OS DEZ MANDAMENTOS, por Johannes Maccovius
CONSIDERAÇÕES INICIAIS DA LEI DIVINA COM O EVANGELHO DE CRISTO
As partes da Palavra de Deus são: Lei e
Evangelho
Embora haja muitas coisas nas Escrituras
que não são nem Lei nem Evangelho, a Escritura, no entanto, é dividida em Lei e
Evangelho com base em sua parte principal. Pois as outras partes existem em
função dessas duas, de modo que, quando a Escritura trata dessas partes,
atribui a elas o nome de toda a Escritura (2Tm 3.16).
A Lei é a doutrina divinamente
transmitida, que ordena o que deve ser feito e ensina o que deve ser evitado.
A Lei é moral ou forense. Uma terceira
espécie geralmente é adicionada às mencionadas comumente, a Lei cerimonial;
porém, mostraremos mais adiante, se Deus permitir, que esta não pertence à
doutrina da Lei, mas ao Evangelho.
A Lei moral é aquela cuja essência está
contida no Decálogo. A Lei moral é considerada ou como aliança, ou como regra
de vida. Esta distinção é muito útil para entendermos de que maneira a Lei se
opõe ao Evangelho nas Escrituras; pois a Lei, enquanto aliança, se contrapõe ao
Evangelho, como é dito em 2 Coríntios 3:8-9, porque a Lei prende o pecador; mas
o Evangelho promete perdão ao penitente. No entanto, na medida em que a Lei é
uma regra de vida, ela se harmoniza perfeitamente com o Evangelho. Porque aquele
a quem são perdoados os pecados, a quem o Evangelho é pregado, deve empenhar-se
em realizar boas obras, das quais a Lei é a regra.
Consideram-se desta Lei: o fundamento, a
divisão, as propriedades, os fins e os efeitos. O fundamento das leis divinas é
o beneplácito de Deus, pois esta é a primeira regra da justiça.
Isso se comprova: I. Pela constituição
livre de Deus, que estabelece que essa obediência é justa, e não outra; como,
por exemplo, por que a não ingestão do fruto da árvore do conhecimento do bem e
do mal é considerada obediência, mas a não ingestão da árvore da vida não o é;
por que o sacrifício de Isaque, o despojo dos egípcios e a construção do templo
por Salomão, e não por Davi, foram ordenados; por que os homens foram
instruídos a confessar Cristo, enquanto os demônios foram proibidos de o fazer.
Porque todas essas coisas são equitativas e justas não decorre de outra coisa
senão da vontade de Deus. II. Se algo fosse justo e bom antes da vontade de
Deus, então Deus seria obrigado, por dever e obrigação, a querer isso, e também
a fazê-lo; mas Deus não está sujeito a nenhum dever ou obrigação moral, exceto
à Sua infinita sabedoria ou a Si mesmo, o que constitui uma obrigação sem
sentido. Ele não deve nada à criatura, pois tudo o que Deus deve à Sua criatura
é devido a uma promessa ou ameaça feitas livremente. O que Deus promete ou
ameaça é, portanto, fruto de Sua livre vontade; nada, então, Deus deve querer
ou fazer como justo antes de Sua constituição livre. III. Se algo fosse bom e
justo intrinsecamente antes do beneplácito de Deus, então o beneplácito de Deus
seria necessariamente regulado por essa coisa ao querer; mas o beneplácito de
Deus é a primeira regra, não regulada por outra anterior. Isso se prova pela
conexão: porque Deus não seria infinitamente justo e bom se pudesse agir contra
o justo e o bom. IV. Toda justiça moral, seja pela lei da natureza ou por outro
modo, é revelada pela sábia vontade livre de Deus, pois não é devida a uma
necessidade da natureza. Pois, se Deus impusesse a lei por impulso natural,
então não poderia deixar de ordenar e proibir o que ordena e proíbe. Isso se
prova pela consequência, porque não há terceira opção. V. Se algo fosse justo e
bom antes do beneplácito de Deus, haveria algo justo e bom que não emanaria do
sumo bem e do primeiro justo; o que seria absurdo. Haveria, então, um efeito
que não poderia ser resolvido em sua causa primeira. Nada há aqui que os
adversários possam dizer, exceto que o bom e o justo fluem de Deus como a luz
do Sol por impulso natural. No entanto, quem diria que Deus, por necessidade da
natureza, proibiu o consumo do fruto da árvore proibida? Quem diria que Deus,
por necessidade da natureza, prescreveu a lei aos judeus, ou ainda, que por
necessidade da natureza, foi obrigado a criar criaturas intelectuais às quais
pudesse impor a lei, e, portanto, criar o mundo? Isso implicaria que o mundo
teria emanado eternamente de Deus por uma eterna emanação, o que seria
necessário. Pois não haveria razão para que o mundo começasse em algum momento;
assim como não há razão para que Deus seja infinitamente bom e justo hoje e não
há mil anos. Mas a razão e a experiência clamam, e os oráculos sagrados
testemunham que Deus criou livremente o mundo e todos os seres para a Sua
glória, conforme Provérbios 16:4 e Romanos 11:36. Além disso, Deus não poderia
ter criado as criaturas de outra maneira, em estatura, espécie, número, peso,
medida ou perfeição, diferente da forma como foram criadas, o que é contrário
às Escrituras, como em Romanos 9:21-22. Os Padres e Escolásticos ensinam que
Deus não quer as coisas porque são boas, mas que elas são boas porque foram
queridas por Deus. De tal maneira que, se Ele quisesse que elas não existissem
ou fossem diferentes, isso também seria agora bom.
Objeção I:
Nada é vergonhoso em relação à vontade divina. Resposta: Esta afirmação
é em parte verdadeira e em parte falsa. É verdadeira porque, devido à
constituição livre de Deus, algo moralmente injusto pode existir; pois Deus
poderia não ter prescrito nenhuma regra aos homens, assim como o fez com os
agentes naturais, de modo que, se os homens ou os anjos seguissem ou não o
ditame da razão, não haveria culpa, porque Deus poderia ter deixado livre a
eles a escolha de seguir ou não esse ditame. E, uma vez que a lei é um decreto
absolutamente livre de Deus, se Ele não tivesse estabelecido tal decreto, não
haveria nada vergonhoso ou pecaminoso; pois Deus não estabeleceu a lei por
impulso natural. No entanto, é também falso que nada seja vergonhoso em relação
à vontade divina, porque, dado que Deus livremente decretou o bem moral e
estabeleceu a lei, tudo o que se opõe a tal lei desagrada profundamente a Deus
como vergonhoso e desonesto. Portanto, assim como Deus se opõe naturalmente ao
pecado por causa da sua retidão natural e da constância da natureza divina,
pela qual Ele não pode deixar de odiar o que é contrário à sua sabedoria.
Objeção 2:
Deus ama a verdade e a sinceridade, pois Ele mesmo é veraz e justo; não pode
aprovar a lascívia e a intemperança, nem condenar a castidade em qualquer
pessoa, e tampouco pode legitimar a violência. A lascívia e a violência não são
apenas más para nós, a quem são proibidas, mas também em si mesmas, de tal modo
que o onipotente não poderia deixar de condená-las e vetá-las como inimigas
manifestas de sua santíssima majestade. Resposta: O adversário se desvia
do estado da questão; pois, posto que essas coisas sejam intemperança,
violência, lascívia impura, barbárie, não pode Ele não proibi-las, visto que as
vetou. Portanto, foi necessário que Deus proibisse a violência, uma vez que essa
é violência; mas essa necessidade é hipotética, derivada do beneplácito livre
de Deus, que pode ordenar ou proibir algo à criatura, ou não ordenar nem
proibir. Contudo, se ele disser que, antecedente ao beneplácito divino, essas
coisas se opõem hostilmente à santíssima majestade de Deus, tal afirmação não
seria outra coisa senão uma blasfêmia; pois o que, essencialmente, na natureza
de Deus, é contrário a comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal?
Não circuncidar os judeus? O que levou os judeus a pouparem os cananeus, que
Deus quis que fossem completamente exterminados por eles? Então, a lei de não
comer o fruto proibido flui da necessidade da natureza de Deus? Nada poderia
ser mais absurdo. Além disso, o adversário argumenta: Deus não pode infringir
sua própria vontade ou afastar-se da estrita observância daquela regra de
justiça que nos propõe como exemplo a ser seguido. Resposta: 1. Pela hipótese
de que isso seja um estatuto da vontade divina, Deus não pode deixar de seguir
sua própria vontade; mas, absolutamente, Deus não deseja nem faz nada fora de
si cuja contrariedade Ele não possa desejar ou fazer. 2. Nada é mais falso do
que dizer que Deus não pode deixar de observar a regra de justiça proposta a
nós, pois Ele estabeleceu a lei para nós, não para si mesmo. O quê? Então Deus
é obrigado pela sua natureza santa a cumprir a lei e o Evangelho, ou seja, a
temer a si mesmo, a guardar o sábado, a se santificar, a acreditar em seu
próprio Filho, visto que nos prescreve essa regra de justiça? Mas qual é a lei
que obriga Deus a permitir o pecado, a instituir sacrifícios e sacramentos, a
exigir fé em vez de boas obras como condição da nova aliança? Será que Deus
está obrigado pela regra mosaica dos sacrifícios a comandar sacrifícios?
Contudo, não existe tal regra, a não ser que recorramos ao beneplácito de Deus.
Daqui se conclui, segundo ele, que os exemplos de santidade que devemos imitar
perfeitamente em Deus não devem ser retirados de um mero comando dele ou de uma
revelação de sua vontade, mas sim dos objetos revelados de sua vontade ou das
ações eternas de Deus, que nos foram mostradas como tantas provas e testemunhos
expressos de que sua vontade é justa e santa. Deus quer que sejamos conformes a
essa sua vontade, para que nos tornemos conformes à sua natureza, pois Ele
ordena que sejamos santos e perfeitos como Ele é. Resposta: 1. A santidade que
Deus exige de nós é conformidade com a sua vontade livremente revelada, e não
simplesmente com a natureza de Deus, o que é evidente: pois o que é a lei de
Deus senão o livre beneplácito de Deus, pelo qual quis que o adorássemos de um
modo e não de outro? Quando poderia ter sido que, se assim tivesse parecido ao
sábio beneplácito de Deus, Ele nos exigisse um modo de culto completamente
diferente, ou mesmo contrário? Será que é por necessidade da natureza divina
que Deus quis que o Evangelho, e não a lei, fosse o caminho para os pecadores
alcançarem a glória, que Ele quis que a fé, e não as obras da lei, fosse a
condição da nova aliança? Será que por necessidade da natureza divina Deus
instituiu a água no Batismo, o pão e o vinho na Ceia do Senhor como sinais
elementares, de tal modo que Deus teria pecado contra sua própria justiça
essencial se tivesse instituído outros sinais? E Deus teria sido injusto se tivesse
instituído a Circuncisão para os gentios e o Batismo como o selo da aliança
para os judeus? 2. Ele deseja que os exemplos de santidade divina que devemos
imitar sejam tirados dos objetos da vontade revelada. Bem, seja quem for, aqui
está o objeto da vontade revelada: que os cananeus devem ser exterminados, que
Isaque deve ser imolado pelo Pai, que a água deve ser o sinal no Batismo. Se o
exemplo de santidade deve ser buscado nesses casos, então será verdade,
antecedentemente à vontade de Deus, que Isaque deve ser imolado. Logo, os
judeus que imolaram crianças pequenas não estavam pecando, mas estavam imitando
a santidade essencial de Deus. Além disso, essas coisas são santas (os cananeus
devem ser exterminados, as crianças devem ser batizadas com água) ou porque
Deus livremente as quis; e assim, os exemplos de santidade divina que devemos
imitar devem ser tirados da vontade revelada de Deus; ou são santas e justas em
si mesmas, essencialmente e objetivamente, e portanto Deus é santo pela
santidade objetiva das coisas criadas — o que seria o cúmulo do absurdo? 3. Se
a razão formal da santidade nos ordenada deve ser retirada dos atos eternos e
da prática de Deus: bem, então a prática de Deus foi ordenar que Abraão
imolasse seu filho; portanto, também nos será lícito imolar nossos filhos. A
prática de Deus foi permitir o pecado; portanto, o sacerdote Eli não pecou ao
permitir que seus filhos pecassem, mas nisso foi santo, como Deus é santo. A
prática de Deus é destruir reis; portanto, será lícito a nós matar os ungidos
do Senhor. Que teologia absurda! 4. É totalmente falso que devemos ser
conformes à natureza divina, e isso não se aplica nem mesmo às criaturas, nem
mesmo às angelicais: os homens e os anjos são conformes a Deus porque se
conformam à sua vontade, ordenada livremente, e não porque se conformam à sua
natureza. 5. E a santidade de Deus, que devemos imitar, consiste em agir de
forma santa e irrepreensível com suas criaturas; e está em Deus essencialmente,
mas deriva do seu beneplácito absoluto, como é evidente na misericórdia e na
justiça, na medida em que se referem às criaturas. Pois a santidade de Deus se
manifesta nisso: que Ele ama e aprova seriamente aquilo que ordena às criaturas
racionais; e se Deus tivesse ordenado tanto aos anjos quanto aos homens coisas
muito diferentes, ou mesmo contrárias àquelas que agora de fato ordena, Jeová
não teria sido menos santo do que é agora: Cristo ordena que sejamos
misericordiosos e amantes dos inimigos, assim como é o Pai celestial. Mas, na
verdade, o Pai celestial teria sido igualmente misericordioso e igualmente
perfeito como é agora, se não tivesse concedido aos seus inimigos nem a luz do
Sol, nem a chuva, nem tivesse, de qualquer modo, se compadecido deles, pois Ele
se compadece de quem quer.
Objeção adicional: Deus não deve ser considerado bom porque ama a si mesmo, mas ama a
si mesmo porque é bom. Se isso for verdade, como de fato é, então o mesmo deve
necessariamente valer para a imagem de Deus. Se Deus é inclinado por uma
propensão natural e imutável ao amor por si mesmo, Ele abraçará sua imagem com
um afeto completamente semelhante. Resposta: 1. A consequência é
inválida. Deus é bom essencialmente e não bom por participação. Os seres
criados são bons por participação na bondade divina e Deus lhes concede essa
bondade livremente porque Ele deseja, e assim elas são boas porque Deus as
quer. 2. De modo algum se segue que Deus ama a imagem de si mesmo por uma
propensão natural, pois o fato de o Pai favorecer o Filho e cuidar de sua vida,
e de que se retribua isso, é uma parte significativa da imagem de Deus no
homem. No entanto, Deus pode desejar que Abraão sacrifique seu filho, ou que os
israelitas não devolvam o empréstimo aos egípcios. Portanto, Ele ama sua imagem
livremente e não por um impulso da natureza. Pois a imagem de Deus é apenas a
santidade legal no homem. E a santidade legal é a conformidade com a vontade
livre de Deus, não com o desejo natural de Deus; caso contrário, Deus não
poderia ordenar nada diferente do que ordena ou proibir algo diferente do que
proíbe. Mais ainda, a Sagrada Escritura não seria o conselho livre de Deus, mas
um desejo natural de Deus, que não pode deixar de existir em Deus, assim como
Deus não pode deixar de ser Deus.
Eles dizem:
Existem certas coisas que são indiferentes e que não expressam a imagem de
Deus, exceto na medida em que se referem ao ser, mas não enquanto bem moral, ou
seja, enquanto Deus é um ser, mas não enquanto é justo e santo. Ele pode
ordenar ou proibir essas coisas como quiser. No entanto, Deus não pode condenar
um inocente, absolver um culpado, proibir o amor a si mesmo, recomendar o ódio
a si mesmo, ou ordenar tais ações. Solução: 1. Todas as coisas criadas e
as ações humanas, consideradas de forma isolada, são indiferentes e são
moralmente boas na medida em que Deus as deseja e ordena, e más na medida em
que Deus não as deseja. Por exemplo, amar, adorar, falar, comer, beber, matar
uma pessoa. Pois todas as coisas, sob a perspectiva física, são nem boas nem
más, e amar a Deus, fisicamente, é indiferente, e moralmente bom porque é
ordenado por Deus. 2. As partes da distinção não existem. Pois não há maior
razão para que as coisas sejam em si indiferentes porque se referem a Deus
enquanto ser, do que porque se referem a Deus enquanto justo e santo. De fato,
aquilo que se refere à justiça e santidade de Deus não é bom porque se refere à
natureza de Deus, mas porque concorda com a vontade justa e santa de Deus, que
é, no entanto, livre. 3. Eles dizem que Deus não pode condenar um inocente, mas
essa impossibilidade não surge da natureza de Deus, mas da vontade de Deus. De
fato, Ele condenou Seu Filho inocente e nos absolveu, culpados. No entanto, se
Deus não tivesse determinado desde a eternidade e livremente desejado absolver
os culpados, Ele poderia, de fato, não tê-los absolvido. 4. Proibir o amor a
Deus não se opõe simplesmente à natureza de Deus, mas à vontade livre de Deus.
Eles dizem isso porque acreditam que amar a Deus está em conformidade com a
natureza de Deus, e, portanto, acreditam que não amar a Deus se opõe à natureza
de Deus. Mas pergunto: em que sentido se opõe? Em sentido relativo,
contraditório, contrário ou privativo? Certamente, nada se opõe a Deus em Sua
substância essencial, nem de forma relativa, nem contrária; pois Deus não é um
acidente; nem de forma contraditória, exceto da mesma maneira que todas as
coisas criadas se opõem a Ele contraditoriamente. Portanto, deve-se dizer que
não amar a Deus se opõe a Deus de forma privativa. Contudo, não amar a Deus
privaria Deus de sua própria natureza, o que seria blasfêmia. Pois, se fosse
posto que não amar a Deus privaria Deus de sua própria existência, Deus seria
anulado. Portanto, amar a Deus pertence a Deus de forma extrínseca, na medida
em que está de acordo com Sua vontade revelada; pois nada é acrescentado a Deus
quando Sua vontade é cumprida, e Ele não é mais feliz por isso. Assim, nada é
colocado contra a natureza divina pelo fato de que os homens não amam a Deus,
mas se coloca algo que Deus livremente deseja que não aconteça.
São do mesmo gênero as objeções que
levantam em quarto lugar. Dizem: Há muitas coisas que Deus quer porque são
justas; é justo que apenas Deus seja reconhecido pela criatura como o
verdadeiro Deus; isso Deus quer porque é justo, e não é justo porque Deus quer.
Resposta: Tudo isso é concedido em um sentido adequado; pois, depois que Deus
expressou isso uma vez em palavra e, na criação, incutiu na mente humana por
uma certa lei da natureza (que é justo que Deus seja reconhecido como o
verdadeiro Deus pela criatura racional), então Deus não pode deixar de querer
isso sem cair em uma nota de inconstância. Assim, Deus quer aquilo que é justo,
justamente porque em um ato anterior de Seu beneplácito determinou que essas
coisas fossem justas. No entanto, uma vez que Deus livremente decidiu que algo
deve acontecer, isso não cai sob outra constituição livre de Deus, como algo
que poderia ser livremente realizado ou não por Ele. Agora, pela necessidade
hipotética, Deus não pode deixar de querer isso. Mas, considerando as coisas em
sua existência objetiva e material, ou seja, no sinal da razão pelo qual a sua
existência deve ser sancionada pelo decreto livre de Deus e ainda não
sancionada, elas podem cair sob a constituição livre de Deus como justas ou
injustas por um decreto negativo. Portanto, se o culto a Deus está incluído na
natureza e quididade da criatura racional, desvia-se completamente da questão
em debate. De fato, não se pergunta se é justo desde a eternidade que o homem
cultue a Deus, e se Deus quer isso porque é justo, mas se o culto a Deus
pudesse ser separado da equidade da obrigação natural da natureza da criatura
racional, então dizemos que seria possível, se assim tivesse parecido bem a
Deus, que não fosse justo que a criatura racional cultuasse o Criador. Pois, se
Ele tivesse determinado que a criatura racional não cultuasse o Criador, isso
seria tão justo e equitativo quanto é justo o contrário.
A Lei se divide em primeira e segunda
tábua. A primeira, que prescreve o culto a Deus; a segunda, que prescreve o
dever em relação ao próximo. A primeira abrange os quatro primeiros
mandamentos, e a segunda, os seis últimos. Aqui, não me desviarei do tema se
acrescentar aquilo que Maccovius, em suas dez Disputas, comentou anteriormente
sobre cada um dos preceitos do Decálogo.
O PRIMEIRO MANDAMENTO
"Não terás outros deuses diante de
mim."
Contra esse mandamento pecam primeiramente
os Pontífices, que atribuem às criaturas o mesmo culto que se deve a Deus, como
à Virgem Maria e a outros. E especialmente a Maria, mais do que aos demais,
pois o que nas Sagradas Escrituras é atribuído a Cristo, eles transferem para
ela. Em Gênesis 3:15, o que Deus prometeu a Adão — a semente que esmagaria a
cabeça da serpente — eles transferem para Maria. Daí que a tradução da Vulgata
diz: ipsa [a mulher] conteret caput serpentis “esmagará a cabeça
da serpente”, e por essa mulher os Pontífices querem entender a Virgem Maria.
Mas no hebraico está escrito הוא
“ele”, não הי “ela"— a mulher. Além disso, o
verbo תשופנו ("esmagará") está acompanhado de um sufixo masculino,
de modo que não pode se referir à mulher. Os tradutores da Septuaginta traduzem
como αὐτός "autos" (ele), não αὐτή
"auté" (ela).
Objeção: O
que fez aquele que Maria gerou preservou nossa salvação e venceu Satanás. Pela
mesma razão, diz-se que Eva matou Abel, porque gerou aquele que matou Abel, e
que Olímpia, mãe de Alexandre, derrotou Dario em Arbela, porque gerou
Alexandre.
Não somente igualam Maria a Cristo, mas
também a colocam acima dele. Cassander, um célebre doutor de Colônia, na
"Consulta sobre a Intercessão dos Santos", afirma: "Chegou ao
ponto de que, mesmo Cristo, já reinando no céu, se submete à mãe, como em
algumas igrejas se canta".
Ó Feliz Parturiente,
que expia nossos pecados,
ordena com o direito de mãe
ao Redentor.
Houve um tempo em que, quando essas
palavras eram citadas do antigo Missal Parisiense, os adversários negavam que
tal coisa estivesse escrita ou afirmavam que tinha sido inserida
imprudentemente por alguns. Agora, no entanto, não há necessidade de tal desculpa
ou suavização. O jesuíta Salazar atribui a Maria tal dignidade real que,
comentando o Provérbios de Salomão, no capítulo 8, verso 16, escreve que Maria,
com o direito materno, verdadeiramente goza de poder régio acima de Cristo. E,
certamente, diz ele, a santíssima Virgem frequentemente utilizou esse direito e
poder, mas especialmente o utiliza quando intercede por nós, o que Pedro Damião
capturou numa oração muito eloquente: "Aproximas-te do tribunal dourado
da divina severidade, não rogando, mas ordenando, Senhora, não Serva."
Adiciona ao verso 29 que aquela mãe, sendo a mais amada por nós, e também a
mais impositiva para com o próprio Juiz, perante quem é pleiteada a causa da
nossa salvação, como disse São Boaventura no "Espelho": “Louvor a
Deus, à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo," e assim frequentemente
Barônio encerra seus tomos, concordando que a mãe deve ser preferida ao Filho.
No cânone da Missa, Maria é claramente colocada acima de Cristo, pois, enquanto
Cristo ordenou que a Santíssima Ceia fosse celebrada em memória de Si, e Paulo,
em 1 Coríntios 11, diz: "Todas as vezes que comerdes deste pão,
anunciais a morte do Senhor," o sacerdote que celebra a Missa declara
que, em primeiro e principal lugar, celebra a memória da Virgem Maria, dizendo:
"Comunicantes, e venerando primeiramente a gloriosa e sempre Virgem
Maria," rebaixando Cristo a uma posição inferior. Eles também conferem
a ela honras próprias de Deus. Vázquez, na terceira parte de Tomás, Disputatio
100, diz que Maria, devido à sua dignidade maternal, merece culto de "latria"
(adoração), reservado somente a Deus. Além disso, todo o Saltério foi
modificado, substituindo em todos os lugares o nome do Senhor pelo de Maria.
Este Saltério, cujo autor é Boaventura, é amplamente difundido. E eles ensinam
que o culto dos Salmos é um culto religioso, não diferente daquele que se deve
somente a Deus, e ao conferirem-no a Maria, têm-na como um segundo Deus, em
contradição ao primeiro mandamento do Decálogo.
Mas também este argumento contra essa
interpretação é válido: Cristo discutiu com Satanás durante o tempo do Novo
Testamento. Se, contudo, esse trecho se referisse apenas ao Antigo Testamento,
Cristo não poderia tê-lo usado legitimamente, e não teria sido difícil para
Satanás refutá-lo, dizendo que o trecho tinha valor apenas no tempo do Antigo
Testamento, mas não no Novo. Além disso, Paulo, no tempo do Novo Testamento,
menciona um ato reprovável dos Gálatas, em Gálatas 4, ao dizer que, por não
conhecerem a Deus, serviam àqueles que por natureza não eram deuses. Portanto,
não é permitido, nem mesmo sob o Novo Testamento, servir religiosamente àqueles
que não são deuses por natureza. Consequentemente, este mandamento dado no
Antigo Testamento, "Adorarás o Senhor teu Deus, e a Ele somente
servirás", não foi abolido no Novo Testamento. E assim, é certo que os
socinianos são idólatras por oferecerem culto divino a Cristo, a quem
consideram uma criatura, seja ela grande ou pequena.
O SEGUNDO MANDAMENTO
"Não farás para ti imagem
esculpida, nem qualquer semelhança do que está no céu acima, nem do que está na
terra abaixo, nem do que está nas águas abaixo da terra. Não te inclinarás
diante delas, nem as honrarás, nem as cultuarás."
Aqui, em primeiro lugar, pecam os
Pontífices junto com os Luteranos, que juntam o segundo mandamento com o
primeiro. E, assim, confundem o τὸ ὄν καὶ τὸ ποιῶν,
não percebendo que o primeiro mandamento ensina quem deve ser cultuado como o
verdadeiro Deus; e o segundo, de que maneira Ele deseja ser cultuado. Em
seguida, completam os Dez Mandamentos, dividindo uma única e mesma sentença em
duas partes. Finalmente, introduzem neste epítome uma tautologia inapropriada
e, ao eliminar o segundo mandamento da primeira tábua, estabelecem a idolatria
na Igreja. Em segundo lugar, pecam contra este mandamento os Luteranos, que
introduzem imagens na Igreja. Esses dois grupos têm suas justificativas: uma
delas é a seguinte: "Primeiro, dizem, devemos removê-las do coração dos
homens, e depois, dos olhos dos homens." 2. Deus não proíbe totalmente
que se façam imagens, mas apenas que se façam com o objetivo de serem adoradas.
Esta canção começou a ser entoada no tempo de Lutero, ou seja, há cento e
alguns anos, e ainda hoje a entoam; e, pergunto, quando finalmente removerão
isso do coração dos ouvintes? Serão eternamente idólatras? Pois não há dúvida
de que quem traz ídolos no coração é idólatra. Além disso, sua culpa é agravada
pelo fato de que, enquanto constroem novos templos, cuidam para que neles sejam
feitas imagens. Pois, se as imagens antigas não deveriam ser removidas dos
templos antes de serem removidas dos corações, ao menos não deveriam ser
importadas para templos recém-construídos. Pois, desse modo, mostram, ou
melhor, demonstram abertamente, que não têm a intenção de remover as imagens
dos templos. A desculpa deles, de que é necessário primeiro remover as imagens
do coração dos ouvintes antes de removê-las dos templos, seria semelhante à
desculpa de um príncipe que, advertido a proibir o adultério e o homicídio e a
puni-los devidamente, dissesse: "É necessário primeiro extirpar isso
das almas dos homens, e só depois proibir e punir os próprios atos."
Quanto à desculpa posterior, ela anula e
invalida a anterior. Pois, se Deus não proibiu as imagens em si, mas apenas o
seu propósito de culto, então elas são lícitas. Por que, então, seria
necessário removê-las dos corações dos homens? O mandamento sobre esta questão
soa de modo muito diferente, pois proíbe distintamente ambas as práticas.
Primeiro, com estas palavras: "não farás para ti imagem de escultura
nem qualquer semelhança do que há no céu acima, nem do que há na terra abaixo,
nem do que há nas águas abaixo da terra". Segundo, com estas: "não
te inclinarás diante delas, nem as servirás". Por que esses
mandamentos são ordenados de forma distinta, a menos que Deus não quisesse nem
que fossem feitas, nem que fossem cultuadas? Teria sido suficiente dizer:
"não farás para ti imagem de escultura, para que a adores". A
razão que Deus continuamente enfatiza sobre não querer ser pintado ou esculpido
também prova isso, pois Ele afirma claramente que nenhuma imagem de Deus deve
ser fabricada, como está em Deuteronômio, capítulo 4, versículo 15: "Guardem-se
bem, pois vocês não viram nenhuma forma no dia em que o Senhor lhes falou em
Horebe do meio do fogo. Para que não se corrompam, fazendo para si imagem
esculpida na forma de qualquer figura: forma masculina ou feminina". E
em Isaías, capítulo 40, versículo 18: "A quem, então, vocês compararão
Deus? Que imagem vocês colocarão ao lado dele?" e no versículo 25:
"A quem, então, vocês me assemelharão, para que eu seja comparado a
ele? diz o Santo."
Em terceiro lugar, os Pontifícios também
transgridem este mandamento, mas para que não sejam ouvidos como idólatras,
recorrem a várias desculpas, sobre as quais falaremos mais adiante. Agora,
apresentaremos a doutrina deles sobre esta questão, usando as próprias palavras
deles. Assim, Tomás de Aquino, na terceira parte da Suma Teológica, questão 25,
artigo 3, afirma: "Segue-se, portanto, que a mesma reverência seja dada
à imagem de Cristo, e ao próprio Cristo, pois Cristo é adorado com adoração de
latria, consequentemente, sua imagem deve ser adorada com adoração de latria."
Caetano, em suas notas, ecoa essa ideia: "A imagem de Cristo,
propriamente falando, deve ser adorada com adoração de latria."
Bellarmine, no livro sobre imagens, capítulo 21, profere esta blasfêmia: "As
imagens de Cristo e dos Santos devem ser veneradas, não apenas acidentalmente e
impropriamente, mas também por si mesmas e propriamente, de modo que elas
mesmas são o fim da veneração, consideradas em si mesmas, e não apenas como
substitutas do original." Temos, portanto, os culpados confessos.
Vamos agora examinar os artifícios com os
quais tentam escapar da acusação de idolatria; assim, eles desejam distinguir
entre ídolo e imagem, ou simulacro: afirmam que veneram imagens, mas não
ídolos, e, portanto, não podem ser chamados de idólatras. Alegam que o
simulacro significa a imagem de algo realmente existente, enquanto o ídolo é a
imagem de algo fictício, e, portanto, os ídolos e seu culto são proibidos, mas
não os simulacros. Contudo, é claro que essa distinção é absurda.
Primeiramente, pelo próprio etimológico, onde simulacro e ídolo não diferem
mais que pão e ἄρτος;
o primeiro é um termo latino, o segundo, grego, mas ambos designam a mesma
coisa. Assim como a palavra forma vem de "formar", simulacro vem de
"simular", segundo Lactâncio. Em segundo lugar, os intérpretes das
Escrituras usam ambos os termos indistintamente. Pois, os tradutores da
Septuaginta em todas as partes traduziram a palavra hebraica עצב por εἴδωλον (ídolo), e os latinos, por simulachrum. O uso misto de ambos
os termos também aparece em bons autores; Cícero chama os átomos de imagens e
ídolos dos deuses, Eurípides chama a sombra de Polidoro e a sombra de Aquiles
de εἴδωλον, em Hércules. Portanto, ídolo não é apenas a
imagem de algo fictício, mas também de algo real. Por outro lado, simulacro é
usado para designar a imagem de algo fictício. Plínio chama o ídolo de Ceres,
uma divindade fictícia, de simulacro, no livro 13, capítulo 4. E Vitrúvio chama
a imagem, ou ídolo, de Diana, de simulacro. Portanto, é fictícia a distinção
dos sofistas entre ídolo e simulacro.
No entanto, não há motivo para que os
adversários levantem uma disputa sobre o vocábulo "imagem" ou
"ídolo", pois o termo "semelhança" elimina qualquer dúvida.
Por essa razão, no templo de Salomão não havia imagens de Abraão, nem de
Moisés, nem de qualquer santo; os querubins, de fato, estavam afastados dos
olhos do povo, não eram adorados, nem eram imagens de anjos, mas caracteres de
ofício, assim como são pintadas as virtudes. E os adversários não podem dizer
de qual anjo ou de quem eram essas imagens. Certamente, a Igreja Romana não
toleraria uma imagem de Santos sem nome, ἀνάνυμῳ.
Portanto, essa é uma evasiva inútil dos
pontifícios, algo bem percebido por Gregório de Valência, que admite que de
fato podem ser chamados de idólatras, mas distingue a idolatria em seu tratado
"De Idololatria", livro 2, capítulo 7. E não se poderia supor,
com absurdo, que São Pedro tenha insinuado que algum culto de imagens (a saber,
imagens sagradas) fosse correto, uma vez que ele queria deter especificamente
os fiéis dos cultos ilícitos de ídolos, conforme 1 Pedro 4:3. Pois, o que
significaria especificar tão claramente os cultos de imagens, se ele realmente
considerasse que nenhum culto de ídolos fosse lícito? Certamente, quando
ouvimos que uma injustiça humana é condenada, costumamos entender que algum
tipo de condenação humana possa ser justo. E, se você deseja afastar alguém da
blasfêmia ou de outro crime, em toda e qualquer circunstância ilícita, não é
necessário dizer que a blasfêmia ou o crime seja ilícito.
Gregório conclui que Pedro insinuou que
alguma forma de idolatria era lícita, uma vez que ele desencoraja os fiéis de
idolatrias ao adicionar a palavra "nefastas". Pois Pedro acrescentou
isso porque a idolatria é o mais grave e atroz de todos os pecados, como tanto
as Escrituras quanto os teólogos ensinam consensualmente. De Valência, no
entanto, argumenta que, como os epítetos são usados às vezes não para
amplificação, mas para distinção, e, portanto, não haveria necessidade de
qualificar a idolatria como ilícita, a menos que houvesse alguma idolatria
lícita.
Com esse mesmo raciocínio, poderia se
inferir que algum adultério seria puro, pois, de outra forma, não haveria
necessidade de ser especificado por Catulo, na elegia à cabeleira de Berenice:
"Que se entregou ao adultério impuro." E que algum estupro
poderia ser sagrado, pois, de outra forma, não haveria necessidade de Cícero
condenar os nefandos estupros de Catilina em sua segunda Catilinária. E que
algum crime poderia ser amável, pois, de outra forma, não haveria necessidade
de Quintiliano, no livro 8, capítulo 6, afirmar: "Ó crime abominável!"
E que alguns pecados poderiam ser piedosos, pois, de outra forma, não haveria
necessidade de Enoque, o Judeu, profetizar o julgamento vindouro por todas as
duras palavras que os pecadores ímpios falaram contra o Senhor.
O terceiro mandamento é: Não tomarás o nome
de Senhor, teu Deus, em vão, pois o Senhor não deixará impune aquele que tomar
o Seu nome em vão.
Contra esse mandamento, pecam primeiramente
os Anabatistas, que negam que o juramento seja lícito aos cristãos sob o Novo
Testamento. No entanto, esses são facilmente refutados pela Escritura,
primeiramente pelos profetas, como em Isaías 45:23: "Diante de mim se
dobrará todo joelho, e jurará toda língua." E em Jeremias 12:16:
"E será que, se diligentemente aprenderem os caminhos do meu povo, e
jurarem pelo meu nome: Vivo é o Senhor." Esses testemunhos se referem
aos tempos do Novo Testamento. Além disso, santos homens, após a manifestação
de Cristo, não ignoraram a prática, cujos exemplos também se encontram no Novo
Testamento, além do próprio exemplo de Deus, que se encontra em Hebreus 6:16.
Da mesma forma, Paulo jura em Romanos 1:9 e 2 Coríntios 1:23. A razão é
permanente, conforme o apóstolo menciona em Hebreus 6:16, pois não é menos
necessário agora do que foi outrora terminar controvérsias; e o apóstolo fala
sobre o modo de resolvê-las, que era observado naquele tempo. Portanto, já que
o juramento tem um bom propósito, a confirmação da verdade, a rejeição da
mentira, a resolução de disputas, e a promoção da paz e tranquilidade entre os
homens, por qual direito deveria ser eliminado do âmbito dos cristãos?
Especialmente quando não apenas o objetivo é bom, mas também o princípio, pois
o juramento é feito com base na estima que se tem pela infalibilidade divina.
Não há dúvida, portanto, de que, se realizado com as circunstâncias legítimas,
é algo bom e útil para o Estado e para a Igreja, seja para que os inocentes e
injustamente difamados possam se purificar, seja para que outras controvérsias
emergentes sejam resolvidas. E embora o juramento tenha sido instituído
principalmente para nós, porque nossa fraqueza deu causa a ele, seja porque
somos sujeitos à vaidade e à mentira, seja porque não facilmente damos crédito
às palavras dos outros, ele é, consequentemente, relacionado à glória de Deus,
de modo que, na sua própria execução, é um ato de religião, na medida em que
juramos por aquilo que reverenciamos e amamos. Por isso, Deus, o maior,
onisciente e justo, e que deseja punir os perjúrios, é tido em alta
consideração quando se respeita o juramento exigido.
Aqueles que pensam de maneira contrária,
são principalmente movidos pelas palavras de Cristo em Mateus 5:34 e Tiago
5:12. Há aqueles que respondem que o que foi dito por Cristo e repetido por
Tiago não se refere ao juramento assertivo, mas sim aos eventos incertos das
promessas, cujos exemplos são encontrados no apóstolo Paulo. Eles provam isso
com base na oposição nas palavras de Cristo: "Ouvistes o que foi dito
aos antigos: não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu,
porém, vos digo: não jureis de modo algum." Aqui, cumprir os
juramentos ao Senhor parece não ser outra coisa senão cumprir o que foi
prometido. Eles também ponderam a razão que Tiago acrescenta, "para que
não caiais em condenação," que traduzem como "para que não
sejais achados falsos," pois este é o sentido que a palavra ὑποκρίσεως tem entre os helenistas, como aparece em Mateus 24:51. Mas estas e
outras coisas que são apresentadas aqui não têm valor algum e são refutadas
tanto pelos lugares das Escrituras, como no Salmo 15:4, quanto pelos exemplos,
como em Gênesis 21:23-24; 24:3-9; 31:53. O argumento baseado na incerteza do
evento (o qual também objetam), que afirma que não está em nosso poder realizar
o que prometemos, colocando-nos assim em perigo de perjúrio caso juremos e não
cumpramos, também não é válido. Pois é suficiente para evitar esse crime que,
ao jurarmos ou prometermos, tenhamos firmemente em mente cumprir o que juramos.
Se, posteriormente, formos impedidos não por nossa culpa, mas por necessidade
natural, ou se compreendermos que é contra a vontade de Deus, então, aquele a
quem juramos não deve exigir a execução do juramento, e nós, ao não o executar,
não seremos culpados de perjúrio.
De outra forma, deve-se responder ao
argumento extraído das palavras de Cristo: O objetivo, portanto, de toda a
passagem é que todos os juramentos referentes a uma questão inútil e
desnecessária, feitos de qualquer maneira, pecam contra o mandamento de Deus;
e, por conseguinte, que a facilidade em jurar e a temeridade, onde não há nada
que exija um juramento, são absolutamente proibidas. Portanto, o que se opõe a
isso não foi a abolição da lei, como querem os anabatistas, ou a adição à lei,
como querem os socinianos, mas a interpretação de duas corrupções dos fariseus,
que falsamente ensinavam duas coisas contra o juramento: primeiro, que não era
juramento, nem obrigava ao perjúrio, se alguém afirmasse algo sem usar
explicitamente o nome de Deus, mas o nome de uma criatura, como o templo, o
céu, ou a terra; e assim o próprio Cristo testifica em Mateus 23:16. O segundo
ponto da falsa doutrina era que, no uso do juramento, não havia pecado a temer,
a menos que, por falta de veracidade, fosse admitido o perjúrio. Pois
acreditavam que as palavras de Levítico 19:12, "não perjurarás pelo meu
nome", constituíam a explicação completa da lei do Decálogo, e que,
portanto, apenas o perjúrio era proibido por essa lei; assim, se alguém jurasse
levianamente, sem ser induzido por uma causa necessária, sobre uma questão
verdadeira, não violaria o mandamento. Socinus tem a mesma opinião que os
fariseus, e não admite que a lei tenha proibido algo além do perjúrio. Pois ele
restringe o que é dito sobre "não tomar o nome de Deus em vão"
à falsidade e à mentira. No entanto, ele corrompeu a lei de Levítico 12 e
negligenciou ou não considerou a outra parte do mesmo preceito, como fazem
todos os que negam que um juramento em vão sobre uma questão verdadeira seja
proibido. Pois, após as palavras "não perjurarás", é acrescentado
"não profanarás o nome do Senhor". Ora, o nome do Senhor é
profanado sempre que é usado levianamente.
Assim se encerra a discussão sobre os
anabatistas: agora trataremos dos papistas, que também infringem este
mandamento ao insistirem que é lícito jurar pelas criaturas. Nós negamos essa
posição, e nossas razões são as seguintes: 1. Deus ordenou que se jurasse
apenas pelo Seu nome, e por nenhum outro, conforme Deuteronômio 6:13 e 10:20.
Por isso, em Jeremias 5:7, são repreendidos aqueles que juram por aqueles que
não são deuses. 2. Quando Deus descreve o juramento que deve ser prestado, em
Jeremias 4:2, Ele diz: "Jura pelo Senhor, com verdade, justiça e
retidão". 3. O próprio Deus define o ato de jurar como um culto a Ele,
conforme Isaías 19:18; 8:1, e Oséias 4:15. Ora, o culto a Deus não deve ser
atribuído a nenhuma criatura.
Objeta-se
que quem jura pelas criaturas jura por Deus, e que, portanto, é lícito jurar
pelas criaturas. O antecedente parece claro em Mateus 23:21. A consequência é
certa, porque quem jura por Deus em uma causa grave e urgente não peca, e,
portanto, os juramentos seriam lícitos nessas circunstâncias. Resposta:
Na ação de jurar, diz-se que o nome de Deus é usado quando se menciona a
criatura, por causa da própria ação, que pertence exclusivamente a Deus e a Ele
se refere. Por isso, qualquer um que jure, mesmo sem mencionar explicitamente o
nome de Deus, ao jurar, invoca a Deus, ainda que de maneira imprudente e
inconsciente, já que Ele é sempre o fiscalizador e vingador dos juramentos. No
entanto, não se segue daí que seja lícito jurar por uma criatura, nem se pode
deduzir uma consequência sólida a partir desta declaração de Cristo, nem
inferir que, se alguém jura por criaturas que têm alguma relação com Deus, e
depois não cumpre o juramento, comete perjúrio, que aquele que jura por
criaturas e cumpre o juramento realiza um culto aceitável a Deus ou não
infringe o mandamento que nos obriga a jurar somente pelo nome de Deus. Isso
porque não é válida a consequência da negação de algo, em razão de um efeito,
para a afirmação do mesmo, em razão de outro.
O argumento dos papistas sofre de um vício
semelhante, que, a partir do fato de que a injúria cometida contra uma imagem
ou madeira não instituída por um mandamento de Deus, por parte de quem pretende
desprezar o protótipo através do sinal, recai sobre o protótipo, concluem que
prestar a mesma honra ao sinal, conforme a intenção daquele que a presta, é
agradável a Deus. Mas essa consequência não é válida, porque os contrários não
são atribuídos corretamente aos contrários, quando a contrariedade dos predicados
não depende do próprio sujeito ao qual se opõem, mas de outra coisa. A honra
não decorre da honra ao sinal, a menos que o sinal seja instituído por Deus e
ordenado para tal honra, pois a intenção, que é suficiente para a injúria, não
basta para a honra de Deus.
O TERCEIRO MANDAMENTO
"Lembra-te de santificar o dia de
sábado"
A primeira questão entre os ortodoxos diz
respeito à origem do sábado, que alguns atribuem à criação do mundo, enquanto
outros à queda do maná. Nós subscrevemos à primeira opinião, movidos por estes
argumentos: Gênesis 2, versículo 3: "Quando Deus completou, no sétimo
dia, a obra que havia feito, descansou no sétimo dia e o santificou".
O segundo argumento que comprova isso é
derivado de Hebreus 4, onde o apóstolo, ao descrever o repouso espiritual
prometido por Deus e ao querer mostrar que este era distinto do sábado final,
que os judeus observavam segundo a lei, bem como do repouso na terra de Canaã,
para onde Josué conduziu o povo, diz que as palavras "Jurei na minha
ira: 'Se entrarão no meu descanso'" foram pronunciadas por Davi,
apesar das obras de Deus terem sido concluídas desde a fundação do mundo,
citando assim este trecho de Gênesis 2. Pois ele disse, em algum lugar, a
respeito do sétimo dia: "E Deus descansou no sétimo dia de todas as
suas obras". Daqui se conclui que, segundo o apóstolo, o descanso do
dia de sábado começou com a perfeição das obras de Deus, após o sexto dia.
O terceiro argumento é que os patriarcas,
antes de Moisés, tinham tempos estabelecidos de piedade e religião em relação a
Deus; portanto, é verossímil que tenham observado o sétimo dia para esse
propósito. Mas qual dia eles escolheriam, senão aquele que Deus havia
santificado? E parece também que, por essa razão, Deus posteriormente deu o
sétimo dia para ser observado pelos israelitas, como aquele que, sendo um
monumento do descanso divino (que Deus realizou nesse dia), parecia mais apto e
apropriado para o culto a Ele.
Objeção: A
benção divina, isto é, a benção, não convém ao dia sétimo desde a criação do
mundo, mas é apropriada ao sétimo dia após a doação do maná, como indicado em
Êxodo 16. Portanto, parece que não é apropriado afirmar que o dia sétimo é
abençoado desde a criação. Pois a cessação da benção não é benção; mas a
cessação do repouso divino era a partir da benção. Portanto, o fato de cessar a
benção não implica que a benção esteja presente no dia sétimo. Resposta:
Este argumento baseia-se em duas hipóteses falsas. Primeiramente, que o repouso
divino seja medido de forma natural, já que, como Agostinho afirma, Deus sempre
age e sempre descansa, age sem movimento e descansa na ação. Em segundo lugar,
pressupõe que repouso e ação não podem coexistir, o que é falso, especialmente
no caso do repouso sabático, tanto para os homens quanto para Deus. Pois os
próprios judeus, embora estivessem estritamente obrigados a observar e
descansar no sábado, ainda eram obrigados a louvar e abençoar a Deus. E
abençoar é um ato de ação.
Passando à segunda questão sobre a
moralidade do sábado, e primeiramente sobre se o sábado é um preceito
cerimonial ou moral, subscrevemos a segunda opinião: o preceito de guardar o
sábado está contido no Decálogo tanto quanto os outros preceitos; portanto, é
tão moral quanto os demais. A razão da consequência é buscada na Epístola de
Tiago 2:10: "Quem guarda toda a lei, mas tropeça em um ponto, é culpado
de todos." Adiciona-se ainda o ensinamento de Cristo: "Nem um
jota ou um til da lei passará."
Esse argumento é refutado por alguns que
dizem que há certos aspectos no Decálogo que se referem de maneira especial aos
judeus. Resposta: Os exemplos apresentados não sustentam o que prometem.
Pois, primeiro, o Senhor Deus que tirou os israelitas da terra do Egito e a
promessa adicionada ao quinto preceito, embora sejam de essência do Decálogo,
não são de forma primária e formal, mas são substituídos por alguns acréscimos.
Portanto, o argumento não é válido. Há alguma razão secundária de algum
preceito que se aplica aos judeus; portanto, também a razão primária de outro
preceito pode se aplicar apenas a eles. Segundo argumento: se for aceito que o
sábado existiu desde o início do mundo, antes de qualquer noção cerimonial, não
há razão para que, com a abolição das cerimônias, ele não permaneça intacto.
A terceira questão é: Se, por este
preceito, é ordenado que um dos sete dias seja santificado? Afirmamos que sim,
o que provamos com os seguintes argumentos: Primeiro, se pela força e analogia
deste preceito não se conclui corretamente que um dia dos sete deve ser
dedicado ao culto divino, então nenhum número específico de dias poderia ser
limitado por qualquer preceito; o que é absurdo. O segundo argumento é baseado
no número de seis dias concedidos para o trabalho, número que não seria
completo a menos que fosse terminado pelo repouso e cessação de um sétimo dia.
O terceiro argumento é extraído do exemplo dos Apóstolos e da Igreja
Apostólica, que, no lugar do sábado, invariavelmente observaram o primeiro dia
da semana. Ou, como preferimos dizer, observaram inalteravelmente o sábado,
transferido do sétimo dia para o primeiro: Portanto, pela força deste preceito,
um dia dos sete deveria ser observado. A premissa será suficientemente provada
na questão seguinte. A consequência, dado o argumento, é sólida.
A quarta questão trata da instituição do
Dia do Senhor. Argumentamos que o Dia do Senhor foi instituído por Cristo com
base em três pontos: primeiro, na ressurreição de Cristo no primeiro dia da
semana, em sua aparição aos discípulos, que estavam reunidos naquele dia, e na
descida do Espírito Santo. Portanto, parece-nos correto deduzir que a causa da
instituição desse dia é a ressurreição de Cristo no primeiro dia da semana, a
própria instituição se dá posteriormente pela observação dos Apóstolos, e a sua
bênção e santificação se manifestam de forma milagrosa com a descida do
Espírito Santo sobre os Apóstolos nesse dia.
O segundo argumento afirma que, se Cristo
não tivesse instituído o Dia do Senhor, haveria um intervalo em que os homens
não seriam obrigados, por preceito divino, a consagrar qualquer dia ao culto
divino. Isso ocorre porque o sétimo dia foi ab-rogado com a morte de Cristo, e
os homens não estariam mais obrigados a observá-lo. Alguns respondem que os
Apóstolos observaram o sétimo dia por um tempo, em consideração aos judeus. No
entanto, questiona-se se o fizeram por dever. Certamente, se fosse por dever,
aquele dia ainda deveria ser observado. Além disso, é falso que os Apóstolos
observaram o sábado judaico; embora tivessem frequentemente sermões e debates
nesse dia, aproveitando-se da presença dos judeus, isso não implica que
observaram o sábado, assim como o fato de Paulo ter discutido no Areópago e em
escolas pagãs não significa que ele adorava os deuses gentios ou observava suas
festas.
O terceiro argumento baseia-se na
denominação "Dia do Senhor". É chamado assim, mas não poderia
ser, a menos que o Senhor o tivesse instituído, como ocorreu com a Ceia do
Senhor e a Oração do Senhor. Alguns respondem que o dia poderia ser chamado de
"Dia do Senhor" porque seria em comemoração ao Senhor, mesmo que não
tenha sido instituído por Ele. No entanto, essa afirmação não é apoiada por
nenhum argumento pelos adversários. E, de fato, enquanto a Igreja manteve a
memória do nascimento e da ascensão de Cristo, esses dias não foram chamados de
"Dias do Senhor". Além disso, afirmamos que os Apóstolos
costumavam se reunir nesse dia para prestar culto a Deus, como se vê em 1
Coríntios 16:2, Atos 20, etc.
O QUINTO MANDAMENTO
"Honra teu pai e tua mãe, para que
se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá."
Sob os nomes de pai e mãe, compreendem-se
também o avô, a avó e outros ascendentes que são enumerados na linha
ascendente, assim como sob o nome de filhos incluem-se os netos e todos aqueles
que descendem de alguém. É aceito por todos os teólogos que também são
abrangidos por este mandamento aqueles que exercem autoridade sobre nós ou que,
de alguma forma, são superiores a nós, ou seja, aqueles que no estado doméstico
são nossos tutores ou curadores, senhores ou senhoras; também aqueles que, no
estado político, nos governam, como os magistrados políticos supremos e outros
que, sob estes, estão constituídos de modo subordinado; no estado eclesiástico,
os pastores, doutores e outros nossos guias; entre os quais também devem ser
considerados nossos professores, aos quais se acrescentam os anciãos e outros
que são de idade avançada, ou que possuem alguma dignidade que os recomenda a
nós, como se vê em Gênesis 20, onde Abimeleque é chamado de "meu pai, o
rei"; assim como José é chamado de "pai" por Faraó, em Gênesis
45:8; Micaías disse ao levita: "Sê para mim como um pai e sacerdote,"
Juízes 17:10; Davi chama Saul, seu sogro, de pai, 1 Samuel 24:11; Eliseu chama
Elias de pai, 2 Reis 2:12; os servos de Naamã o chamam de pai, 2 Reis 5:13; o
rei de Israel chama o profeta de pai, 2 Reis 6:21; Paulo se refere aos judeus,
em razão da idade, como pais e irmãos, Atos 22:1; e a si mesmo também como pai,
1 Coríntios 4:15. Nesse sentido, a Escritura menciona os "filhos dos
profetas."
Até aqui tratamos do objeto; segue-se agora
o mandamento, que consiste nesta palavra: "Honra." Este termo abrange
todos os deveres que se devem aos pais, ou àqueles que ocupam o lugar de pais.
Embora a palavra "honra", estritamente tomada, refira-se à devida
estima da eminência e prerrogativa dos pais, bem como a um julgamento correto
sobre sua pessoa e função no intelecto, também inclui a observância e o
respeito devidos a eles, a obediência, o auxílio e o socorro nas suas necessidades.
Isso deve ser feito de coração, com palavras e com ações, pois no intelecto
deve preceder o julgamento, como já dissemos; na vontade deve seguir-se a
inclinação para amá-los e reverenciá-los conforme Deus. Daí que o Apóstolo
recomenda a obediência em Colossenses 3:20.
No entanto, pergunta-se por que o Apóstolo
chama este mandamento de o primeiro com promessa, uma vez que o segundo
mandamento claramente contém a promessa de misericórdia por mil gerações
daqueles que amam a Deus e guardam Seus mandamentos? Respondemos que é chamado
assim porque é o primeiro com uma promessa especial, enquanto a promessa que
foi acrescentada ao segundo mandamento é comum a todos os mandamentos, como se
depreende das palavras "àqueles que me amam e guardam meus mandamentos".
No entanto, a promessa do quinto mandamento é específica quanto à longevidade,
o que é altamente adequado à natureza da matéria em questão. É adequado e justo
que aquele que honra aqueles de quem recebeu a vida temporal, veja sua própria
vida temporal prolongada.
Objeção:
Contudo, como a vida humana é cheia de tribulações (Jó 7; Gn 47.9; 1Co 15.31) e
está sujeita a várias dificuldades e desventuras, não parece que aqui se
prometa algo feliz ou bem-aventurado, mas sim calamitoso e infeliz. Resposta:
Não se promete apenas uma longa duração desta vida e desta luz, mas também a
prosperidade a ela associada, conforme Deuteronômio 5:16. Além disso, a própria
vida humana, se considerada em si mesma, é o mais belo dom de Deus. A razão é
que esta vida terrena é o primeiro passo para alcançar a imortalidade; aqueles
que nunca existiram ou viveram não podem ser felizes ou tornar-se felizes. Pois
aquilo que não existe não tem qualidades; e o que se diz sobre essas
tribulações, elas não surgem da vida em si, mas do pecado (Gênesis 3). Assim,
as tribulações da vida são acidentais; e o que é acidental não deve ser
considerado como a natureza da coisa em si.
Objeção: Mas
não acontece a todos os filhos piedosos e obedientes a seus pais viverem por
muito tempo; pois alguns são chamados por Deus desta vida ainda jovens. Resposta:
É verdade que, às vezes, são retirados desta vida para que não se corrompam ou
não experimentem algum mal terrível, ou porque o mundo é indigno deles;
contudo, o Senhor permanece fiel ao cumprimento de Sua promessa, assim como
alguém que presenteia com cem alqueires de terra, mesmo que tivesse prometido
apenas um único.
Além disso, pergunta-se sobre este
mandamento: A autoridade paterna é contrária à liberdade? Resposta:
Negamos, porque a autoridade dos pais não é tirânica, nem a condição dos filhos
é servil, mas livre; daí o motivo pelo qual os filhos eram chamados de "liberi"
entre os latinos, para distingui-los dos servos. É verdade que, assim como o
servo está sob a autoridade de seu senhor, também os filhos estão sob a
autoridade de seus pais; assim como entre os servos há manumissão, para que
sejam libertados de seu senhor, também há emancipação dos filhos, para que
sejam livres de seus pais. Embora haja algumas semelhanças entre os dois, há
uma grande diferença na natureza do poder. Aristóteles, no livro 1 da "Política",
capítulo final, afirma que o poder conjugal deve ser semelhante ao poder
político, o poder tirânico ao dos senhores, e o poder paterno ao do rei. Pois
os pais devem governar seus filhos não apenas com autoridade, idade e
prudência, mas também com benevolência e beneficência, refletindo assim o
modelo de um bom rei; e tal poder não é contrário à liberdade, mas elimina a
licença desenfreada e une as necessidades humanas por um vínculo adequado.
Pergunta-se: Podem os filhos, contra a
vontade dos pais, subtrair-se à sua autoridade? Resposta: Paulo, em Colossenses
3:20, exorta os filhos a obedecerem aos pais em tudo, mas, na Epístola aos
Efésios 6:1, ele limita essa obediência com as palavras "no Senhor",
ou seja, na medida em que o Senhor permite, naquilo em que a obediência dos
filhos é agradável a Deus. Pois é verdade que a autoridade inferior não deve
ser obedecida contra o mandamento da autoridade superior. Esta limitação (como
anotamos aqui de passagem), mal compreendida e pessimamente explicada, foi
outrora abusada pelos fariseus, como ensina Cristo em Mateus 15:4-5. Sob o
pretexto de piedade e votos, eles negavam os deveres devidos aos pais; pois
havia neles uma certa inclinação inata para pronunciar votos ímpios, de modo
que era comum entre eles este voto, pelo qual se comprometiam sob juramento a
não concederem qualquer benefício a uma pessoa em particular. Com estas
palavras proferidas, juravam solenemente: "Pelo presente ou pela oferta"
(pois assim aprenderam). "Se alguém jurar pelo altar, nada é; mas quem
jurar pelo presente ou oferta sobre ele, está obrigado" (Mateus
23:18). Ou seja, está vinculado a cumprir o que jurou. Ora, os escribas e
fariseus ensinavam que, se alguém pronunciasse este voto solene, isto é,
dissesse ao pai ou à mãe: "Pelo presente, não te beneficiarei em nada",
de forma alguma poderia fazer-lhes algum bem ou honrá-los conforme o mandamento
de Deus. No entanto, é sobre isso que Cristo os repreende em Mateus 15: "Por
que vocês transgridem o mandamento de Deus por causa das suas tradições? Pois
Deus ordenou, dizendo: ‘Honra teu pai e tua mãe’ e ‘quem amaldiçoar o pai ou a
mãe será punido com a morte’. Mas vocês dizem que, se alguém disser ao pai ou à
mãe: ‘Qualquer benefício que eu possa te dar é uma oferta dedicada a Deus’, ele
não precisará honrar seu pai ou sua mãe. E assim vocês invalidam o mandamento
de Deus por causa da sua tradição" (versos 4, 5, 6). Esta tradição dos
fariseus não se tornou tão prevalente, o que obscureceu o discurso de Cristo
sobre ela, resultando em várias interpretações divergentes entre os estudiosos;
porém, esta interpretação que aqui aplicamos é a mais adequada ao contexto e à
intenção de Cristo. Mas retornemos do desvio ao tema proposto.
O segundo argumento, que toca os pontifícios (que ensinam que, após a puberdade [pubertatis],
os filhos podem obrigar-se por voto à religião sem o consentimento dos pais), é
o seguinte: Ninguém pode oferecer a Deus o que pertence a outrem, contra a
vontade daquele a quem pertence; pois tal ato é abominável a Deus. Ora, quem
pronuncia tal voto oferece a Deus o que pertence aos pais, contra a vontade dos
pais, pois retira o direito dos pais ao sujeitar-se a outra autoridade;
portanto, faz algo que ninguém deve fazer e que é extremamente desagradável a
Deus.
O terceiro argumento. Na lei de Deus, em Números 30:3, o voto de uma mulher que havia
feito um voto na casa de seu pai, enquanto ainda estava em sua juventude, era
anulado por Deus se o pai o contradissesse. No entanto, nunca houve um voto que
permitisse aos filhos assumir uma condição de vida por causa da religião que os
libertasse da autoridade dos pais; portanto, se não era permitido fazer o
mínimo voto contra a vontade dos pais, como poderia ser permitido fazer um voto
que diretamente contrariasse o direito dos pais?
Quarto argumento. O que é temerário e condenável fazer sem consultar os pais, é muito
mais ímpio fazer contra a vontade dos pais. Ora, ninguém em sã consciência
jamais julgou lícito a um jovem de dezesseis anos ou a uma moça de quinze anos
deliberar, e até mesmo decidir, sobre o tipo de vida a ser escolhido sem o
conhecimento e o conselho dos pais. O que dizer, então, se tais jovens
decidirem, contra a vontade dos pais, sobre um tipo de vida que, de alguma
forma, os afasta do dever de obedecer e servir aos pais?
O SEXTO MANDAMENTO
"Não matarás"
Este mandamento nada mais é do que uma
repetição da lei em Gênesis 9:6, que diz: "Quem derramar o sangue de um
homem, pelo homem o seu sangue será derramado". Agem contra este
mandamento aqueles que, de qualquer maneira, matam o próximo por meio de um ato
externo, seja de que forma for, seja com a mão, seja com uma espada, seja com
um bastão, etc. Por isso, também se deve julgar como homicida quem deu causa
eficaz à morte, como aqueles que impedem a concepção, que expulsam o feto do
útero, que provocam o aborto com poções ou outros meios, que agridem mulheres
grávidas, e até aqueles que, imprudentemente e sem conhecimento da arte médica,
prescrevem remédios que causam dano.
Agora, vamos explicar algumas questões que
costumam ser levantadas em torno deste mandamento e que são de maior
importância.
A primeira será: é permitido a alguém causar a própria morte em alguma
circunstância? Negamos isso. 1. Ninguém deve privar-se da vida sem a
permissão de Deus. Aquilo que Deus proíbe em sua lei não deve ser feito. Deus
proíbe o suicídio em sua lei. Portanto, não deve ser feito. A menor premissa é
provada: porque não se acrescenta "o próximo", como na lei sobre
falso testemunho. 2. Mesmo que fosse acrescentado, o argumento ainda valeria,
pois aquilo que não devemos causar de mal ao próximo, também não devemos causar
a nós mesmos. A razão é que devemos amar o próximo como a nós mesmos: portanto,
o que devemos ao próximo, devemos a nós mesmos, e vice-versa, de modo que a
razão é equivalente.
Objeção: o
exemplo de Sansão, que matou a si mesmo junto com os inimigos, ao derrubar o
templo sobre eles. Resposta: Isso foi feito por um instinto singular;
por isso, Agostinho diz: "O Espírito Santo ordenou secretamente isso,
pois por meio dele realizava milagres".
Segunda questão: em algum caso é permitido a um particular matar alguém? Resposta:
é permitido nesse caso, quando defendemos nossos entes queridos de um ataque
mortal ou quando defendemos o próprio corpo contra a violência, de modo que
matamos o agressor por uma necessidade inevitável, porque não podemos fugir ou
defender a vida de outra forma. Mas isso deve ser feito sob estas condições: 1.
Que a força seja repentina, de modo que não possamos escapar de outra maneira.
2. Que a força seja evidente, e não possamos proteger a vida de outra forma
senão ferindo ou matando. 3. Que se observe a moderação na defesa. Para isso, é
necessário, 1. Que a defesa seja imediata, pois se for feita após algum
intervalo, é vingança, não defesa. 2. Que se tenha apenas a intenção de se
defender, não por impaciência ou desejo de vingança. 3. Que haja proporção nos
instrumentos, para que não se atire imediatamente com um canhão contra alguém
que o ataca sem colocar em risco iminente sua vida. 4. Que não matemos
imediatamente, se pudermos escapar infligindo apenas um ferimento. 5. Que a
intenção primária não seja matar o próximo, mas apenas defender o próprio
corpo. Se, portanto, em tal caso e observadas essas limitações, o agressor for
morto, o que se deve pensar de tal ato? Resposta: O ato é lícito, pois é
permitido pela Escritura, em Êxodo 22:2.
A terceira questão é: é lícito para um magistrado cristão aplicar a pena capital a
criminosos? Os adversários negam isso, alegando que, sob o Evangelho, Cristo
aboliu ou pelo menos mitigou muito as penas dos malfeitores. O que poderia ser
mais absurdo de se dizer ou pensar? Que Cristo teria trazido impunidade e
imunidade dos castigos para os malfeitores? O que mais seria isso senão
conceder licença para pecar e liberar as rédeas para a desenfreada cobiça
humana em cometer malefícios? Isso significaria que aquele que veio para destruir
as obras do Diabo estaria, na verdade, ampliando seu reino, e que aquele cujo
julgamento veio ao mundo e que expulsou o príncipe deste século estaria
causando completa confusão? Como, no entanto, os pecados aumentam e se
multiplicam com o advento do Evangelho e a maior compreensão das coisas e a
abundante efusão do Espírito, certamente é justo que as penas também aumentem,
em vez de diminuírem (muito menos serem abolidas) com a vinda de Cristo. O
Evangelho não é contrário à Lei. Daí que Moisés e Elias, o legislador e o
restaurador, na transfiguração, dialogam com o Salvador como se estivessem em
plena concordância, e que Paulo confirma em Romanos 3:21-22 que a justificação
pela fé é testemunhada pela Lei, e em 1 Timóteo 1:10-11 pronuncia que os crimes
proibidos pela Lei são contrários à sã doutrina do Evangelho.
O primeiro argumento em favor desta posição
tiramos de Romanos 13:3. Pois, depois de falar sobre o magistrado civil, Paulo
acrescenta: "Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem e
terás louvor dela". Smalcius, em sua resposta a Frantzius, argumenta
contra isso da seguinte forma: "O trecho de Romanos 13 não apoia a
causa de Frantzius, pois, em primeiro lugar, é certo que Paulo fala de um
magistrado infiel, ao qual não cabia ao apóstolo prescrever leis. No entanto,
porque tal magistrado tinha suas próprias leis políticas, segundo as quais
governava seus súditos, Paulo admoesta os fiéis a não resistirem a essas leis
enquanto políticas, argumentando, entre outras razões, que o magistrado poderia
punir os desobedientes." Mas não te saíras assim tão facilmente,
Smalcius. Primeiro, perguntaremos a ti de onde, no Novo Testamento, foi dito
que um magistrado fiel tenha executado essas penas? Em segundo lugar,
perguntaremos por que Paulo chama esse magistrado de ministro de Deus e não um
qualquer, mas aquele estabelecido por ordenação divina? Terceiro, Deus
estabelece e constitui algum poder sem lhe prescrever certas leis? Por isso,
algumas coisas feitas por esse poder são justas; outras, na medida em que se
desviam das leis divinas, são injustas. Perguntaremos em quarto lugar: se isso
não contraria a Deus, não seríamos obrigados a acatar esses julgamentos? Pois,
se esses julgamentos desagradam a Deus, por que não os rejeitamos? Por que não
aplicamos aqui Atos 5:29: "Importa obedecer antes a Deus do que aos
homens"?
Tu dirás que essa situação é semelhante à
quando se cai nas mãos de ladrões, onde se deve suportar os danos que eles
infligem, sem protestar. Respondemos: Mas é permitido ao menos acusar os
ladrões de latrocínio, como algo que Deus abomina; será que te será permitido
acusar o magistrado e seus julgamentos da mesma forma? Se afirmas isso, então
essas palavras não podem permanecer, "por causa da consciência"
(v. 5). Pois aquilo que concedemos ao ladrão, o fazemos sob coerção, não por
causa da consciência, mas pela preservação da vida, fora de qualquer julgamento
de consciência. Portanto, quer o magistrado ordene coisas justas ou injustas,
deves sujeitar-te a ele, pois é isso que ele quer de ti. Mas se dizes, como
deves dizer, que, se ele te ordena algo injusto (por exemplo, dar falso
testemunho contra alguém, ou eliminar alguém), tu não deves obedecer; não
estarás, portanto, admitindo que as outras coisas nas quais deves sujeitar-te a
ele são justas? E se isso for verdade, ousarias afirmar que Deus proíbe as
coisas justas?
O segundo argumento que apresentamos sobre
esta questão é tirado do mesmo capítulo, versículo 4: "Se, porém,
fizeres o mal, teme, pois não é à toa que ele traz a espada. Ele é ministro de
Deus, vingador para castigar o que pratica o mal". Daqui, se ele traz
a espada, é para usá-la. E o uso da espada, como as palavras de Cristo deixam
claro em Mateus 26:52, é específico: "Quem com a espada ferir, com a
espada será morto". Smalcius responde a isso dizendo: "Este
trecho não ensina de que maneira os culpados podem e devem ser punidos; pois o
magistrado pode trazer a espada mesmo sem impor as penas mais severas. O fato
de portar a espada significa apenas que o magistrado tem o poder de punir, mas
não indica de que modo deve punir; caso contrário, seguir-se-ia que em todos os
delitos a pena mais severa deveria ser aplicada, já que o fato de portar a
espada é dado pelo apóstolo como uma razão pela qual se deve obedecer ao
magistrado em todas as coisas. No entanto, de que modo o magistrado cristão
deve punir, isso deve ser aprendido de outra parte, a saber, de toda a analogia
do Novo Testamento. Além disso, um cristão pode temer o magistrado, mesmo que
este não aplique todos os tipos de punições, inclusive as mais severas."
Reconheço que o termo "espada" aqui é tomado como qualquer coerção
legítima, mas ao mesmo tempo nego que essa coerção exclua aquela que é
propriamente a da espada. Minhas razões são as seguintes: Primeiro, porque com
que direito os magistrados fiéis exerceram as penas capitais, senão por que
lhes foi dado o poder da espada para isso? Segundo, os adversários não poderão
apresentar outro argumento em sua defesa, exceto este, que isso contraria a
perfeição ordenada no Novo Testamento e o amor ao próximo. Mas ambos esses
argumentos são sem fundamento. Pois a perfeição é a mesma tanto no Velho como
no Novo Testamento, e o amor é o mesmo, como se pode ver no resumo da lei, que
é o mesmo tanto no Velho como no Novo Testamento: "Amarás o teu próximo
como a ti mesmo". No entanto, com esse resumo da lei estando presente no
Velho Testamento, era permitido punir com a espada os culpados; e, se isso não
será permitido mantendo-se o resumo no Novo Testamento, então os adversários
devem explicar.
O terceiro argumento que apresentamos é
baseado nas palavras de Cristo em Mateus 26:52: “Todos, disse ele, que
lançarem mão da espada, pela espada perecerão.” O mesmo ocorre após a
ascensão de Cristo, como se vê em Apocalipse 13:10: “Se alguém deve ser
morto à espada, é necessário que ele seja morto à espada.” Responde
Smalcius ao primeiro lugar: mas, como já ensinamos em outro lugar, neste texto
Cristo apenas prediz o que acontecerá, se alguém tomar a espada; não ensina o
que pode ou deve acontecer segundo o direito. Da mesma forma, hoje alguém que
nega que é permitido matar pode ser dissuadido dessa leveza com tal argumento,
que o destino que ele enfrenta é conforme a justiça: pois é comparado de tal
maneira que aqueles que tomam armas perecem por armas. Portanto, não é
especificado quem deve causar a morte, aquele que toma a espada, ou seja, o
Magistrado, como afirma Frantzius; contudo, alguém pode perecer pela espada sem
qualquer pena. Assim argumenta Smalcius. Mas, em contraste, se a questão é se a
predicação se aplica aqui, então a predicação no outro lugar deve ser
igualmente aplicável, como em Gênesis 9:6: “Quem derramar o sangue do homem,
pelo homem seu sangue será derramado.” Da mesma forma, em Êxodo 21:12: “Quem
ferir alguém de modo que morra, morrerá.”
Smalcius afirma que é inadequado dizer que
Cristo prediz o que acontecerá a tais pessoas, e não o que deve ocorrer
conforme a justiça. Pois, se Cristo censura um ato conforme a lei de Deus, ele
também indica o que a lei de Deus prevê para esse ato. Quanto ao lugar em
Apocalipse 13:10, Smalcius diz que se pode confirmar a lei sobre o castigo
capital por parte do Magistrado, já que ninguém é especificamente nomeado como
quem deve executar a pena com a espada. É incerto entender que isso se refere
ao Magistrado, pois muitos matam com a espada sem necessariamente serem
punidos, ou até mesmo podem ser punidos pelo Magistrado; aqui, no entanto, a
afirmação é sobre o que não pode ser de outra forma, ao dizer que é necessário
que ele seja morto à espada.
A resposta é que, se não é nomeado quem
deve derramar o sangue de quem derrama sangue, ele é nomeado em outro lugar,
nomeadamente em Romanos 13:4, uma autoridade superior, que não leva a espada
sem causa. As Escrituras são escritas com método histórico, onde não se coloca
em um lugar todas as coisas que pertencem a um assunto a ser completamente
descrito, mas sim, as coisas são reunidas de vários lugares em um só corpo, que
se referem à declaração de um assunto específico. O mesmo se aplica ao texto de
Êxodo 21:12, que não nomeia especificamente quem deve executar a pena ao
homicida; mas isso é contido em outros lugares, como em Números 35 e
Deuteronômio 17, por analogia.
Quanto ao argumento sobre a palavra "é
necessário", se é que você se opõe, deve ser considerado que se refere à
segunda acepção, que implica o dever do Magistrado, e, portanto, é um dever do
Magistrado matar tais pessoas com a espada. Assim, se aceitarmos a segunda
interpretação, sua resposta, Smalcius, falha. O maior silogismo é provado pela
utilização geral da palavra “é necessário”, pois ela nunca é encontrada exceto
em uma das três significações possíveis. Portanto, deve-se entender “é necessário”
na segunda acepção, e, portanto, é um dever do Magistrado executar tal pena com
a espada.
Adicione a isso o texto de Mateus 15, onde
Cristo expressamente aprova a lei de Moisés, que determinava que quem
maldissesse pai ou mãe fosse punido com pena capital.
A quarta questão é: é permitido a um cristão fazer guerra? Socinus nega isso. Assim,
ele afirma em seu livro de epístolas, pág. 498: “Sobre a expedição desse
tipo de guerra geral, eu acreditaria que, se não houver nenhum outro modo de
evitar a destruição ou a perda de bens, ou de satisfazer a necessidade de pagar
dinheiro, com o qual alguém poderia ser contratado para substituir-te, sem
violar os preceitos de Cristo, então é permitido armar-se e partir, desde que
se abstenha de matar ou mutilar membros de outros. De outro modo, eu não vejo
como o perigo, que não ameaça o que está partindo, pode ser evitado sem violar
a obediência a Cristo.” No entanto, a afirmação é verdadeira, como se
mostrará a partir dos argumentos seguintes.
O argumento é o seguinte: em relação a
isso, é tirado do Antigo Testamento, onde são lidos muitos exemplos de guerras
que foram ordenadas ou aprovadas por Deus ao Magistrado. Portanto, é permitido
ao Magistrado cristão fazer guerra. Os adversários respondem que há uma
diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, pois as leis e preceitos do
Antigo Testamento foram ou ab-rogados ou corrigidos por Cristo. Respondemos que
isso é vã e deriva da falsa hipótese de que uma certa perfeição maior é
prescrita no Novo Testamento do que no Antigo. Pois, quer olhe para o primeiro
ou para o segundo tabuleiro, a mesma perfeição era prescrita; o que é evidente
pelo resumo da lei, que é o mesmo tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.
O segundo argumento que apresentamos sobre
este assunto é baseado em Lucas 3:14, onde João ordena aos soldados que vivam
contentes com seus salários e não extorquem ninguém, o que claramente não teria
sido dito se ele condenasse as guerras. Smalcius responde a Frantzius com as
seguintes palavras: "Que relação têm as palavras de João Batista
conosco, para que possamos derivar delas uma norma de vida? João Batista não
era a luz que devia nos iluminar; Cristo é a luz verdadeira que ilumina todo
homem. João estava apenas começando a pregar o Evangelho, pregando apenas
arrependimento, e isso apenas em parte, sem ensinar o que exatamente deveria
ser seguido pelos cristãos em relação a coisas completamente novas. Quem é
menor no reino dos céus é maior que João Batista, ou seja: cada cristão possui
mais conhecimento da vontade divina do que João Batista, assim como João era
maior que todos os profetas, porque tinha mais conhecimento da vontade divina
do que todos os profetas anteriores." Smalcius, no entanto, está
errado, pois baseia seu raciocínio em várias suposições inadequadas. Primeiro,
ele pressupõe erroneamente que o Evangelho não era conhecido antes de Cristo.
Mas, se não era conhecido, como Paulo, ao ensinar o Evangelho, afirma que ele
não ensinou nada além de Moisés e dos Profetas? (Atos 26).
A segunda hipótese inadequada é que João
não era aquela luz que ilumina todo homem que vem ao mundo; portanto, nada do
que ele ensinou nos diz respeito. Se isso fosse verdade, então Moisés, os
Profetas, os Apóstolos e os Evangelistas seriam igualmente irrelevantes, pois
nenhum deles era essa luz. Portanto, Smalcius está errado, conforme Lucas 1:17,
que diz: "Ele irá diante do Senhor com o espírito e poder de Elias,
para converter os corações dos pais aos filhos e os desobedientes à prudência
dos justos, para preparar para o Senhor um povo bem disposto." Veja,
Smalcius, não eram as instruções de João que se dirigiam àqueles que davam nome
a Cristo? Se assim era, então também se dirigiam a nós. Além disso, se as
coisas que João ensinava não dizem respeito a nós, então ou nada diz respeito a
nós, ou apenas algumas coisas. Mas não se pode dizer que nada diz respeito a
nós. Pois, se nada, então também não se aplicaria a isso. Por exemplo, "Arrependei-vos,
porque o reino dos céus está próximo" (Mateus 3:2), e "Produzi
frutos dignos de arrependimento", e muitos outros semelhantes são
lidos neste e em outros capítulos das Escrituras. Se algumas coisas se aplicam,
Smalcius deveria ter adicionado uma nota indicando quais se aplicam e quais não
se aplicam, já que, ao não fazê-lo, você mostra que usa esse tipo de resposta
não para o que deveria, mas para evitar dizer qualquer coisa relevante. Pois o
que ele adiciona, de que no Novo Testamento cada cristão possui mais
conhecimento do que João teve, assim como João era maior do que todos os
profetas, é tão inadequado quanto nas alegações anteriores. Pois como pode um
cristão ter mais conhecimento da vontade de Deus do que João, se João Batista
teve mais desse mesmo conhecimento do que os profetas? Ou, se João Batista teve
mais conhecimento do que os profetas, então qualquer cristão deve ter mais
conhecimento do que os profetas. Isso é o que se prova, pois, se cada cristão
possui mais conhecimento do que os profetas, então essas passagens das
Escrituras, como Efésios 2:20, "edificados sobre o fundamento dos
Apóstolos e Profetas", são vãs. Pois, como pode alguém confiar em
escritos se ele sabe algo melhor? Você dirá: Os profetas estão unidos aos
apóstolos, e não é dito que eles estão sozinhos, mas sim em conjunto com os
apóstolos. Respondo que isso é desfeito pelo fato de que os apóstolos tinham o
que ensinar a partir dos profetas (At 17:26). Além disso, este lugar não se
sustenta, como está em 2 Pedro 1:19: "Temos também a palavra profética
mais segura, à qual fazeis bem se atendendo, como a uma luz que brilha em lugar
escuro." Pois, por que devemos prestar atenção a essas coisas que nós
superamos? (Se devemos acreditar em Smalcius.) Isso seria o mesmo que ordenar a
uma pessoa instruída que preste atenção às primeiras letras do alfabeto, que
são apresentadas às crianças. Isso mostra qual é o lugar da Velha Aliança.
Pois, como devem ser explicadas as palavras: "Quem é menor no reino dos
céus, é maior do que João Batista"? Deixo de lado, já que isso está
suficientemente estabelecido em nossos escritos mais eruditos; para mim, é
suficiente ter exposto a falácia da explicação de Smalcius.
Agora passemos ao terceiro argumento. Este
buscamos na Epístola aos Romanos, capítulo 13, onde se afirma que o Magistrado
é ministro de Deus, vingador para aplicar a ira àquele que pratica o mal. Pois,
se o Príncipe deve punir com a espada um ladrão privado, ele também deve, pela
espada, vingar-se do inimigo público, que ameaça a religião, os bens, a paz, a
saúde e a castidade de seus súditos. Smalcius responde a Frantzius a este
respeito, no folio 395, da seguinte maneira: "Já decidimos antes que
isso foi dito sobre o Magistrado em geral ou, mais precisamente, sobre o
infiel. Este, portanto, que não está sob o jugo de Cristo, poderia de fato
vingar com guerras a injúria infligida a si mesmo e a seus súditos, mas isso
não implica que seja lícito ao Magistrado cristão fazer guerra. Embora esse
texto não fale de uma vingança pública a ser empreendida contra um inimigo. O
que isso teria a ver com o fato de que o Magistrado deve ser temido, por que
pode fazer guerra? A fala se refere propriamente à vingança privada que o
Magistrado pode exercer contra seus súditos." O Magistrado,
especialmente o infiel, pode exercer essa vingança quando quiser; mas a
situação da guerra é bem diferente. Pois, quer o Magistrado faça guerra ou não,
ele é sempre ministro de Deus, vingador para aplicar a ira àquele que pratica o
mal. Respondemos: isso é falso, que se referisse apenas ao Magistrado
infiel. Considere, Smalcius, que Moisés, Josué, Davi e outros reis muito
piedosos foram magistrados infiéis? Você poderia argumentar que a situação no
Antigo Testamento era diferente. Mas isso precisa ser demonstrado, pois não se
pode provar verdadeiramente que isso fosse eterno, a menos que se parta do
princípio, ou seja, a menos que você recorra à sua hipótese inadequada de que
uma perfeição maior é exigida no Novo Testamento em comparação com o Antigo Testamento,
ou um modo de vida mais rigoroso. Segundo, o que ele responde: "Não se
fala, diz ele, de uma vingança pública a ser empreendida contra o inimigo: o
que isso teria a ver?" Na verdade, teria tudo a ver. Pois se pode
perguntar a você, Smalcius: Acaso Abraão, Davi e outros piedosos tomaram
vingança contra inimigos, reis, e príncipes estrangeiros que atacaram seus
súditos, ou por outra razão? Se você nega, será facilmente refutado pelas
Escrituras Sagradas, onde ocorrem muitos exemplos desse fato. Se você afirma,
dirá com que direito fizeram isso, se o fizeram legitimamente, a menos que a
espada lhes tenha sido dada para vingança. Quanto ao que diz: "Pode ser
um ministro para a ira, mesmo que não faça guerra", não leva em conta
o fato de que ali se faz menção à espada. Não há razão para pensar que a
palavra "espada" deva ser tomada em sentido figurado. Pois isso seria
refutado pela prática do Antigo Testamento, bem como pelos preceitos dados sobre
este assunto, que podem ser vistos ali.
O quarto argumento com o qual provamos isso
é o seguinte: Deus ajuda as guerras justas, o que de modo algum faria se a
guerra fosse ilícita, pois o mal pode ser permitido, mas não se daria auxílio
para realizá-lo. Em Gênesis 14, a Abraão, depois que derrotou quatro reis com
apenas 318 de seus servos, foi dito por Melquisedeque: "Bendito seja o
Deus forte e elevado, que entregou os teus inimigos em tuas mãos." Em
Êxodo 17, Deus, em resposta às orações de Moisés, deu vitória aos israelitas
contra Amaleque. Em Josué 10, quando Josué lutava, o sol parou, e o Senhor fez
chover grandes pedras do céu, e Deus matou mais com pedras de granizo do que os
filhos de Israel com lanças e espadas. Concluímos o seguinte: a quem foi
divinamente confiada a responsabilidade e a proteção dos súditos, a este é
concedido repelir os inimigos, pois, de outro modo, ele não pode proteger os
súditos. Mas ao Magistrado foi divinamente confiada essa responsabilidade.
Portanto, também lhe é concedido repelir os inimigos. Mas os adversários caíram
na insensatez de pensar que as guerras simplesmente não podem ser compatíveis
com a doutrina do Evangelho. Nisso, pressupõem tolamente que no Antigo
Testamento não havia a doutrina do Evangelho, o que refutamos com este único
argumento: Paulo anunciou perfeitamente todo o conselho de Deus, e também a
doutrina do Evangelho, Atos 20:27. Mas Paulo não ensinou nada além de Moisés e
dos Profetas, Atos 26:22. E certamente o Evangelho não elimina as políticas,
nem as Repúblicas, mas antes as estabelece e fortalece; de fato, os meios
ordenados por Deus para estabelecer e manter a ordem são aprovados. Daí a
palavra de Cristo em Mateus 22: "Dai a César o que é de César, e a Deus
o que é de Deus." E também a palavra de Paulo em Romanos 13: "Por
isso também pagais tributos, porque são ministros de Deus dedicados a este
serviço." Portanto, pagai a todos o que deveis: a quem tributo,
tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra.
Isso também é comprovado pelo testemunho de Paulo, que em 1 Coríntios 9:7
escreve: "Quem milita alguma vez à sua própria custa?" Com
essa frase, ele não obscurece a aprovação do serviço militar, mas sugere que os
soldados sejam devidamente pagos. Isso é igualmente comprovado pelo exemplo do
centurião, cuja fé foi elogiada por Cristo em Mateus 8:10. Ele permaneceu
centurião e comandante de soldados mesmo após se tornar cristão, e não se lê
que ele tenha mudado espontaneamente de vida, nem que Cristo tenha sugerido que
o fizesse. Mas outro exemplo, o de Cornélio, também comprova isso, pois, embora
vivesse em estado militar e fosse comandante de uma coorte italiana, ainda
assim podia ser um homem religioso e temente a Deus com toda a sua casa,
fazendo muitas esmolas ao povo e sempre orando a Deus, tanto que suas orações
subiram à presença de Deus, Atos 10:2. Mas como os adversários poderiam
argumentar que primeiro deveria ser discutido se é lícito para um cristão
ocupar um cargo de Magistrado, antes de demonstrar quais são os deveres desse
cargo.
Portanto, em quinto lugar, pergunta-se: É
permitido a um cristão exercer o cargo de magistrado? A resposta ortodoxa é
afirmativa. Apresentamos os seguintes argumentos para sustentar essa posição.
Primeiro, porque as Sagradas Escrituras
dignificam o magistrado com os mais honrosos elogios, tanto no Antigo como no
Novo Testamento. No Antigo Testamento, são chamados "deuses" (Salmo
82:6 e 1 Samuel 2:25), título que Cristo confirmou em João 10:35, quando disse:
"Se ele os chama de deuses, a quem a palavra de Deus foi dirigida".
O segundo argumento é que se deseja que a
maior reverência seja prestada a eles, conforme está em Eclesiastes 10:20, onde
se diz: "Não amaldiçoes o rei, nem mesmo em pensamento, nem no teu
quarto amaldiçoes o rico, porque as aves dos céus levarão a voz, e o que tem
asas anunciará a palavra". Esse ponto é corroborado no Novo Testamento
por Judas em sua Epístola, versículo 8, quando condena aqueles que rejeitam o
domínio e insultam as dignidades. Do mesmo modo, Pedro se opõe àqueles que
desprezam o domínio (mesmo que fosse pagão) de seus tempos e que, audaciosos e
autossuficientes, não temem insultar as dignidades.
O terceiro argumento é que somos exortados
a oferecer preces pelos magistrados. Assim, Jeremias 29:7 diz: "Procurai
a paz da cidade para a qual vos fiz deportar, e orai por ela ao Senhor, porque
na paz dela vós tereis paz". Aqui, somos orientados a orar pelo
magistrado pagão babilônico; semelhantemente, o apóstolo Paulo exorta, em 1
Timóteo 2:1-2, que se façam deprecações, orações, intercessões e ações de
graças por todos os homens e por todos os que estão em posição eminente, para
que possamos levar uma vida tranquila e pacífica, com toda piedade e
honestidade.
O quarto argumento é que Cristo
expressamente ordena que se dê a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus (Mateus 22:21), ou seja, ele deseja que o tributo seja pago. Paulo ensina
a mesma coisa em Romanos 13:7, quando diz: "Dai a cada um o que lhe é
devido: tributo a quem tributo, imposto a quem imposto, temor a quem temor,
honra a quem honra".
O quinto argumento que apresentamos provém
do fato de que os magistrados são chamados de servos de Deus. Em 2 Crônicas
19:6, Josafá exorta seus juízes a que vejam bem o que julgam, pois, diz ele,
"não julgais para o homem, mas para o Senhor, e ele estará convosco no
julgamento". Como se dissesse que os juízes julgam em lugar de Deus.
De modo semelhante, em Romanos 13, o magistrado é chamado de "ministro
de Deus para o bem", e "ministro de Deus, vingador para
castigar aquele que pratica o mal".
O sexto argumento que apresentamos é
extraído das leis. Se as leis foram divinamente promulgadas e seu exercício
prescrito, então certamente se segue necessariamente que deve haver
magistrados. O primeiro ponto é verdadeiro, e, portanto, também o segundo.
Sobre a veracidade da premissa, ninguém que leia Moisés duvida, o que é também
reiterado em Romanos 3:4. A consequência é evidente por si só. Pois quem,
pergunto eu, poderá exigir o cumprimento das leis, se não o magistrado? A este,
todas as coisas divinamente foram confiadas, como fica claro em vários trechos,
inclusive em Romanos 13.
Pode-se argumentar que as leis mosaicas
foram abolidas ou corrigidas por Cristo, de modo que, embora anteriormente o
magistrado devesse punir com severidade, agora isso não é mais permitido.
Respondemos que isso é falso: o Novo Testamento também deseja isso, como
aparece em Romanos 13, assim como em Apocalipse 13:10 e Mateus 26:52. Daí se
deduz claramente que Mateus 5 não se refere à Lei de Moisés, mas às corrupções
farisaicas.
Se a vingança não é proibida ao magistrado,
então o argumento de que a Lei de Moisés exige vingança enquanto Cristo a
proíbe é inválido. Isso levaria à conclusão errônea de que a Lei de Moisés e a
de Cristo prescrevem ordens contraditórias, o que, por conseguinte,
significaria que não são a mesma e única lei.
Cristo não proíbe a vingança pública, mas
trata da vingança privada; caso contrário, ele se contradiz em Mateus 26:52.
Pode-se dizer que, nos lugares citados, se
afirma que ocorrerá que quem levar ao cativeiro será levado ao cativeiro, e
quem derramar sangue, terá seu sangue derramado. Mas isso não significa que
seja ordenado por Deus. Do mesmo modo, a Escritura diz que é necessário que
escândalos aconteçam, mas não se pode concluir que os escândalos ocorram por
ordem de Deus. Respondemos: aqui a situação é completamente diferente. Deus
nunca é autor de escândalos; mas ele é o autor do mal que é infligido aos
ímpios, como o Espírito Santo ensina amplamente, por exemplo, em Isaías 10. Daí
também a passagem de Amós 3: "Não há mal na cidade que o Senhor não
tenha feito". Se ele é o autor, então essas ações são boas; por que,
então, se poderia dizer que são proibidas ao magistrado cristão, especialmente
se eram permitidas no Antigo Testamento? Deus quis que os homens do Novo
Testamento fossem melhores do que os do Antigo Testamento? E que razão,
pergunto eu, pode ser dada para isso? Além disso, o magistrado é expressamente
chamado de instrumento de Deus, e ele mesmo é quem lhe confere a espada para
punir os maus e recompensar os bons (Romanos 13).
Agora, vamos às objeções. Primeiramente,
afirma-se contra o magistrado que foi Ninrode quem primeiro instaurou a
monarquia, e a Escritura parece condená-lo por isso. Além disso, Deus declarou
estar descontente com o fato de os israelitas, imitando as nações, terem
escolhido um rei para si, como registrado em 1 Samuel 8. Isso parece indicar
que o ofício de magistrado desagrada a Deus. Respondemos: 1. Isso
poderia talvez concluir que a monarquia, ou seja, a forma de governo que é a
monarquia, desagrada a Deus, mas não que todo tipo de governo, e assim todo
magistrado, desagrada. Pois também inferimos com certeza que a ordem política
foi estabelecida por Deus no próprio paraíso, o que pode ser deduzido do fato
de que os primogênitos eram colocados acima dos outros irmãos. Veja, por
exemplo, Gênesis 27:31. E certamente, antes que os israelitas escolhessem um
rei, não lhes faltavam magistrados, como se pode ver no livro dos Juízes.
Segundo, respondemos: embora Nimrod tenha instaurado a monarquia e, assim,
aspirado ao domínio sobre todos os outros magistrados então existentes no
mundo; embora os israelitas finalmente tenham escolhido um rei imitando as
nações, Deus mesmo aprovou essa ordem superior de magistrado político quando
Cristo confirmou a preeminência de César em Mateus 22, e o apóstolo Paulo
apelou do juiz inferior a César em Atos 25, e ele também deseja que sejam
feitas preces até mesmo pelos reis.
É levantada uma segunda objeção:
Como pode o magistrado derivar sua origem de Deus, quando Deus expressamente
afirma em 1 Samuel 8 que a intenção do rei será tomar os filhos dos súditos e
fazer deles seus servos? Além disso, que ele tomará seus bens e os entregará
aos seus ministros? Pode-se, então, dizer que Deus é o autor de uma ordem que
age dessa maneira? Isso parece absurdo. Respondemos: 1. Não se trata
aqui de qualquer magistrado, mas especificamente do rei. Em segundo lugar,
Piscator, em seus comentários sobre este trecho, responde: "A conduta do
rei, como já mencionado no capítulo 2, versículo 13 (em hebraico, משפט
[juízo]), continuará dessa forma. Pois aqui não se descreve o direito legítimo
do rei, mas um direito usurpado. Porque, se fosse permitido aos reis agir dessa
maneira pelo direito divino, Deus não teria punido Acabe por tomar à força a
vinha de Nabote, e Acabe teria exercido esse direito legalmente ao tomar a
vinha de Nabote pela força, ao invés de pedir que ele a vendesse". Veja 1
Reis 21. Ademais, o termo hebraico também tem essa significação em outros
contextos, como em 1 Samuel 27:11, onde se fala das ações de Davi enquanto
estava em Ziclague, dizendo: "Assim fez Davi, e assim foi o seu costume
durante todos os dias que habitou no campo dos filisteus".
Sexta questão: O duelo é em algum caso lícito? Respondemos: Se for lícito
em algum caso, será apenas neste caso, quando, no contexto de um exército, para
evitar o perigo de perder toda a tropa, a sorte de todos seja colocada no risco
de dois combatentes. Portanto, se o príncipe estiver conduzindo uma guerra justa
e temer, com razão, ser derrotado, a menos que a guerra se converta em duelo,
acreditamos que, neste caso, será lícito ao príncipe não apenas aceitar o
duelo, mas também oferecê-lo e provocá-lo.
O SÉTIMO MANDAMENTO
“Não cometerás adultério”
O adultério ocorre de três maneiras: 1.
Quando uma pessoa casada mantém relações com uma pessoa solteira; 2. Quando uma
pessoa solteira mantém relações com uma pessoa casada; 3. Quando duas pessoas
casadas mantêm relações entre si, sendo que o adultério é sempre um pecado
grave, veementemente condenado nas Escrituras, tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, como em Gênesis 39,7 e Levítico 20,10. No entanto, é certo que,
entre essas três formas de adultério, a última é a mais grave, e a segunda é
mais grave que a primeira, devido à implicação de uma prole ilegítima.
Os juristas entendem o termo
"estupro" como a coabitação de um homem casado com uma mulher livre,
e consideram todo adultério a partir da mulher, não do homem; nossos teólogos,
porém, com base na palavra de Deus, tomam o termo em um sentido mais amplo. Com
efeito, eles ensinam que, por essa proibição, toda impureza é condenada; pois,
sendo diversas as espécies desse pecado, umas mais graves que outras, e dado
que a Lei é perfeita, proibindo todos os pecados e recomendando todas as
virtudes, deve-se concluir que todas as formas de luxúria estão incluídas sob
alguma parte da Lei, e não há outra parte que possa abarcar essas
transgressões, senão a do sétimo mandamento. Por isso, Paulo as reúne em uma
única categoria em Gálatas 5,16, onde, ao listar as obras da carne, menciona
fornicação, impureza, luxúria e adultério.
Em relação a este mandamento, as seguintes
questões são frequentemente levantadas:
Primeira questão: Pode a simples fornicação ser desculpada como pecado? Responde-se
que as Escrituras condenam expressamente a fornicação; no Antigo Testamento,
temos a passagem em Deuteronômio 22.20-21, que fala sobre a jovem que não foi
encontrada virgem, devendo ela ser levada para fora da casa de seu pai e
apedrejada, pois cometeu um ato infame em Israel, ao se prostituir na casa de
seu pai; e em Deuteronômio 23.17, onde se diz que não deve haver prostituta
entre as filhas de Israel. No Novo Testamento, em 1 Coríntios 6.18, lemos que
os fornicadores e adúlteros não herdarão o Reino de Deus, e logo depois é dito:
"Tomarei eu os membros de Cristo e farei deles membros de uma
prostituta?"
Segunda questão: É permitido a uma pessoa contrair matrimônio com várias outras, ou
seja, é a poligamia lícita? Responde-se que não é lícito a um cristão ter
várias esposas ao mesmo tempo. 1. Porque as Escrituras Sagradas proíbem, em
Gênesis 2.24, um texto que é aprovado e explicado pelo próprio Cristo em Mateus
19.4-6. 2. Porque o homem não tem poder sobre seu próprio corpo, mas a mulher
tem; e vice-versa, conforme 1 Coríntios 7.4. Portanto, como os cônjuges não têm
poder sobre si mesmos, não podem conceder esse poder a outros. 3. Porque o amor
conjugal, tal como Deus ordena, não pode existir entre várias pessoas, conforme
Efésios 5.25 e 28. Quanto ao exemplo dos Patriarcas, que tiveram muitas
esposas, ou que adicionaram concubinas às suas esposas, como Abraão fez com Quetura,
Jacó com Lia e Raquel, e Salomão que teve mais de trezentas, responde-se que os
Patriarcas pecaram gravemente nesse aspecto, pois, uma vez que Deus estabeleceu
o número de cônjuges no matrimônio, como está em Gênesis 2, qualquer pessoa que
ultrapasse esse número viola o casamento.
Terceira questão: Devem ser tolerados bordéis? Responde-se que as palavras do
Apóstolo em 1 Coríntios 6 são claras: fornicadores e adúlteros não herdarão
o Reino de Deus. A isso se acrescenta a afirmação do Apóstolo em Hebreus
13.4: Deus julgará os fornicadores e adúlteros. Alguns podem argumentar
que a prostituição é permitida para evitar males maiores, como o adultério.
Responde-se que isso pressupõe que possa haver um mal maior do que a
transgressão contra Deus e sua Lei, contrária tanto à lei quanto à permissão
divina. Afirmamos, com Paulo, que não se deve fazer o mal para que venham bens:
deve-se obedecer à lei divina e deixar os resultados nas mãos de Deus. Aliás,
quais seriam esses males que seriam evitados pela licença da prostituição?
Certamente, em regiões e cidades onde não há bordéis e as prostitutas são
severamente controladas, são raras as prostitutas; mas, onde os bordéis são
permitidos, a chama da luxúria arde intensamente, pois a natureza da luxúria é
crescer com a licença, como o fogo que é sufocado em um espaço restrito, mas
que, ao ser ventilado em ar livre, se reacende e queima ainda mais.
Quarta questão: O adultério justifica o divórcio, como Cristo ensina em Mateus
5.32? E a deserção, como Paulo ensina em 1 Coríntios 7.15? E também a
impotência? Responde-se que o divórcio, tomado em sentido amplo, pode ser
distinguido em real e nominal; o real, por sua vez, em voluntário e
involuntário. O divórcio voluntário ocorre quando a parte inocente deseja e
solicita o divórcio da parte culpada; esse tipo de divórcio ocorre por causa de
adultério, como Cristo menciona em Mateus 5.32, e é chamado de divórcio. O divórcio
involuntário ocorre quando a parte inocente é abandonada pela outra, e isso
contra sua vontade, sem que tenha dado qualquer motivo suficiente; Paulo fala
sobre esse tipo de divórcio em 1 Coríntios 7. Já o divórcio nominal pode ser
considerado quando um eunuco, que já possuía essa condição antes do casamento,
é separado ao ser descoberta a causa, pois entre tais pessoas nunca houve um
casamento real, mas apenas em nome. Por isso, tal divórcio não deve ser
considerado um divórcio.
OITAVO MANDAMENTO
“Não furtarás”
Furto é toda usurpação ilícita de uma coisa
alheia. Daqui se conclui que nem tudo deve ser comum. A razão é que, caso tudo
fosse comum, não haveria possibilidade de cometer furto, nem seria necessário
um mandamento que proibisse o furto. Ademais, não se pode negar que, nas
Escrituras Sagradas, nas leis e nos exemplos dos Santos Padres, são aprovados
contratos de compra e venda, dos quais resulta a distinção de propriedades,
pois, se tudo fosse comum, tais contratos não seriam necessários. Portanto,
aqueles que pensam o contrário não podem evitar outra via a não ser dizer que o
Antigo Testamento não se aplica a nós, o que é verdadeiro em alguns aspectos
que pertenciam à antiga pedagogia; contudo, é falso no que se refere ao direito
natural e ao direito das gentes. Nenhum deles foi abolido pelo Evangelho. Isso
se confirma pelo fato de que, após a ressurreição de Cristo, os Apóstolos
propuseram regras para as relações entre senhores e servos, e Paulo, em 1
Coríntios 7, não proíbe as compras, mas apenas exorta para que os que compram
estejam dispostos como se não possuíssem. E, em 1 Tessalonicenses 4, ordena:
"Que ninguém oprima ou defraude seu irmão em qualquer assunto,"
advertência que seria supérflua se tudo fosse comum. A Escritura do Novo
Testamento em toda parte recomenda a esmola. No entanto, não haveria quem
recebesse esmola se tudo fosse comum, nem quem pudesse dar, pois deve ser dada
de bens próprios; ninguém deve ser generoso com o que é alheio. Assim, todos os
trechos que tratam de coletas confirmam a propriedade distinta das coisas e dos
domínios. Acrescem-se os muitos exemplos dos Santos em ambos os Testamentos,
que possuíam bens próprios. Sobre o Antigo Testamento não há dúvidas. No Novo
Testamento, há menção de Tabita, uma mulher rica e generosa; Lídia, vendedora
de púrpura; Filipe, o diácono, que recebeu o Apóstolo Paulo em sua casa;
Filemom, que possuía Onésimo; e outros. A escravidão, por outro lado, pareceria
mais contrária à lei natural do que a propriedade de bens, especialmente porque
em Cristo não há Senhor nem Servo, e o Servo fiel é irmão. Contudo, a servidão
não é por isso abolida, como se confirma nas Epístolas dos Apóstolos e nos
exemplos dos piedosos.
Pergunta-se ainda se alguma vez pode-se
apropriar de um bem alheio, sem cometer o crime de furto, contra a vontade do
dono. Essa questão diz respeito principalmente aos pobres, que, sem posses
próprias, dependem de algo para sustentar sua vida, parecendo poderem ser
desculpados se furtarem o que lhes é necessário para a sustentação da vida. Mas
a lei de Deus não faz distinção entre os gêneros, sexo, idade ou condição das
pessoas, proibindo o furto igualmente a todos, homens e mulheres, púberes e
impúberes, magistrados e súditos, ricos e pobres. No entanto, se coloca um caso
em que muitos não consideram o pobre como pecador se ele furtar algo para sua
subsistência, a saber, se estiver em extrema necessidade e em perigo evidente
de morte, sem outra forma de socorrer-se. Assim, Tomás de Aquino considera que,
nesse caso, não se trata da apropriação de um bem alheio, mas de algo próprio,
pois a lei positiva, que estabeleceu a distinção e a propriedade dos bens,
quando induz à iniquidade e contraria uma lei superior, perde sua validade. A
lei superior, no entanto, é aquela que ordena os bens terrenos para a
sustentação dos homens. Portanto, se, ao observar a lei sobre a distinção dos
bens, o homem fosse levado à morte ou à prática do mal, como no caso da lei de
restituição de depósito que induz à iniquidade, se observada quando alguém
retoma a espada depositada com a intenção de matar a si mesmo ou a outro.
Além disso, a respeito desse mandamento,
pergunta-se: Qual a pena deve ser imposta aos ladrões? Resposta: A lei divina
não impõe a pena capital para o furto, a menos que haja alguma circunstância
agravante, seja de lugar, tempo ou da própria coisa furtada. No entanto, o
plágio era punido com a pena capital, conforme Êxodo 21:16. Privar um homem de
sua liberdade, que é mais do que metade da vida, e reduzi-lo à miserável
condição de servo, pouco difere de um homicídio. O sacrilégio e o furto com
violência também eram crimes capitais, conforme Josué 7:11,25 e Êxodo 22:2.
Esses furtos são chamados compostos, enquanto o primeiro é chamado simples.
Como também se pode cometer furto ao
conceder um empréstimo, é oportuno aqui discutir a questão: É lícito cobrar
juros ou não? Resposta: Devem-se distinguir os tipos de juros. Existem juros
compensatórios e juros lucrativos. Os juros compensatórios são certamente
lícitos. Se, por exemplo, alguém utilizar o dinheiro que emprestei para comprar
uma propriedade da qual recebe uma renda anual ou obtém um lucro significativo,
enquanto eu fico sem o meu dinheiro, sem receber qualquer rendimento até que
seja devolvido, e o outro, com o meu prejuízo, beneficia-se do lucro, isso
certamente seria contrário à caridade, à justiça natural, à gratidão devida e,
portanto, à própria lei divina. No entanto, os juros lucrativos são quase
sempre proibidos. São aqueles cobrados quando se empresta dinheiro a um pobre
com a expectativa de obter lucro. Deus proíbe cobrar juros e qualquer acréscimo
sobre o principal de um pobre que, por necessidade urgente, é forçado a tomar
dinheiro emprestado para sustentar a si e sua família. Isso não apenas
contraria a caridade, mas também a própria natureza. Aquele que exige juros de
um pobre age como inimigo, pois, muitas vezes, devido à extrema necessidade e
miséria do devedor, deve-se até mesmo perdoar o próprio principal, quanto mais
exigir algum acréscimo. Assim, tudo o que se exige além do principal de um
pobre é furto. Por isso, Neemias se opôs severamente ao fato de que o povo de
Deus, tendo esgotado seus recursos e tomado dinheiro emprestado de ricos, fosse
onerado por juros e agravado com dívidas. Ele, portanto, proibiu os juros, e
com sua autoridade fez com que as dívidas fossem perdoadas e os penhores fossem
devolvidos gratuitamente. Ele mesmo não exigiu o alimento e sustento que era
devido ao governador, mas renunciou ao seu direito ao ver que o povo estava
oprimido pela pobreza, conforme Neemias 5. E a isso também se refere a
declaração de Cristo em Lucas 6: "Emprestai, sem nada esperar em troca."
Contudo, essas palavras não proíbem cobrar de volta um empréstimo ou que
aqueles que o tomaram emprestado o devolvam, pois isso não seria um empréstimo,
mas uma doação. Cristo não quer que se espere qualquer acréscimo ou aumento do
que foi emprestado ao pobre; na verdade, Ele deseja que o empréstimo seja
concedido àqueles de quem, por causa da pobreza, não se pode esperar nem mesmo
a devolução do principal. E Ele ao mesmo tempo condena aqueles que, sob o
pretexto de caridade, se esforçam para saciar sua insaciável avareza, dando
empréstimos sob tais condições de penhor, hipotecas e juros que mais oneram os
pobres, exercendo usura sobre usura, incluindo o principal na dívida caso os
juros não sejam pagos estritamente, merecendo ser chamados de ladrões, e não de
benfeitores, pois, sob o pretexto de amizade e caridade, devoram as casas,
terras e fortunas dos pobres, comprando-os por um par de sapatos, como diz a
Escritura em Amós. Deus, contudo, proíbe severamente em Sua lei que, se não
houver esperança de lucro, sejamos cruéis com os pobres, endurecendo nossos
corações e fechando a mão contra o irmão necessitado, acrescentando ainda a
promessa de Sua bênção, que será abundantemente derramada sobre nós por esse
ato de caridade.
O NONO MANDAMENTO
"Não dirás falso testemunho"
Toda mentira é abominável a Deus, conforme
o Sl 5.7 e Pv 6.17, e é algo que costuma ser severamente punido por Ele, como
está em Pv 19.5,9.
Alguns afirmam que a mentira oficiosa [mendacium
aliqui, literalmente significando alguma mentira] não é pecado, definindo-a
como aquela que não prejudica ninguém, mas beneficia alguém. No entanto, isso
não é permitido, pois prejudica quem mente; de modo singular, lesa a majestade
de Deus, que é o autor e amante da verdade, a ponto de não poder mentir. Ele
imprimiu no homem a imagem de Sua veracidade para ser preservada e nunca
concede, sob qualquer dispensa, o poder de mentir. Além disso, não se deve
fazer o mal para que daí venha o bem, ou seja, não se deve pecar para que algum
bem provenha, seja para si ou para o próximo; do mal não advém o bem, exceto
acidentalmente.
Ironias, fábulas, brincadeiras, narrações
de eventos fictícios, e similares, que alguns chamam de mentiras jocosas, não
são mentiras, pois não são testemunhos; e testemunhos não são, pois não
confirmam a autoridade daquele que fala.
Nem todo aquele que não diz a verdade
mente. Pode-se não mentir mesmo se não disser a verdade, como no caso em que
alguém acredita ser verdadeiro o que é falso e afirma aquilo como verdadeiro;
nesse caso, diz algo falso, mas não mente. Da mesma forma, alguém pode dizer a
verdade e, ainda assim, mentir, por exemplo, se alguém acredita que algo
verdadeiro é falso e, no entanto, afirma que é verdadeiro; pois a mentira é a
dissonância do discurso com a mente; dizer o falso é a conformidade com a
mente, mas dissonância com a realidade.
Simulação e dissimulação, seja em atos ou
palavras, não constituem mentira, a menos que, por sua natureza ou por um
determinado instituto, possuam a força e o uso da palavra, como em 1Sm
20.20-22, ou Mt 26.49, porque esses tipos de atos e sinais não verbais não têm
uma significação certa e determinada, de modo que possam ter a força de um
testemunho. Portanto, tal simulação é lícita. Isso é confirmado pelo exemplo de
Cristo; bem como pelo de Josué, em Josué 8.5-6, e de Salomão, em 1 Reis
3.24,25. Até mesmo Deus fingiu querer que Isaac fosse sacrificado a Ele, o que,
entretanto, nunca decretou que fosse realizado. No entanto, a simulação se
torna ilícita quando, pela razão do fim ou do modo, entra em conflito com a
religião, a justiça ou a caridade.
Pergunta-se aqui sobre a licitude da
equivocação jesuítica. Os jesuítas afirmam que é lícita, especialmente quando
se lida com tiranos injustos ou ladrões. Nós, no entanto, estabelecemos o
contrário; dizemos, em tais casos, que ou não se deve responder, ou, se
respondermos, deve-se dar mais importância à verdade do que à própria vida ou à
de outrem. Se isso na prática for difícil e raramente se encontrar alguém que
não recorra à mentira se puder, a mentira, ainda assim, deve ser reconhecida
como tal, e devemos nos arrepender desse pecado, se a fraqueza nos levar a
isso. Caso contrário, com razão é louvado por Agostinho aquele firme Bispo de
Tagaste, tanto por seu nome quanto por sua natureza, no capítulo 13 do livro
"De mendacio," dirigido a Consentio. Pois, quando lhe foi
perguntado por um homem, enviado pelo imperador através de seus oficiais, sobre
o paradeiro de alguém que ele ocultava diligentemente, tanto quanto podia,
respondeu aos inquiridores que não podia mentir nem trair a pessoa, e, tendo
suportado muitas torturas corporais (pois os imperadores ainda não eram
cristãos), manteve-se firme em sua posição.
Além disso, são apresentados muitos
argumentos que militam contra a equivocação; aqui mencionaremos alguns. A
palavra de Deus repreende aqueles que falam de paz com a boca, mas em seus
corações planejam ciladas, como em Jeremias 9:8. Devem ser repudiados os
subterfúgios vergonhosos de quem anda na astúcia, e é ordenado que nos
recomendemos na manifestação da verdade, não apenas diante de Deus, mas também
perante a consciência de todos os homens, como em 2 Coríntios 4:2. As
equivocações jesuíticas, portanto, devem ser repudiadas e completamente
rejeitadas, pois elas emboscam e não manifestam sua verdade. Outro argumento,
da Escritura, diz que "o fim de toda controvérsia entre homens, que não
podem penetrar na mente uns dos outros, é a confirmação por juramento,"
Hebreus 6:16. Consequentemente, onde não se exige juramento, a afirmação
sincera "sim, sim" ou a negação "não, não," como em Tiago
5, versículo 12, deve bastar. Se houver suspeita de equivocação, as disputas se
multiplicam, em vez de se resolverem, uma vez que nada se revela que permita a
qualquer uma das partes inferir se a outra age de boa-fé ou não. Portanto, essa
equivocação jesuítica não só perturba as relações humanas, mas também frustra o
conselho de Deus sobre a resolução de litígios.
Enquanto o que equivoca, equivoca [dum
æquivocans æquivocat]; ou ajusta sua resposta (se for interrogado) ao que o
inquiridor deseja ouvir, ou não; se o faz, quando pronuncia algo diferente da
realidade, mente; se não o faz, não apenas mente, mas também dissimula e
brinca. Essa taciturnidade, pela qual alguém não diz a verdade quando a justiça
ou a caridade o exigem, participa da natureza da mentira. Quando nem a justiça
nem a caridade requerem o testemunho, então, sem pecado, a verdade ou parte
dela pode ser ocultada, como em Jeremias 38. Também é lícito, às vezes,
assegurar a verdade e proferir aquelas palavras das quais, com probabilidade,
sabemos que os ouvintes tirarão conclusões errôneas, como em Atos 23.6-9. Isso,
no entanto, não é mentir ou testemunhar falsamente, mas apenas oferecer ao
outro a ocasião de se enganar, não para cometer pecado, mas para evitá-lo.
Costuma-se perguntar em relação ao nono
preceito: Deve-se manter a palavra dada aos hereges? Os pontífices negam. A
Escritura, porém, sugere o contrário. Pois Deus deseja que a palavra seja
mantida com os gentios e pagãos; daí que Jacó, em Gênesis 49, detesta o ato dos
seus filhos, que violaram fraudulentamente o pacto feito com os siquemitas e os
mataram cruelmente, depois de os enganarem. "Simeão e Levi," diz ele,
"são instrumentos de violência em suas convenções: minha alma não entre em
seu conselho, minha honra não se associe à sua assembleia, pois, em sua ira,
mataram homens, e, em seu capricho, mutilaram bois." Os descendentes de
Saul também pagaram com a morte pelo pecado que ele cometeu ao quebrar a
promessa feita por Josué e Israel aos gibeonitas; e pagaram, digo, com a morte,
e isso por ordem de Deus. Veja 2 Samuel, capítulo 21.
O DÉCIMO MANDAMENTO
“Não cobiçarás”
Aqueles que dividem este mandamento da
cobiça em dois, para que um seja sobre a cobiça da casa e o outro sobre a
cobiça da esposa e outros aspectos relacionados, falham nisso por três razões:
1. Eles se afastam completamente da razão. 2. Eles são forçados a apagar ou
pelo menos converter o segundo mandamento da primeira tábua em uma adição
supérflua, para que o número de dez mandamentos pareça ser mantido; ou, o que é
evidente em muitos deles, obscurecendo o significado do segundo mandamento,
para que possam removê-lo de si mesmos e de suas superstições, eles se veem
obrigados a mutilar o décimo mandamento. 3. Eles não podem definir com certeza
qual é o nono e qual é o décimo mandamento, pois na repetição da lei, em
Deuteronômio 5:21, a cobiça da esposa é mencionada antes da cobiça da casa.
Embora o Senhor tenha dito duas vezes "não cobiçarás", isso não
significa que haja dois mandamentos, mas um só. Da mesma forma, se alguém
dissesse "não matarás pai, irmão, mãe; não matarás servo ou livre",
isso não criaria dois mandamentos sobre o não matar, mas um só.
Embora homicídio, roubo e falso testemunho
tenham diferentes objetos, não existem múltiplos mandamentos para cada um
deles, mas apenas um; da mesma forma aqui, especialmente quando, no final desta
lei, é acrescentada uma cláusula geral que mostra claramente que o objetivo
dessas palavras sobre a cobiça é ordenar os desejos humanos em relação às
coisas humanas.
Não é tautologia quando uma palavra é
repetida de forma útil ou necessária. Como esta é uma instrução destinada ao
povo, era próprio da sabedoria divina esclarecer ou confirmar certos
mandamentos por meio de uma exposição ou sanção, de modo que, onde fosse mais
necessário, a boca da licenciosidade e da negligência humanas fosse fechada; e
como neste caso vários objetos de cobiça foram mencionados, era também
importante que o povo aprendesse que aquela expressão "não cobiçarás"
deveria ser repetida para todos aqueles objetos; o que o legislador ensinou com
um exemplo, ele ensinou cada um a suprir nos demais. Contudo, por
"cobiça" não se entende a força e a capacidade de desejar e apetecer,
que são naturais, nem os atos naturais dessa capacidade, que também são
naturais e lícitos, nem toda a inclinação da nossa natureza, que é corrupta, a
qual não é condenada por um único mandamento específico, mas por toda a lei;
nem todas aquelas cobiças atuais e primeiras que são desordenadas, das quais
grande parte se opõe à religião e é condenada pela primeira tábua; nem,
finalmente, todas as cobiças que tendem ao prejuízo do próximo; pois aquelas
que possuem consentimento deliberado e propósito de perseguição são condenadas
em cada mandamento específico. Mas a cobiça é aquela pela qual a alma é
primeiramente incitada e estimulada pelo desejo dos bens que pertencem ao
próximo, ainda que não tenha ainda decidido adquiri-los por meios ilícitos.
Os pontífices não podem negar que a cobiça
que excita seja contra a lei, mas distinguem algumas que se opõem à lei
material e efetivamente, e outras que se opõem de forma privativa e formal. A
cobiça que excita e atrai sem consentimento se opõe à lei no primeiro modo, mas
as que assim se opõem não são pecados, embora incitem ao pecado. No entanto,
Paulo, quando disse que a lei não é pecado, ou seja, não é a causa do pecado,
mas sim a causa do conhecimento do pecado, chamou de pecado a lei que luta em
seus membros e o torna sujeito à lei do pecado. Isso ele afirma junto com
muitas outras coisas no mesmo capítulo, de onde se constata que ele chama essa
cobiça de pecado, porque a lei diz "não cobiçarás", o que ele já
havia fundamentado antes. Portanto, essa cobiça foi proibida pela lei. Além
disso, a lei que proíbe a cobiça fala em termos gerais e nunca distingue entre
a cobiça que é sem consentimento e a que é com consentimento. Onde a lei e a
Escritura não distinguem, não devemos fazer distinções.
Paulo mostrou que a concupiscência é um
pecado ao dizer que os homens não reconheceriam os atos interiores, como o
desejo da esposa ou dos bens alheios, se a lei não tivesse dito "não
cobiçarás". Além disso, pelos versículos subsequentes, fica claro que
Paulo estende este mandamento àquela concupiscência contra a qual o Espírito
luta, que se opõe à lei da mente, que a mente regenerada não aprova e que não
deseja. No entanto, ele expressamente chama essa concupiscência de pecado. Pois
ele repetidamente define essa concupiscência como pecado. Também é importante
observar que, nas Escrituras, a concupiscência da carne nunca é tomada em um
sentido positivo. Stapleton, no livro 3 sobre a concupiscência nos regenerados,
é forçado a admitir que a concupiscência, da qual discutimos, é uma forma de
iniquidade, ἀνομίαν e, às vezes, de
obliquidade, não apenas contra o domínio da mente, mas também contra a lei de
Deus. Com essa confissão, segue-se claramente que é pecado e, formalmente, como
dizem, um vício. No entanto, ele também afirma que Deus não exige de nós, nesta
lei, que sejamos sem tal concupiscência por meio de obrigação, mas apenas por
meio de direção, para que dessa forma o mal de nossa natureza seja reconhecido.
Dizemos que isso vai contra a própria natureza da lei, que não só dirige, mas
também obriga, e pronuncia maldição contra todos que não permanecem em todas as
palavras da lei para as cumprir. Deuteronômio 21:23, onde o objetivo da lei não
é apenas conhecimento, mas também a obrigação de a cumprir.
Os socinianos afirmam que a concupiscência
que alguém concebe pelo bem alheio, se não pensa em atraí-lo para si, era
permitida sob o Antigo Testamento e que apenas aquela concupiscência que fazia
as pessoas pensar em atrair para si os bens alheios foi proibida. Assim,
Smalcius: esta era proibida sob a lei, como pode ser confirmado pelo fato de
que todas as coisas proibidas na lei mosaica, assim como em outras leis
humanas, são principalmente preceitos para a preservação da paz e da sociedade
humana, e este mero conhecimento não pode ser violado ou rompido de forma
alguma. Mas sob o Evangelho, onde a pureza do coração é especialmente
considerada e requerida, para que sejamos íntegros perante Deus, não apenas a
tentação dos meios ou razões pelos quais alguém pensa em atrair para si os bens
alheios, mas também o próprio pensamento de atrair para si os bens alheios, é
justamente considerado um vício. Pois por que seria lícito pensar no que não é
lícito fazer? Respondemos que o fundamento dessa distinção é uma petição de
princípio. A questão entre nós é se, no Novo Testamento, é exigida uma maior
pureza de coração do que no Antigo Testamento e, por conseguinte, se Cristo fez
os mandamentos do Decálogo mais completos do que eram no Antigo Testamento,
para que os cristãos vivessem de forma mais santa do que os antigos. Mas como
até agora os socinianos não conseguiram estabelecer esse fundamento, essa
diferença também cai, como se de algum modo a concupiscência do Novo Testamento
fosse diferente da concupiscência do Antigo Testamento.
CONCLUSÃO
Segue agora as propriedades da lei
moral, que são ordem e perfeição. A ordem entre os mandamentos é tal que cada
mandamento, tanto pela precedência na ordem, quanto pelo bem que abrange ou
pelo mal que nele é proibido, torna-se mais excelente ou mais grave.
Cartwricht ensina, com cautela, que isso
deve ser entendido da seguinte maneira, como ele afirma na página 46: "Respondo,
não que qualquer bem, em um mesmo mandamento, seja preferível a todos e a cada
um dos bens compreendidos no mandamento que vem depois em ordem, mas que os
maiores bens devem ser comparados com os maiores bens, os médios com os médios,
e os inferiores com os inferiores; o mesmo se aplica ao que é considerado vício."
Por exemplo, a reputação que surge das riquezas (que pertence ao nono
mandamento) não deve ser preferida às próprias riquezas (que pertencem ao
oitavo mandamento), nem a reputação decorrente da força ou velocidade às
virtudes físicas propriamente ditas.
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