regenerada não aprova e que não deseja. No entanto, ele expressamente chama essa concupiscência de pecado. Pois ele repetidamente define essa concupiscência como pecado. Também é importante observar que, nas Escrituras, a concupiscência da carne nunca é tomada em um sentido positivo. Stapleton, no livro 3 sobre a concupiscência nos regenerados, é forçado a admitir que a concupiscência, da qual discutimos, é uma forma de iniquidade, νομίαν e, às vezes, de obliquidade, não apenas contra o domínio da mente, mas também contra a lei de Deus. Com essa confissão, segue-se claramente que é pecado e, formalmente, como dizem, um vício. No entanto, ele também afirma que Deus não exige de nós, nesta lei, que sejamos sem tal concupiscência por meio de obrigação, mas apenas por meio de direção, para que dessa forma o mal de nossa natureza seja reconhecido. Dizemos que isso vai contra a própria natureza da lei, que não só dirige, mas também obriga, e pronuncia maldição contra todos que não permanecem em todas as palavras da lei para as cumprir. Deuteronômio 21:23, onde o objetivo da lei não é apenas conhecimento, mas também a obrigação de a cumprir.

Os socinianos afirmam que a concupiscência que alguém concebe pelo bem alheio, se não pensa em atraí-lo para si, era permitida sob o Antigo Testamento e que apenas aquela concupiscência que fazia as pessoas pensar em atrair para si os bens alheios foi proibida. Assim, Smalcius: esta era proibida sob a lei, como pode ser confirmado pelo fato de que todas as coisas proibidas na lei mosaica, assim como em outras leis humanas, são principalmente preceitos para a preservação da paz e da sociedade humana, e este mero conhecimento não pode ser violado ou rompido de forma alguma. Mas sob o Evangelho, onde a pureza do coração é especialmente considerada e requerida, para que sejamos íntegros perante Deus, não apenas a tentação dos meios ou razões pelos quais alguém pensa em atrair para si os bens alheios, mas também o próprio pensamento de atrair para si os bens alheios, é justamente considerado um vício. Pois por que seria lícito pensar no que não é lícito fazer? Respondemos que o fundamento dessa distinção é uma petição de princípio. A questão entre nós é se, no Novo Testamento, é exigida uma maior pureza de coração do que no Antigo Testamento e, por conseguinte, se Cristo fez os mandamentos do Decálogo mais completos do que eram no Antigo Testamento, para que os cristãos vivessem de forma mais santa do que os antigos. Mas como até agora os socinianos não conseguiram estabelecer esse fundamento, essa diferença também cai, como se de algum modo a concupiscência do Novo Testamento fosse diferente da concupiscência do Antigo Testamento.

CONCLUSÃO

Segue agora as propriedades da lei moral, que são ordem e perfeição. A ordem entre os mandamentos é tal que cada mandamento, tanto pela precedência na ordem, quanto pelo bem que abrange ou pelo mal que nele é proibido, torna-se mais excelente ou mais grave.

Cartwricht ensina, com cautela, que isso deve ser entendido da seguinte maneira, como ele afirma na página 46: "Respondo, não que qualquer bem, em um mesmo mandamento, seja preferível a todos e a cada um dos bens compreendidos no mandamento que vem depois em ordem, mas que os maiores bens devem ser comparados com os maiores bens, os médios com os médios, e os inferiores com os inferiores; o mesmo se aplica ao que é considerado vício." Por exemplo, a reputação que surge das riquezas (que pertence ao nono mandamento) não deve ser preferida às próprias riquezas (que pertencem ao oitavo mandamento), nem a reputação decorrente da força ou velocidade às virtudes físicas propriamente ditas.

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