sexta-feira, 2 de agosto de 2024

ONISCIÊNCIA DIVINA (JOHANNES MACCOVIUS)


LOCI COMMUNES (Johannes Maccovius)
Sciencia Dei

Passamos à Ciência de Deus, pela qual Deus conhece todas as coisas. Por isso é chamada de onisciência. Esta ciência é de duas naturezas: de simples inteligência ou de visão. Esta ciência de Deus pode ser de duas espécies: dos possíveis, segundo os teólogos escolásticos, ou dos futuros.

A ciência de simples inteligência (scientia simplicis intelligentia) é aquela pela qual Deus sabe o que é possível e o que não é, mesmo que aquilo nunca venha a ser.

Assim, Ele sabe que pode fazer dos filhos de Abraão pedras, mesmo que nunca vá fazê-lo. Esta ciência se baseia no poder absoluto de Deus e na ordem da natureza, precedendo a ciência de visão. Deus não decretou nada sem saber que era possível; a partir disso, Ele sabe o que será, porque o decretou.

A ciência de visão é aquela pela qual Deus conhece o que há de vir.

Esta se baseia no decreto definido de Deus e tem como fundamento o poder ordenado de Deus, o que é evidente a partir de: (1) O Espírito Santo declara que todas as coisas que acontecem foram decretadas, conforme (Lm 3.37). (2) O Espírito Santo utiliza o termo "prever" para significar "predestinar", como em Mateus 26, onde a paixão de Cristo foi predita, e em Lucas 22, onde se diz que foi predestinada. Esta ciência de visão de Deus, que nas escolas também é chamada de ciência dos futuros e prática, é a causa da existência futura de todas as coisas. Assim dizem os doutores escolásticos: res sunt, quia Deus scit; non scit, quia sunt “As coisas são porque Deus as conhece; Ele não as conhece porque elas são”. Sobre esta ciência, devem-se observar os seguintes princípios ou enunciados:

I. Deus, com esta ciência, conhece não apenas as coisas que necessariamente acontecerão, mas também as coisas que acontecerão contingentemente.

Quanto à verdade da primeira parte, ninguém dúvida, exceto um ateu; a segunda, porque é questionada por vários que desejam ser considerados cristãos (o que é lamentável), deve ser afirmada por nós aqui. Portanto, prova-se que Deus conhece todas as coisas contingentes. (1) Pois tudo acontece e existe porque Deus previu (Lm 3.37); (2) Onde Deus faz a distinção entre Ele e os falsos deuses, e quer ser reconhecido como o verdadeiro Deus porque prevê e prediz o futuro (Is 41.22-23). Objeção: Deus diz "quæ", isto é, "algumas". Portanto, não todas. Resposta: Absurdo. Pois Ele diz indefinidamente "quæ eventura". E a partícula indefinida nas Escrituras deve sempre ser considerada como universal, a menos que haja uma restrição do mesmo gênero; (3) Deus predisse algumas coisas contingentes, que também se cumpriram, por exemplo, na crucificação de Cristo, a previsão de que Seus ossos não seriam quebrados. Se Deus conhece algumas contingências, o adversário deve explicar por que não todas. Pois a razão de uma contingência é a mesma para todas; (4) Se Deus não conhece as contingências futuras, então elas não estão sob Sua providência; e, consequentemente, serão independentes. No entanto, a Escritura distingue todas as coisas em independentes e dependentes, quando ensina que todas as coisas que estão fora de Deus são de Deus (Rm 11.36). Objeção: Algumas coisas são excluídas, as que Deus quis. Resposta: 1. Nada. Pois isso destrói a distinção entre criatura e Criador, da qual toda a existência depende de Deus. 2. Os futuros contingentes são aqueles que ocorrem raramente, igualmente ou na maioria das vezes, não há outros graus de contingências. A todos esses graus podem ser reduzidas todas as coisas que estão fora de Deus. Se algumas coisas são excluídas da providência de Deus, todas devem ser excluídas. Pois nada é tão firme que não possa ser de outra forma. O curso do Sol é certíssimo, e ainda assim, por ordem de Deus, pode parar ou retroceder; (5) Nada é mais contingente que a vontade humana, e ainda assim está sob a providência de Deus (Pv 21.1). Nada é mais contingente que as ações naturais do homem, levantar-se, sentar-se, falar, pensar, e ainda veja o que o salmista diz sobre isso: “Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, SENHOR, já a conheces toda” (Sl 139.2-4).

Objeção 1: As contingências de nenhum modo existem. Portanto, Deus não pode conhecê-las. Resposta: 1. Não existem em ato, mas em potência. 2. Existem, porque Deus as conhece; Objeção 2: Dos futuros contingentes, a verdade não é determinada. Resposta: Pela razão do intelecto humano, não do divino. Objeção 3: Se Deus conhece as contingências, elas acontecem porque Deus as conhece, a ciência, evidentemente, prática ou de visão, então a liberdade da vontade humana será abolida, e todos os meios serão aplicados em vão. Resposta: Nenhuma consequência. Pois a liberdade pode coexistir com a necessidade, como será demonstrado abaixo. Objeção 4: trata de eludir os locais das Escrituras que reforçam nossa tese. 

Sobre o trecho de Isaías 41:23, responde Socino: é verdade que Deus sabe o que vai acontecer: mas não as contingências, que não podem ocorrer. Respondo: Isso é falso, o que se demonstra. 1. Pela razão filosófica. Porque todas as coisas que estão fora de Deus são contingentes, e poderiam não ocorrer. Logo, Deus nada saberia. 2. Pela razão teológica. Porque todas as coisas que estão fora de Deus são mutáveis, tanto que, o que consideramos eterno, é mutável, como se vê em Hebreus 1. Onde o Espírito Santo compara o Céu e a Terra com a natureza de Deus, e diz que aqueles passarão.

Sobre o trecho de Hebreus 4:12, diz Socino: não se trata ali da presciência de futuros contingentes, mas apenas se indica que Deus conhece os recessos íntimos do coração humano. Respondo: No entanto, essa ciência também implica que Deus conhece as contingências. Demonstro isso: 1. Deus conhece de tal forma que prediz as coisas, e a profecia depende disso. Pois predizer o que é certo, como predizer que o inverno sucederá o outono, o dia sucederá a noite etc., seria tolice; 2. Entende-se aqui uma ciência tal como descrita no Salmo 139:2-4, na qual Deus conhece todos os atos voluntários do homem, e, portanto, tudo o que o homem faz de forma livre.

Sobre o trecho de Atos 15:18, "Conhecidas são de Deus desde a eternidade todas as suas obras", Socino exclama: 1. Conhecer ali significa decretar; 2. Na Vulgata não está "desde a eternidade", mas "desde o século". 3. Deus conhece todas as suas obras, mas não todas as contingências. Resposta ao primeiro ponto: Quem jamais ouviu dizer que "conhecer" e "decretar" são termos intercambiáveis? Além disso, com essa própria explicação, ele contradiz o que ensina em outros lugares. O trecho citado trata da vocação eficaz dos gentios, que foi realmente livre e contingente, tanto pela perspectiva de quem chama quanto dos chamados, e ainda assim afirma que isso foi presciência de Deus, ou seja, foi decretado. Resposta ao segundo ponto: 1. Diga-nos algum momento no tempo em que Deus soube disso pela primeira vez. Se ele disser que foi em algum momento do tempo, isso contradiz a natureza de Deus, pois implicaria uma mudança em Deus, como se ele soubesse algo em um momento que não sabia antes. 2. É absurdo apelar para a versão Vulgata, que ele mesmo frequentemente rejeita como cheia de erros e falhas. Resposta ao terceiro ponto: É habitual ao Espírito Santo dizer de forma genérica o que ele diz também de forma específica e particular, sem que o particular retire algo do geral. Por exemplo, em João 1:3 e Romanos 11:36, diz-se que todas as coisas foram feitas por Deus. No entanto, especificamente em Hebreus 1:10, diz-se que ele fundou o céu e a terra. Assim, em geral, Deus é chamado de onisciente, e em particular é dito que ele conhece isto ou aquilo, como em Gênesis 18:19 e Deuteronômio 3:21. Seria insensato inferir com Socino: "Deus sabia isto; portanto, não sabe mais nada." Assim também, "Deus conhece todas as suas obras; portanto, não conhece mais nada." E essa falácia é refutada até mesmo pelas palavras de Pedro em João 21:17, que depois de dizer: "Senhor, tu sabes que te amo", acrescenta em geral: "Senhor, tu sabes todas as coisas".

Sobre Gênesis 18:19, Socino comenta: "Os atos, diz ele, são de dois tipos: bons e maus. Deus é autor de alguns atos bons, mesmo daqueles realizados por criaturas racionais, embora sejam necessários". Resposta: 1. Ele se contradiz, pois anteriormente afirmou que a liberdade não pode coexistir com a necessidade, e agora afirma o contrário; 2. Se ele concede que o homem pode realizar alguns atos livremente, mesmo que esses atos sejam necessários, por que não todos? 3. Nossos atos voluntários são inteiramente atribuídos a Deus. Pois agimos sendo movidos por Deus, corremos sendo conduzidos por Deus, como em Jeremias 18:6. Que os atos voluntários sejam inteiramente atribuídos a Deus fica claro também pelo fato de que todas as causas desses atos provêm de Deus; por exemplo, a capacidade de agir, conforme 2 Coríntios 3:5, e a vontade de agir, conforme Filipenses 2:13.

Sobre Deuteronômio 3:21, Socino argumenta: Deus está falando de Israel e afirma ter conhecido, ou seja, ter percebido a maldade deles, e o que fariam no futuro, como se Deus tivesse raciocinado dessa maneira: se, com Moisés presente, começaram a desviar-se, o que não fariam se Moisés fosse removido? Assim, segundo ele, Deus poderia ter seguido facilmente uma conjectura para prever o que os israelitas fariam no futuro. Resposta: 1. Assim, Deus deveria ter dito: "Eu deduzo, penso, suspeito"; pois aquele que deduz algo o faz com base em uma opinião. Porém, tal coisa não se aplica a Deus; 2. Deus não teria nenhuma base para tal dedução; pois tal dedução é falha se a maldade presente não implica a maldade futura. Pode ocorrer que alguém que é mau hoje, seja bom amanhã, como demonstrado no caso do ladrão na cruz e de Paulo perseguindo a Igreja.

Sobre 1 Samuel 13:13, de onde os nossos argumentam: Deus previu o pecado de Saul e, por isso, escolheu constituir um rei da tribo de Judá. Logo, Deus conhece o contingente. Responde Socino: Poderia ter ocorrido que a linhagem de Saul falhasse, e assim o reino poderia ser transferido para Judá. No entanto, isso não é uma previsão, mas uma simples possibilidade. Pois, se pudesse, refuta-se; e se não pudesse, refuta-se igualmente. A teologia não é uma disciplina conjectural, mas tem princípios certos; e, quando pode, sempre deve ser vinculada, devendo ser clara e consistente.

Sobre o trecho em Mateus 26:43, de onde os nossos argumentam: A predição feita a Pedro era contingente sobre o futuro. Logo, Deus conhece o futuro. Responde Socino: Pedro, por sua temeridade, mereceu que ele caísse e que a graça divina o abandonasse; portanto, quando a ocasião foi apresentada pela negação da graça, o Senhor previu isso. Resposta: 1. É verdade que, negada a graça de Deus, o homem necessariamente cairá no pecado; mas este próprio ponto é onde o herege subverte seus princípios: a saber, que os pecados não podem ser punidos pelos pecados; e que a liberdade não pode coexistir com a necessidade, uma vez que essa negação foi algo meramente contingente e voluntário. Embora tenha sido uma ação mista, composta por elementos voluntários e necessários, não provém de coação. Pois, de dois males, escolhe-se o menor. Assim, Pedro julgava que seria menos prejudicial negar a Cristo do que perder a vida; 2. Questiona-se como Deus conheceu não apenas a negação em geral, mas também em particular, até o canto do galo. Se disser que sabia pela vontade de Pedro, respondo que ainda não havia tal vontade de negação em Pedro, mas exatamente o contrário.

Apocalipse 13:8, onde se diz: "O Cordeiro foi imolado antes da fundação do mundo. Os nossos apresentam, para provar a ciência de Deus sobre as contingências futuras dizendo: Se foi decretado desde a eternidade que Cristo viria, então o pecado de Adão e, consequentemente, os nossos pecados, foram pré-conhecidos por Deus. Assim, o que é verdadeiro no passado é também verdadeiro no futuro. A consequência é clara. Pois, onde não há doença, não é necessário remédio. Por isso, também o Espírito Santo diz que Cristo veio exclusivamente para dar Sua vida pelas ovelhas, como está em Mateus 20:28. Este argumento parece ser grave e insolúvel para Socino. Por isso, ele sustenta que Cristo teria nascido mesmo que nenhum pecado tivesse ocorrido, o que está em contrariedade com a palavra de Deus. Para lidar com tais questões, Socino formulou estas regras.

I. Se Deus prediz que as boas ou más ações ocorrerão, isso pode ser feito com base em probabilidades. No entanto, 1. Se a previsão é feita com base em probabilidades, então o que pode ocorrer pode também não ocorrer, e assim Deus pode falhar. Isso é absurdo, e a previsão de Deus não seria mais certa do que a dos astrólogos, que também fazem previsões com base em probabilidades. 2. Isso contradiz a certeza da Ciência de Deus. Deus mesmo, em Deuteronômio 18:22, estabelece a diferença entre um verdadeiro e um falso profeta: o que o verdadeiro profeta diz em nome de Deus deve acontecer, enquanto o que o falso profeta diz não acontece.

II. A previsão não pode ser apenas uma ocasião para fazer o bem ou o mal, nem uma simples advertência. Resposta: 1. A advertência difere muito da previsão; a previsão às vezes trata de coisas para as quais não há advertências. 2. Aqueles alertas que parecem ser previsões são, na verdade, ditos de forma a distinguir-se dos mandamentos. Portanto, não devem ser confundidos.

III. Se a previsão se refere a uma ação má, então a ação é decretada, não a causa. Resposta: 1. Se Deus decretou a ação e não a causa, da qual a ação depende, então o decreto da ação seria em vão. 2. Presupõe que Deus não pune os pecados com outros pecados, o que é falso, como está claro em Isaías 6:10, Êxodo 7:6, 2 Coríntios 3:14-15, Romanos 1:24, 2 Tessalonicenses 2:11 e 2 Samuel 12:11. Para o complemento, veja 2 Samuel 16:22.

Objeção 5: Deus não pode saber infalivelmente aquilo que ainda não existe. Pois, algo é conhecido porque existe. No entanto, o ser humano e sua vontade não são eternos. Portanto, Deus não poderia saber as cogitações humanas e similares. Ele deve conhecê-las de outra forma. Se Deus prevê as coisas a partir de si mesmo, então Ele prevê todos os pecados e, portanto, é o autor deles. Resposta: 1. Deus conhece, de fato, o futuro, mas não porque as coisas são futuras a partir de si mesmo, mas porque Ele as decretou. 2. Pressupõe que Deus conhece as coisas porque elas existem, embora o contrário seja verdadeiro, como mostramos em outro lugar. 3. A ideia de que Deus se torna o autor do mal por causa disso é totalmente infundada. Assim como a vontade divina, a presciência divina é ou permissiva, permitindo o pecado, pois de outra forma não poderia ocorrer; ou eficaz, não querendo o pecado. Portanto, Deus não é o autor do mal. Ele seria o autor apenas se quisesse efetivamente o mal.

Objeção 6: Em Isaías 5:2, 4, 7, afirma-se que Deus não previu o que aconteceria, pois não esperava. Resposta: Estas passagens devem ser interpretadas por metáfora antropopática, ou seja, de maneira imprópria. Se fossem interpretadas literalmente, Deus seria infeliz, como se fosse frustrado em seus planos. Contudo, Deus é o sumo bem, e a frustração não pode ocorrer de forma alguma. O que se diz nestes textos provém de uma analogia com os seres humanos, que, quando fazem tudo o que está ao seu alcance para alcançar um objetivo e ainda assim o resultado não ocorre, costumam afirmar que o que poderiam fazer foi feito. Esta expressão é encontrada na Escritura, como em Atos 20:27 e Lucas 20, na parábola do proprietário da vinha. Portanto, deve-se entender que ali se refere apenas aos meios externos, isto é, o fato de que Deus enviou os profetas e Seu Filho.

II. Deus, em um único e indivisível ato, conhece todas as coisas, não disperso em muitas partes, mas reunido em si mesmo, e, no entanto, de forma distinta e especial, sem confusão ou generalidade.

I. Porque Deus está presente a todos; portanto, conhece todas as coisas em um único ato; a razão da consequência é a seguinte: Quem está presente a algo, o conhece. Mas Deus está presente a todas as coisas: Portanto, Ele conhece todas as coisas. Isso é afirmado claramente no Salmo 139:7-11.

II. Se Deus não conhece todas as coisas em um único ato, então seria necessário que Ele não pudesse conhecer simultaneamente todas as orações. Mas se isso fosse verdade, Deus não existiria. A razão da consequência é a seguinte: Porque em todo o mundo, em diversos lugares, ao mesmo tempo, o nome de Deus é invocado por várias orações. Se alguém não conhece simultaneamente todas as orações, então não é Deus, como se pode inferir das zombarias de Elias, que ridicularizou os profetas de Baal em 1 Reis 18:27. Mas talvez nossos adversários não concedam facilmente que Deus conhece o que ocorre simultaneamente, mas apenas que Ele conhece todas as coisas passadas, presentes e futuras, simultaneamente. Resposta: Deus conhece todas as coisas, seja o que é, seja o que foi, simultaneamente; e isso é provado pelo seguinte argumento: Deus, desde a eternidade, conhece todas as coisas simultaneamente; se Ele conhece todas as coisas simultaneamente, então conhece em um único ato de entendimento. Que Ele conhece simultaneamente, está claro a partir dos seguintes pontos: Se não conhece todas as coisas simultaneamente, isso se deve ao fato de que ou não pode compreender todas as coisas ao mesmo tempo ou não quer. A primeira opção não é válida, pois o intelecto de Deus é infinito; isso é demonstrado ainda mais pelo fato de que Deus conhece a Si mesmo perfeitamente: Deus é infinito; portanto, o intelecto de Deus, com o qual Deus conhece a Si mesmo infinitamente, é infinito. A segunda opção, que é a de que Ele não quer, não é válida; a razão é que Deus conhece o passado: pois como poderia Moisés ter revelado o que foi feito desde o início do mundo, se Deus não conhecesse tais coisas? Deus conhece o futuro, como está em Isaías 41:22-23. Ele conhece o presente, porque está presente a todas as coisas, como demonstrado no Salmo 139:7-11. Portanto, como Deus conhece todas as coisas e pode conhecê-las simultaneamente, é necessário que Ele conheça todas as coisas em um único ato de entendimento.

III. Adicione-se ainda que, se Deus não conhecesse todas as coisas em um único ato de entendimento, não poderia ser considerado onisciente. A razão para isso é que, se Deus entendesse algo em um momento e, ao mesmo tempo, não entendesse outra coisa, ou se, enquanto entende uma coisa, já não lembrasse mais da outra, isso seria contrário à onisciência de Deus. Se tais afirmações fossem verdadeiras, Deus não poderia ser considerado onisciente de nenhuma forma. No entanto, Deus é de fato onisciente, como é claramente evidenciado, por exemplo, em Hebreus 4:13: “Tudo está nu e patente aos olhos d'Ele, com quem temos de tratar.”

IV. Porque o entendimento de Deus é o próprio Ser e Essência d'Ele. O ato de entender é Deus mesmo. Portanto, o que se diz de Deus também deve ser dito do ato de entender, como canta o poeta divino:

“Com um único ato da mente Ele vê

O que é, o que foi, e o que virá.”

Agora vejamos a objeção: “Portanto, se Deus entende todas as coisas em um único ato, então a afirmação e a negação, assim como a verdade e a falsidade, devem ser consideradas como idênticas.” Isto é absurdo; portanto, a conclusão a partir disso também é absurda.

Respondemos: Se seguirmos a linha de raciocínio proposta pelos adversários, então o ato de entender em Deus, que é um único e indivisível ato, seria a causa exemplar das coisas, ou, para ser mais claro, se o ato de entender fosse o mesmo que as coisas entendidas por meio da representação, isso seria extremamente inadequado. A razão para isso é que em Deus não pode haver causas para a ciência e o entendimento que sejam externas às coisas criadas, nem pode o entendimento divino se tornar o que é criado, por meio da representação. Ambos os conceitos estão em desacordo com a imutabilidade de Deus, como também é atestado por passagens das Escrituras, como Tiago 1:17.

Além disso, respondemos que isso seria verdadeiro se Deus não entendesse distintamente as coisas que conhece em um único ato de entendimento. No entanto, Deus conhece todas as coisas distintamente, mesmo que seja em um único ato, o que é claramente demonstrado pelos atos de Deus em relação a tudo que faz, tanto no natural quanto no sobrenatural. No âmbito natural, Deus é o autor de todas as coisas, conforme Hebreus 4:24; e no sobrenatural, Ele as produz, conforme 1 Coríntios 12:11. Portanto, se Deus faz todas essas coisas, e faz isso de uma vez, então certamente Ele cuida de todas as coisas simultaneamente de uma forma que cada uma é distinta da outra e cada uma depende da outra. Ele vê e entende a distinção entre uma coisa e outra, como entre uma para a qual Ele decreta dar dons e outra para a qual não decreta dar.

A resposta é similar à analogia da visão, na qual vemos diferentes cores, como branquidão e negritude, em um único ato visual. Alguém poderia dizer: "Então, a branquidão deve estar presente na negritude," e vice-versa. Isso seria absurdamente errado, pois assim como vemos distintamente a branquidão e a negritude, também Deus vê distintamente as coisas em Seu entendimento.

Os socinianos e seus seguidores, como os arminianos, desenvolveram uma terceira forma de ciência divina, chamada ciência condicionada, que eles definem como a previsão de Deus sobre o que ocorrerá sob certas condições, mesmo que não tenha sido decretado por Ele. Por exemplo, o que os homens ou os anjos fariam se estivessem colocados em determinadas circunstâncias ou em uma ordem específica das coisas. No entanto, essa forma de ciência condicional foi inventada para evitar a necessidade de referir toda a previsão do futuro à ciência da visão, o que, de fato, contrariaria as opiniões deles. Pois, com esse entendimento, eles teriam que admitir que a presciência de Deus é baseada no decreto, e o que Deus prevê para o futuro é previsto porque Ele decretou.

Seria, portanto, absurdo dizer que Deus, com base na presciência ou na perseverança dela, escolhe para a vida eterna este ou aquele. Porque Ele preveria fé em um e não em outro, se fosse questionado pelos adversários, teria que responder que é porque Ele decidiu dar fé a um e não a outro. Se a questão fosse aprofundada ainda mais, perguntando por que decidiu dar fé a um e não a outro, teriam que dizer que é porque assim lhes pareceu bem. Assim, todas essas distinções na vontade divina, que afirmam que Deus deseja que todos e cada um sejam salvos, seriam subvertidas; se Deus quisesse salvar todos e cada um, teria decretado dar fé e perseverança a todos e cada um. Contra nossa discussão atual, estabelecemos a seguinte argumentação:

Primeiro, deduzimos o argumento da independência entre a causa primeira e o efeito, ou seja, entre o Criador e as criaturas. É impossível que qualquer efeito seja, ou seja, compreendido como futuro em algum caso, sem depender da sua causa eficiente. Esta é a proposição fundamental da Filosofia, conforme descrito no livro De Causis, e a base sobre a qual se estrutura toda a escolástica, que considera os entes criados apenas como emanando da causa primeira, da qual dependem para existir e operar, assim como os raios do Sol. No entanto, a ciência intermediária, que propõe a determinação da vontade livre como seu objeto, alegadamente não depende de nenhuma causa superior. Portanto, isso implicaria em efeitos sem causa, criaturas sem Criador, e, consequentemente, essa ciência deve ser completamente rejeitada. Este argumento é enfaticamente apresentado por Ripa, na primeira parte da obra de Aquino, questão 4, capítulo 3, distinção 4. Pois, segundo ele, seria estabelecido um tal ordenamento, onde, se um homem está destinado a agir, então Deus age, e, se a causa secundária age, a causa primária também age, e não o contrário; o que Agostinho também condenava, na obra De Praedestinatione Sancti, capítulo 13, e a verdadeira filosofia, e a teologia sã. Além disso, não é apenas a natureza que é questionada, mas também os próprios nomes de Deus, do homem, da causa primeira e da causa secundária, que são tão incompatíveis que não há nada mais contrário. Aqueles com quem discutimos só ousam afirmar isso com grande hesitação e sob certas reservas.

Segundo argumento: Esta ciência impõe restrições à vontade e à providência divina. Pois, se a vontade humana se determina livremente antes do decreto divino, então nada pode ser disposto pela potência e providência divina, a não ser que se espere e se tenha previamente a aprovação da vontade criada, com a qual concorre como causa parcial na produção do efeito. Além disso, aquilo que Deus conhece antes da sua própria predestinação, deve ser conhecido por Ele através da sua ciência natural. Portanto, não pode haver outra maneira de se relacionar com o decreto subsequente, o que parece impor limites à causa primeira.

Terceiro argumento: Este argumento deriva da distinção entre a ciência divina e a ciência da inteligência simples e da visão, cujos objetos não são o Ser ou o Ser, entre os quais não pode haver um meio. Assim, não resta à ciência intermediária um objeto intermediário que defina a ciência: os adversários são forçados a supor o Ser como meio entre os contraditórios, mas isso é em vão. O Ser, se for condicionado, é algo em si mesmo ou nada. Se for a primeira opção, está compreendido sob a ciência da visão; se for a segunda opção, mas apenas possível pela potência do Criador, coincide com o objeto da inteligência simples. Portanto, qual é a necessidade de introduzir esta nova e neutra ciência em Deus?

Quarto argumento: É baseado na comparação entre o condicionado e o absoluto. O decreto condicionado de Deus se relaciona com o futuro condicionado da mesma forma que o decreto absoluto se relaciona com o futuro absoluto. Mas isso implica uma contradição (como admitido pelos jesuítas), pois algo não pode ser futuro absolutamente, a não ser pelo decreto de Deus que determina que seja absolutamente futuro, como mostra Agostinho em "Enchiridion" a Laurentino, capítulo 95. Portanto, também implica uma contradição que algo seja futuro condicionado a menos que preceda um decreto condicionado, o que anula completamente a ciência intermediária (que se supõe preceder todo decreto).

Quinto argumento: Se Deus previsse algo que não decretou, então Ele saberia a coisa porque ela seria futura; mas a coisa não seria futura porque Deus a previu e decretou. Isso é claramente absurdo. Pois, dessa forma, a coisa fora de Deus seria a medida do entendimento divino, e não o entendimento de Deus seria a medida das coisas futuras fora de Deus. Assim, o conhecimento de Deus dependeria das coisas externas, e, portanto, Deus não seria Deus. Pois o conhecimento em Deus é o próprio Deus. Além disso, o entendimento divino se conformaria às coisas fora de si, conferindo, assim, uma potência passiva a Deus; em suma, Deus não seria Deus, mas uma criatura, e a criatura não seria uma criatura, mas Deus.

Sexto argumento: Esta ciência intermediária não resolve as dificuldades de conciliar graça e livre arbítrio, para o qual foi principalmente inventada, mas ao contrário, as complica; portanto, deve ser rejeitada como inútil. O antecedente é formulado da seguinte forma: se o ato do livre arbítrio não é determinado pelo decreto, então ele deve ser determinado por alguma outra causa externa, ou não. Se for o primeiro caso, então deve ser por constelações, pela complexão individual, por persuasão moral, ou de algum outro modo. Mas, qualquer que seja a maneira, não surgiria menor dificuldade em entender por que isso seria mais favorável a Jacó do que a Esaú. Se a vontade aqui consentisse naturalmente, então não poderia agir de outro modo: portanto, não poderia discordar; assim, sob essas circunstâncias, não seria livre. E assim, os adversários caíram nas armadilhas que nos prepararam.

Sétimo argumento: Não há ciência intermediária, pois não há causa para ela, que eles propõem, como o decreto condicional de Deus, dependente das criaturas; por exemplo, prever que Caim matará Abel em tal lugar, e assim decretar que ele morrerá ou será morto lá. Quem conferiu tais decretos ao homem?

Oitavo argumento: Não há objeto para esta ciência; portanto, ela mesma não existe. Pois a ciência pressupõe o possível. Assim, o Filósofo considera o possível e a ciência entre os relativos segundo o dizer. De fato, todos os atos contingentes e livres estão sujeitos à providência de Deus, e nada pode existir, preexistir ou ser futuro, a menos que dependa de Deus, tanto no futuro quanto no presente, isto é, a menos que esteja providenciado e preestabelecido. Portanto, na ciência intermediária não há isso, pois seu objeto é estabelecido como não dependendo do decreto de Deus.

Nono argumento: Deve-se rejeitar a ciência cujo objeto é tal que, uma vez estabelecido, o objeto se reduza ao arbítrio criado, como se fosse o determinante primário. Pois somente Deus é o determinante dos primários. No entanto, se o decreto de Deus é o objeto posterior da ciência intermediária, esse objeto acaba sendo resolvido no arbítrio criado: pois não pode ser resolvido no decreto de Deus, como no determinante primário, já que o decreto é posterior. Objeção: Pode Deus impedir os atos livres? Respondemos: Isso é em vão. Primeiro, se eu quiser isso, não aquilo, antes da vontade de Deus e da ciência intermediária, então Deus não pode impedir esses atos livres: pois o que já é, e o que Deus infalivelmente prevê que será futuro, infalivelmente será futuro. Segundo, se Deus quiser restringir a vontade indiferente (pois os adversários afirmam que ela repugna perpetuamente à vontade, para que se determine a um), é necessário que opere o que desejou. Portanto, é necessário que Deus ajuste sua vontade e o concurso com o movimento da liberdade criada, e Deus, vencido pelo destino, não pode reconciliar-se e querer o que a vontade criada, como determinante primário, quis.

Décimo argumento: O objeto de toda ciência infalível deve ser necessário. No entanto, as contingências futuras, antes do decreto de Deus, não são necessárias; logo, não há objeto para esta ciência. A maior é certa: pois a ciência é necessária em virtude de um objeto necessário. A ciência, afinal, não é outra coisa senão a apreensão do objeto. Por isso, todos os metafísicos afirmam: não é possível haver certeza da mente, ou subjetiva, sem toda certeza do ente, ou objetiva. A menor é provada: Antes do decreto de Deus e por si mesma, visões de Tiro podem não crer e arrepender-se tanto quanto crer e arrepender-se; assim, também, David poderia não ter sido entregue nas mãos de Saul tanto quanto poderia ser entregue. Pois essa é a natureza da liberdade dos adversários, que, tendo todos os requisitos para agir, pode agir ou não agir.

Além disso, os adversários respondem que Deus, por sua infinita ciência, prevê não só o que a vontade humana pode fazer, mas também o que ela fará. No entanto, a questão permanece: de que forma Deus vê essa determinação? Pois ele vê a própria determinação em si mesmo como presente, e essa presença não é real em si (pois as coisas eternas não existem realmente em Deus), nem é real em sua causa, isto é, no decreto de Deus; pois eles desejam que o objeto seja anterior ao decreto, e ainda assim não podem dar outra causa além do decreto.

Décimo primeiro argumento: A ciência condicional não estabelece nada em si mesma, mas apenas a conexão ou consequência entre o antecedente e o consequente; assim, se ambas as partes forem falsas, pode haver uma conexão verdadeira; e se ambas as partes forem verdadeiras, pode haver uma conexão falsa. Portanto, a ciência condicional não dá uma certeza sobre futuros. Este é um ponto aceito pelos lógicos e não contestado até agora por ninguém. Becanus responde em "De Scientia Dei", cap. 10, q. 6, que embora tais proposições sejam hipotéticas em sua forma, em seu sentido elas equivalem a proposições categóricas, e ainda assim, há uma diferença entre ambas. Assim, na teologia, a ciência condicional é proposta, a qual não é nem categórica nem hipotética; o que é duvidoso se alguém, além dos jesuítas, faria uma afirmação tão ridícula.

Décimo segundo argumento: Se a presciência dos futuros fosse independente do decreto, as razões e ideias eternas seriam priorizadas na criatura em relação a Deus, e a criatura não dependeria de Deus como exemplo e ideia, mas Deus dependeria das criaturas como exemplo, modelo e medida superior e anterior; o que é extremamente absurdo. Pois somente Deus é a Ideia e contém em si as razões de todas as coisas.

Décimo terceiro: O argumento baseia-se nos absurdos que acompanham essa ciência.

Primeiramente, a ideia é a seguinte: Se Deus tivesse alguma ciência desse tipo, Ele saberia antecipadamente as contingências futuras. A razão é a seguinte: a ciência mencionada pressupõe que aquilo que Deus prevê, como Pedro acreditará e Judas não acreditará, são causas morais e meramente contingentes da fé, que atuam na vontade humana de tal forma que ela possui o poder de acreditar ou não acreditar. Mas se as coisas são assim, como Deus pode prever que, dado que uma causa contingente se inclina para acreditar, Judas não o fará? Dizer-se-á que Deus é onisciente. Admito isso, mas, entretanto, se tal ciência divina se baseia em coisas futuras e não nas coisas futuras porque a ciência o é, então a ciência de Deus se conformará com as coisas e não as coisas com a ciência; isto é, a ciência de Deus será verdadeira quando compreender as coisas como elas são. Pois uma ciência que deve se conformar com as coisas, como a ciência da criatura racional, e percebe algo que não está na coisa, é falsa. Se, portanto, Deus visse com essa ciência antes que a vontade se inclinasse para este ou aquele lado, Ele veria certo ou não certo, dado essas causas contingentes, e assim veria algo que na realidade não existe. Pois a vontade, antes de se inclinar para este ou aquele lado, não tem nada de certo em si mesma. Se Deus a conhecesse como se tivesse algo certo, Ele a conheceria falsamente. Portanto, Deus terá que conhecer, segundo esta opinião, o que a vontade fará ou não fará, quando tiver como proposto o que fará ou não. No entanto, nem mesmo o que é proposto, que está em si mesma, poderá ser conhecido pela vontade, já que a vontade, que propõe, costuma mudar frequentemente e, portanto, não pode conhecer se a vontade realizará tais ou tais atos, ou se persistirá nesses atos, isto é, se não acreditar, não pode saber se acreditará ou não acreditará, até que o homem esteja morto, ou se acreditar, não saberá se persistirá ou não, até que deixe de estar vivo.

O segundo absurdo é o seguinte: que essa ciência condicional pressupõe que a base da eleição e reprovação do decreto de Deus seja a vontade do homem. Pois, se eu perguntasse aos adversários, qual é a razão de Deus ter escolhido alguns para a vida e outros não, responderiam que Ele previu que alguns acreditariam e outros não. Mas se eu perguntasse, qual é a razão, visto que Ele concedeu a ambos a mesma graça, por que um crê e o outro não? A resposta seria que um quis e o outro não quis. No entanto, o decreto de Deus, que é imutável, não pode se basear nisso, pois toda criatura é mutável em si mesma, especialmente a vontade humana. Se fosse baseado nisso, deveria ser tal como aquele no qual é baseado, de modo que, sendo mutável, o decreto de Deus também seria mutável; e, voltando-se para isso, o Espírito Santo, em Romanos 9:11-12, diz: "Ainda não tinham nascido, nem tinham feito bem ou mal, para que o propósito de Deus, segundo a eleição, permanecesse firme, não das obras, mas do que chama." Assim, a eleição é maior do que a reprovação.

O terceiro absurdo é o seguinte: que essa ciência condicional pressupõe que Deus, no caso do homem não regenerado, faça nada mais do que propor Sua palavra, adverti-lo e dar-lhe a fé, o que é falso segundo as Escrituras, que ensinam que há duas obras de Deus no homem não regenerado. Primeiro, que Ele o advirta externamente por Sua palavra. Segundo que ilumine, repare e restaure sua vontade, o que é principal e sem o qual a primeira é completamente ineficaz, como está claro em Deuteronômio 29:4: "Até agora o Senhor não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir." Certamente, a palavra de Deus é perpetuamente anunciada aos seus ouvidos, mas sem frutos; pois, como diz o Espírito Santo, Ele não lhes deu coração para entender. Temos um testemunho claríssimo disso nos judeus, em 2 Coríntios 3:14: "Até hoje, quando leem o Velho Testamento, o mesmo véu está sobre o coração deles; mas, quando se converterem ao Senhor, o véu será tirado." E em Romanos 11:25: "Não quero, irmãos, que ignoreis este mistério, para que não sejais sábios a vossos próprios olhos: que a dureza de coração veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios tenha entrado; e assim todo Israel será salvo, como está escrito: 'Virão de Sião o Redentor, e afastará a impiedade de Jacó.'" Isso ensina que eles se ocupam sem frutos na leitura do Velho Testamento, porque têm o véu sobre o coração; e isso porque se endureceram. Mas como o Senhor tira isso, está ensinado em Deuteronômio 30:6 e Ezequiel 36:26: "Eu tirarei de vós o coração de pedra..."

Se de todos, por que Paulo afirma, em 1 Coríntios 1:23, que "pregamos Cristo crucificado", sendo escândalo para os judeus e loucura para os gregos?

Você dirá: Não todos compartilham dessa opinião, de que a ajuda antecedente se limita a uma sugestão externa; mas há alguns que acreditam que Deus ilumina os homens com o conhecimento de Cristo e incendeia seus afetos para o bem sobrenatural por meio de um impulso físico e irresistível. Eu respondo: Pode-se então questionar se todos e cada um daqueles que ouvem a palavra de Deus têm o entendimento iluminado pelo conhecimento de Cristo e seus afetos inflamados para o bem espiritual, ou se isso é verdade apenas para alguns?

Nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gregos. Como, então, isso pode ser compatível com a iluminação da mente e o acendimento dos afetos em direção a Cristo? Pois onde há acendimento dos afetos, há amor e desejo; e onde há amor, não há aversão àquele a quem se ama. Se não todos que ouvem a palavra de Deus são contemplados com isso, deve-se perguntar se há alguma razão para que isso não ocorra; ou talvez isso se deva ao fato de que alguns não utilizam corretamente os dons que consistem no conhecimento da bondade de Deus e nas remanescentes leis que ainda persistem na natureza corrompida? Ou será que é porque assim parece bem a Deus? A primeira hipótese não é possível por duas razões: primeiro, porque claramente o Espírito Santo demonstrou na pessoa de Paulo que ele, se algum, fez bom uso dos dons naturais, mas não estava disposto aos sobrenaturais: Filipenses 3:4: "Embora eu tenha também confiança na carne, se qualquer outro pensa que pode ter confiança na carne, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus, segundo a lei, fariseu. Quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível." A menos que alguém pense que aquele que odiava Cristo e foi o mais feroz perseguidor estava corretamente disposto aos sobrenaturais, o que seria absurdo. Pois não todos que utilizam corretamente os naturais são dignos dessa graça. Por exemplo, aquele que não usou corretamente, de quem fala Marcos 10, que diz ter guardado a lei desde a sua juventude? E aquele outro, de quem Marcos 12 fala, a quem Cristo disse que não estava longe do reino de Deus? No entanto, Deus não dignificou nem a este nem a aquele com a graça para iluminar suas mentes e inflamar seus afetos em relação à Sua palavra. Portanto, deve-se concluir que isso ocorre porque assim parece bem a Deus.

Agora, se Deus age por puro beneplácito, pode-se dizer que Deus deseja a salvação de todos e de cada um, e que, se isso, sem o qual a salvação não pode ser obtida, não concede, apenas por que lhe parece bem? Em segundo lugar, pode-se questionar se essa iluminação da mente e o acendimento dos afetos para o bem espiritual despertam fome e sede desse bem espiritual, ou não. Não despertar fome e sede não pode ser dito, pois não se pode entender como os afetos seriam chamados de acendidos e não amariam ou desejariam aquilo pelo qual são acendidos. Amor e desejo são fome e sede em si mesmos. Portanto, se desperta fome e sede, segue-se que se cumprirá o que é dito em Mateus 5:6: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos." Mas se todos esses serão fartos, como pode a graça de Deus ser resistível? Se a graça foi concebida com esse fim, para mostrar que alguns, que eram participantes da graça, podem cair eternamente, e se todos serão fartos, então todos, sem exceção, serão salvos. E se todos serão salvos, então é falso ou impossível que alguns deles possam cair. A razão é esta: Se isso pudesse ocorrer, então as palavras da Escritura poderiam ser falsas. Mas as Escrituras não podem ser falsas. Portanto, isso também não pode ocorrer, o que a Escritura diz que não ocorrerá. Portanto, a graça que consiste na iluminação e no acendimento dos afetos deve ser tal que tanto a vida eterna quanto os meios para alcançá-la sejam consequentemente necessários, o que os adversários negam claramente.

Você dirá: A partir da palavra "serão fartos" não se pode deduzir que serão salvos. Respondo: No entanto, Cristo ensina isso claramente em João, quando revela o que significa ser farto. Ele diz: "Quem vem a mim nunca terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede." Se nunca terá fome, nunca terá sede. Portanto, será sempre farto. E os efeitos não podem ser perpétuos a menos que a causa da qual dependem seja perpétua. Portanto, se você permanecer perpetuamente farto, você permanecerá perpetuamente unido a Cristo, e sempre crerá nele. Pois isso é ser verdadeiramente farto, como dito acima. Portanto, será irrefutavelmente salvo.

Você dirá: Pode ser que algo intervém e remove essa fartura, e assim alguém pode ser farto e ainda não salvo, porque a fartura não permanece. Respondo: Se isso pudesse acontecer, então as palavras de Cristo poderiam ser falsas: "Quem vem a mim, não terá fome, e quem crê em mim, nunca terá sede." Mas essas palavras não podem ser falsas. Portanto, quem foi uma vez farto, não deixará de ser. A razão é a seguinte: Se os efeitos dependentes de alguma causa permanecem, a própria causa também deve permanecer. Mas Cristo diz que o efeito da fartura permanecerá, que é nunca ter fome e nunca ter sede. Portanto, a própria causa permanecerá.

Você dirá: Na verdade, fome e sede são apenas amor e desejo por alguma coisa (pois são assim chamadas metaforicamente), e, portanto, haverá fome e sede em alguns, que no entanto não são fartos nem salvos, como, por exemplo, aqueles que recebem a palavra com alegria; eles amam e desejam, porque o desejo vem do amor, mas alguns desses não são salvos, como em Mateus 13; e também há aqueles, de quem Amós 8 diz que terão fome e sede e morrerão de fome e sede. Respondo: Existem dois tipos de fome e sede na Escritura: uma que vem de Deus e é segundo Deus, e outra que não vem de Deus nem é segundo Deus. O segundo tipo é quando alguns bem-intencionados em relação à palavra de Deus desejam isso, mas não por si mesmos, mas por causa dos bens que acham que estão anexos a ela. Assim, aqueles de João 6, que buscavam ouvir Cristo, mas por causa dos pães pelos quais seriam fartos. Os adversários não consideram, creio eu, esse desejo como aquele que Deus excita iluminando o entendimento e inflamando os afetos. Pois esses afetos não vêm de Deus. Outro tipo de fome e sede é o que vem de Deus, e é novamente duplo: uma que é o efeito da graça, e a outra da ira. A fome e a sede que são punição e infligidas como punição são mencionadas em Amós 8. E quanto a esse tipo, creio que os adversários não considerarão essa fome e sede, de que falamos, como punitivas, pois não são para punição, mas para o bem e a bondade dos que são dados. Portanto, deve-se concluir que essa fome e sede que vem de Deus são para o bem daqueles a quem são dadas, e são efeitos da Sua graça. Essa fome e sede são dos bens espirituais, não por causa dos bens corporais anexos, mas por causa de si mesmos; e esse desejo estava nos apóstolos, que deixaram tudo para seguir Cristo, conforme Mateus 19:27. E sobre isso é verdade o que está em Mateus 5: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça."

O quarto absurdo que decorre dessa opinião é o seguinte: ela introduz o destino estoico, o que os adversários nos acusam continuamente. Isso é demonstrado da seguinte maneira: Primeiro, em relação aos bens que concernem à alma; Deus prevê que Pedro ou Paulo acreditariam, se ele aplicasse estas ou aquelas causas, as quais todas são de natureza moral. Portanto, isso que Deus prevê que acontecerá necessariamente, ele o prevê com uma necessidade totalmente independente. Pois essa necessidade, que Pedro acreditará, não dependerá de Deus, porque se dependesse de Deus, ele agiria na vontade de Pedro de forma que este necessariamente acreditasse; no entanto, ele não faz isso, segundo a opinião dos adversários, porque acreditam que isso destruiria a liberdade, e, portanto, que Deus não age na vontade senão persuadindo, advertindo, ameaçando e prometendo. Você dirá: Essa necessidade não dependeria de Deus, se Pedro pudesse acreditar, movido por uma causa moral, mesmo sem a permissão e a concorrência de Deus. No entanto, isso não pode acontecer sem essas. Respondo: Portanto, Deus pode prever Pedro, colocado em tal ordem, acreditando sem sua permissão e concorrência, ou não. Se sim; então Pedro pode acreditar sem isso. Se não; então entre essas coisas que moveriam Pedro a acreditar, essas causas devem ser necessariamente incluídas. Ora, se essas causas devem ser incluídas, elas serão a causa da necessidade de que Pedro, colocado em relação a elas, acredite ou não. Se sim; então Pedro acreditará necessariamente, e não livremente. Se não; então segue-se que essa necessidade não depende de Deus.

Segue-se ainda outro absurdo muito mais extremo: um destino mais do que estoico, no qual não apenas a criatura, mas também Deus, é inevitavelmente implicado em relação aos bens do corpo. De fato, a criatura no tempo não pode deixar de agir desta maneira; e Deus não pode prever ou querer outra coisa senão aquilo que de fato acontecerá. Portanto, prevalecendo este dogma, que possui uma anterioridade tanto em relação à ciência de Deus quanto ao decreto, todas as misérias que acometem os mortais pelo ministério de causas contingentes, doenças contagiosas, morte inesperada por desmoronamento de edifícios, pobreza, exílio, morte prematura e dolorosa da esposa e dos filhos; e até mesmo machados, laços, fogueiras, forcas: certamente, nesses casos, uma vez que precedem a vontade de Deus e essa suposta ciência, nenhuma esperança, nenhuma consolação, nenhuma paciência pode restar em Deus. Não seria assim que Deus falaria aos mortais? “Deve-se suportar, não lamentar, ó homens, a sorte fatal que vos atingiu: pois esta desde a eternidade superou a minha providência, eu não pude impedir, não pude deixar de submeter-me aos desígnios fatais da contingência, ela lançou os dados, escreveu as tábuas das Parcas, pronunciou a sentença adamantina, decretou uma sorte negra ou branca, estabelecida desde a eternidade para a eternidade, até contra a minha vontade.” E, da mesma maneira, prosperidade, nobreza, poder, saúde, numerosa prole, abundância de todos os bens, vida longa, morte feliz e tranquila, riquezas douradas, que ocorrem pelo auxílio e operação de causas livres e contingentes, precedem a mesma providência. Que esperança, gratidão, submissão, ou consciência de dever e obediência devida a Deus poderiam os homens ter? Essas coisas aconteceram sem o conhecimento e contra a vontade de Deus. Mas agora as objeções que costumam ser levantadas em favor desta ciência média devem ser respondidas.

Objeção 1: é tomada do livro de 1 Samuel 23:10. Deus previu para Davi dois futuros sob condição, que dependiam do livre-arbítrio, e que nunca se realizariam de fato, mas apenas na hipótese. Um, que Saul cercaria Davi em Queila, se ele não fugisse. Outro, que os habitantes de Queila entregariam Davi a Saul, se ele não fugisse. Respondo: Deus previu esses futuros, mas não de forma absoluta, mas futuros, se Davi não fugisse e se protegesse; o que Deus decretou que ele faria, como meio pelo qual afastaria Saul de Queila e impediria que os cidadãos traíssem Davi. Pois aquilo que Deus decretou realizar por meio desses ou daqueles meios, Ele sabe que sem esses meios não acontecerá, porque Ele conhece seus decretos imutáveis: mas, enquanto isso, embora Ele saiba que sem esses meios, que Ele também decretou, não realizaria essas coisas, Ele ainda sabe que elas são futuras. Pois é uma coisa saber que algo não acontecerá sem isso ou aquilo; outra coisa é saber que não acontecerá de forma alguma: isso implica que a coisa realmente não acontecerá; o outro implica que não acontecerá sem isso ou aquilo. Portanto, o argumento não infere outra coisa senão isto: Deus previu que Saul viria a Queila, e que Davi seria traído, a menos que ele se protegesse, o que Deus também decretou como meio pelo qual afastaria esses males de Davi; e Ele sabia disso porque havia decretado que não afastaria esses males de outra forma, senão por meio desse meio. Dizes: contudo, isso não impede que seja verdade a sentença de que Deus previu que Saul e os habitantes de Queila fariam isso, a menos que Ele impedisse.

Assim é. Mas, como dito, Deus afirmou que isso aconteceria se Davi não utilizasse esses meios, porque Deus decretou que não queria libertá-lo sem esses meios. Assim também se dá no caso narrado em Atos 27, onde lemos sobre Paulo, que, por revelação divina, relatou que ninguém pereceria no naufrágio iminente, pois essa era a vontade de Deus. No entanto, mais tarde, ao descobrir que os marinheiros planejavam fugir, ele disse: "Se estes não permanecerem no navio, vocês não poderão ser salvos." Ou seja, Paulo sabia que Deus havia decretado que eles seriam salvos; mas sabia também que isso se daria por meio de certos meios, a saber, que os marinheiros permanecessem, pois Deus havia decretado salvá-los mediante a permanência dos marinheiros.

Objeção 2: é retirado de Mateus 11. "Se em Tiro e Sidom tivessem sido realizados os milagres que foram feitos em vocês, há muito tempo elas teriam se arrependido em pano de saco e cinzas." Resposta: Muitas vezes, a Escritura compara duas coisas impossíveis entre si, afirmando que uma ocorreria, não porque de fato ocorrerá, mas para mostrar que, sendo impossível essa, se uma delas devesse ocorrer, seria mais fácil essa acontecer do que a outra, de modo a exagerar a impossibilidade desta última. Por exemplo, em Lucas 16, lemos sobre o céu e a terra que passarão, mas as palavras de Deus permanecerão: não que devam passar ou perecer totalmente, mas, se uma delas devesse ocorrer, seria mais fácil isso acontecer do que as palavras de Deus deixarem de ser verdadeiras. Da mesma forma, em Isaías 49:15, ele diz: "Pode uma mulher esquecer-se do filho que ainda mama, de sorte que não se compadeça do filho do seu ventre? Ainda que esta viesse a se esquecer, eu, todavia, não me esquecerei de ti." Aqui, também, ele coloca essas coisas como impossíveis, e, no entanto, se uma delas devesse ocorrer, ele diz que seria mais provável que a mãe perdesse sua natureza do que ele se esquecesse dos seus; pois ele diz: "Ainda que esta viesse a se esquecer, eu, todavia, não me esquecerei de ti." Veja também expressão semelhante em Ezequiel 3:16-17. Assim, Cristo aqui compara duas coisas impossíveis entre si, que os habitantes de Cafarnaum creiam e que os habitantes de Tiro e Sidom creiam. Ambas são impossíveis. Pois, se os habitantes de Tiro e Sidom vissem nada além de sinais externos e, ao mesmo tempo, não lhes fossem dados olhos para ver e ouvidos para ouvir, como está claro em Deuteronômio 29:2-4, era impossível que eles acreditassem. Mas, no entanto, feita a comparação com os judeus, isso seria mais fácil do que o outro, e isso porque estes sofriam apenas de cegueira natural, como em 1 Coríntios 2. Os judeus, porém, não apenas sofriam de cegueira natural, mas também de outra cegueira infligida por Deus, que aumentava a primeira: portanto, feita a comparação entre os dois grupos, seria mais fácil, se uma delas devesse ocorrer, que aqueles acreditassem do que os judeus, pois os impedimentos para os judeus acreditarem eram maiores do que para os habitantes de Tiro e Sidom.

Objeção 3: Se Deus não conhecesse os eventos contingentes futuros, exceto em Sua vontade predefinindo a futura ocorrência deles; então, uma vez que a mesma razão se aplica a todos os futuros no que diz respeito à infalibilidade da presciência, seria necessário que Deus previsse os pecados em Sua vontade predefinindo, e assim seria o autor do pecado. Resposta: Esta objeção é antiga e não necessita de uma solução nova; basta distinguir entre o ato e sua malícia. Deus promove o ato, permite a malícia e a ordena; assim, Deus prevê os pecados como tais em si mesmos, mas no decreto do bem oposto, na medida em que o pecado é consequência do decreto, não seu efeito; pois a vontade permissiva é eficaz, não quanto à produção, mas quanto à ilação.

Objeção 4: Aquilo que Deus conhece como futuro a partir do decreto é absolutamente necessário em relação a esse decreto. Portanto, não pode ser contingente, pois o contingente e o necessário diferem inteiramente em suas essências. Resposta: Pode ser necessário e contingente em diferentes sentidos; por exemplo, os ossos de Cristo poderiam ser quebrados e não quebrados; poderiam ser quebrados, se considerados no sentido dividido; não poderiam ser quebrados, se considerados no mesmo sentido composto, isto é, em razão do decreto divino e da providência atual de Deus. De fato, tudo o que é necessário a partir da hipótese do decreto divino e da providência atual deve ser assim distinguido. Pois, em si, tal coisa é contingente, isto é, consiste em tal potência, segundo a qual poderia ser determinada a este oposto ou a outro.


sexta-feira, 21 de junho de 2024

O estado da teologia eclesiástica no século XVIII, por Eberhard Heinrich Daniel Stosch

 

§1

Vou dizer algumas palavras sobre o estado atual da Teologia Eclesiástica, sem a intenção de expor tudo o que deve seu significativo crescimento à matéria teológica. Certamente, os estudos brilhantes de homens eruditos, em línguas originais do texto sagrado; nos preceitos da hermenêutica; em todos os aspectos pertinentes à filologia sacra; em comentários e observações muito eruditas para uma compreensão mais correta das Escrituras Sagradas; em todas as partes da filosofia mais avançada e da história eclesiástica, que foram explicadas e ornamentadas, espalharam uma luz considerável por toda a teologia dogmática. Contudo, não faltaram aqueles que, guiados por várias razões, mancharam as doutrinas principais da religião cristã, reduziram todo o sistema de dogmas de fé a outra forma e se esforçaram para mudar todo o sistema de acordo com as opiniões de alguns, que até agora foram consistentemente rejeitadas pelos protestantes.

§2

A origem desta questão deve ser remontada um pouco mais atrás. Naquela mesma época em que a doutrina do Evangelho, pelo ministério de Zwinglio, Calvino, Lutero, Melanchton e outros servos eminentes de Deus, estava sendo purificada das escórias de erros e superstições e restaurada à sua integridade original, houve aqueles que, confiando excessivamente em sua própria inteligência, não puderam suportar a sabedoria oculta de Deus, manifestada no Evangelho, em elevar os homens à suprema felicidade por meio de Seu Filho unigênito. Eles se esforçaram ao máximo para reintroduzir antigos erros, há muito tempo rejeitados pela Igreja, como os de Sabélio, Artemon, Fotino etc.[1] No entanto, não puderam levantar suas cabeças até o século anterior, quando uma colheita considerável surgiu, especialmente na Inglaterra e na França[2], daqueles que, com hostilidade e não sem certa aparência de erudição, atacaram toda religião ou, pelo menos, aquela revelada por Deus nas Escrituras Sagradas. Muitos teólogos eruditos e piedosos reprimiram com sucesso os audaciosos ataques desses críticos, embora alguns tenham preferido de alguma forma transitar para os campos deles e, esquecidos da grave declaração de São Paulo de que "a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens", quiseram acomodar a doutrina cristã ao gosto deles.

§3

Os primeiros a se preocuparem com a reforma da teologia, cansados das disputas que então agitavam os teólogos, agiram com grande prudência e moderação. Dirigiram seus esforços principalmente para mostrar que a religião cristã não ensina nada que contradiga a razão sã[3]. No entanto, esses estudos dos homens mais eruditos desagradaram a muitos, sobretudo porque professavam serem alheios a certos dogmas que outros, com toda a razão, consideravam que deveriam ser explicados de maneira mais compatível com as Escrituras e a razão, e não completamente rejeitados. Depois, aqueles a quem alguns deram o nome de latitudinários[4] e que seguiram em muitos aspectos os ensinamentos de Socino, avançaram mais longe. Juntaram-se a eles outros, aos quais agradava a ideia de uma indiferença religiosa[5], seja geral, seja especial. Finalmente, alguns acharam[6] que havia apenas uma verdadeira religião para toda a humanidade, a saber, a chamada religião natural, que, embora exposta mais claramente nas Escrituras do que pela simples razão, é, no entanto, suficiente, em termos racionais, para alcançar a salvação eterna. Alguns teólogos mais recentes seguiram essa linha de pensamento, concluindo que a religião cristã nada mais é do que a religião natural, transmitida de forma mais plena e certa por Cristo, a quem foram adicionadas as promessas de remissão dos pecados e vida eterna, mediante a obediência aos mandamentos de Deus.

§4

Aqueles que assim pensam sobre a religião cristã, não conciliam suas crenças nem com as Escrituras Sagradas nem com o sistema doutrinário cristão que até agora prevaleceu entre os protestantes. No entanto, também há outros que, embora não se afastem em essência da doutrina aprovada pelos protestantes, acreditam que muitas coisas podem ser explicadas de maneira mais correta e mais coerente tanto com as Escrituras quanto com a própria realidade; cujas advertências, a meu ver, não devem ser totalmente negligenciadas. Portanto, para que tanto as divergências daqueles que se afastam mais da doutrina protestante quanto os esforços daqueles que desejam apenas emendar alguns pontos não sejam ignorados pelos meus ouvintes, achei conveniente expor brevemente essas questões, sem qualquer ódio para com os irmãos dissidentes, cujos nomes, por essa razão, poupo. Pois é função do teólogo πάντα δοκιμάζειν, καλὸν κατέχειν "testar tudo, reter o que é bom"; suportar toda divergência com equanimidade; amar os dissidentes e reverenciar seus méritos.

§5

É uma opinião comum e aprovada por consenso entre todos os protestantes que as Escrituras Sagradas são o princípio universal e perfeito da religião cristã, às quais deve ser atribuída fé como revelação divina por si só. Embora alguns mais recentes não pareçam querer rejeitá-las completamente, eles ensinam, no entanto, doutrinas que ou minam completamente esta crença dos protestantes ou, pelo menos, a tornam inútil. Alguns, rejeitando critérios externos de verdade, prescrevem que nada na religião cristã deve ser admitido a menos que possa ser deduzido dos critérios internos e inerentes de verdade da própria matéria, pelo que também excluem tudo o que é arbitrário e positivo, não distinguindo suficientemente esses dois conceitos. Outros decretam que deve haver uma dupla abordagem na religião cristã. Uma seria para uso do povo, que é histórica e se baseia apenas na autoridade; outra seria filosófica, que demonstra tudo através de razões evidentes, tiradas da própria natureza e característica das verdades. Disso deduzem que a primeira abordagem se torna completamente obsoleta e inútil entre aqueles que possuem o conhecimento filosófico da religião; e que não terá mais lugar quando todos os indivíduos, sem distinção, tiverem sido desenvolvidos e formados em uma capacidade intelectual que os torne aptos e adequados para o conhecimento filosófico das coisas.

§6

Algumas pessoas têm uma visão superficial sobre a Sagrada Escritura e sua origem e inspiração divina; elas frequentemente rejeitam ou minimizam os argumentos externos usados para provar isso. Não aceitam completamente o cânon dos livros sagrados, usado pela Igreja desde o século II, e propõem submetê-lo a uma nova análise. Além disso, consideram alguns desses livros como suspeitos ou desejam eliminá-los. Argumentam que o Antigo Testamento tem utilidade mínima ou nula para os cristãos, e afirmam que Jesus Cristo e os Apóstolos o utilizaram apenas como argumento dirigido aos homens. Se demonstram alguma reverência pelas Escrituras tanto do Antigo quanto do Novo Testamento em outros, tentam interpretar suas imagens como orientalismos pretensos, representações alegóricas e poéticas.

§7

Aqueles, porém, que aderem à doutrina dos protestantes sobre a origem divina tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, e consideram isso como um princípio universal da teologia dogmática, frequentemente ensinam que os livros simbólicos não têm lugar na igreja e que toda obrigação solene em relação a eles deve ser abolida.

§8

Na doutrina sobre a natureza de Deus e Seus atributos, embora se baseie nos princípios da razão mesma, há um grande consenso. No entanto, há dois pontos nos quais alguns julgaram necessário afastar-se da opinião comum dos teólogos para evitar qualquer apoio à doutrina da satisfação vicária do Senhor. Um desses pontos é que formam a noção de santidade e justiça divinas, que parecem estar inteiramente em conformidade com suas próprias opiniões. O outro ponto é que consideram necessário insistir apenas nas noções supremas do Senhor, Rei, Legislador e Juiz, rejeitando aqueles usados ​​pela Sagrada Escritura sobre Deus, e apresentando-O como o Pai mais indulgente de todos, interpretando isso de tal forma que não hesitam em aplicar a Deus até mesmo as fraquezas frequentemente encontradas nos pais em relação aos filhos.

§9

Eles rejeitam totalmente o dogma da Trindade, que foi estabelecido na Igreja desde o Concílio de Niceia I. No entanto, nem todos os que discordam dele têm a mesma opinião. Alguns admitem três Pessoas, mas as consideram subordinadas entre si e de uma natureza metafísica que é inexplicável para as mentes humanas. Outros creem em apenas um Deus Pai, do qual o Filho e o Espírito Santo foram produzidos, mas de uma maneira tão inseparável que essas três Pessoas podem corretamente ser chamadas de um único Deus verdadeiro. Alguns apoiam o Sabelianismo, outros o Arianismo, e ainda outros o Socinianismo.

§10

A história da criação, conforme transmitida por Moisés no livro do Gênesis, é considerada por muitos como uma representação poética desta grande realidade. Outros entendem que o período de seis dias sucessivos mencionado como dedicado à criação não se refere a dias de vinte e quatro horas, mas a um intervalo de tempo mais longo, difícil de determinar precisamente. Além disso, não interpretam Moisés como afirmando que o universo foi criado sem um começo, existindo eternamente junto com o próprio Deus, mas sim que o universo foi criado a partir do nada, ou que a terra foi formada somente então.

§11

Eles não negam totalmente a existência dos anjos, mas se recusam a atribuir aos dogmas transmitidos por Cristo e pelos Apóstolos. Consideram que as referências sobre o Diabo e os demônios nas Sagradas Escrituras estão relacionadas às opiniões filosóficas judaicas adotadas dos caldeus. Portanto, negam que aqueles que são mencionados nos relatos evangélicos como possuídos por demônios estejam realmente possuídos por demônios. Além disso, interpretam de maneira significativamente diferente do entendimento comum dos teólogos aquilo que é comumente transmitido pela Escritura sobre o Diabo e os anjos maus.

§12

A história da queda do homem, mencionada por Moisés em Gênesis 3, muitos negam que deva ser interpretada de maneira literal e direta. No entanto, não há consenso entre eles quanto à sua interpretação alegórica. Alguns afirmam que a concupiscência carnal e suas seduções devem ser apresentadas por meio de uma imagem alegórica. Outros entendem que aqui é mostrada a origem geral do pecado, que pode ser explicada da mesma maneira direta, sem nenhum invólucro de alegoria, como é tratado em Tiago 1:14-15. Outros ainda consideram que não se pode negar que os eventos ocorreram conforme Moisés descreveu, mas que o diálogo com a serpente deve ser entendido figurativamente, como os pensamentos que Eva teve consigo mesma. Alguns veem nisso uma representação poética do evento, como foi apresentado de forma elaborada por Milton em sua época.

§13

O que até agora prevaleceu nas escolas teológicas, a doutrina da imputação do pecado de Adão a todos os seus descendentes, desagrada a muitos. A imputação do ato e sua imediaticidade, que os antigos símbolos da Igreja Reformada ignoravam, muitos agora repudiam; até mesmo a própria imputação de culpa universal não é aprovada por todos. Há também aqueles que, como Pelágio, a quem elogiam profundamente, afirmam que o pecado de Adão só prejudicou a si mesmo. Aqueles que costumam derivar os infortúnios desta vida do pecado de Adão propõem que eles sejam resultado da providência ordinária de Deus para reprimir os pecados.

§14

Sobre o pecado original inerente, muitos têm diferentes opiniões. Alguns se persuadem de que os bebês nascem tão bons quanto Adão foi criado por Deus. Outros negam não a corrupção universal da humanidade, mas a propagação do vício através da geração. Alguns atribuem essa condição a um mal metafísico exclusivamente; outros a colocam na excessiva inclinação para aquilo que é agradável aos sentidos. Há também aqueles que rejeitam o modo como este argumento é comumente tratado nos sistemas teológicos e nos ensinamentos catequéticos, admitindo alguma mancha genética que, no entanto, não exclui totalmente a semente das virtudes inatas da natureza humana desde a infância.

§15

Alguns não admitem outras penas pelo pecado além dos naturais, todas elas corretivas. Mesmo que concedam a possibilidade de incluir outros fins mais elevados, consideram a correção do pecador como o principal e último objetivo que Deus pretende alcançar através das penas. A maior consideração de Deus deve ser dada na determinação das penas individuais, de acordo com a natureza e a índole de cada pessoa, e qualquer pena que seja, deve ser definida por Deus de tal forma que este objetivo final seja finalmente alcançado.

§16

Hoje em dia, a opinião de muitos sobre Jesus Cristo é que ele foi apenas um homem; no entanto, unido a Deus de tal maneira que por meio dele, em quem a presença divina sempre esteve presente, Deus mesmo falou com os homens, andou entre os homens, os ensinou, sendo assim considerado.

§17

A razão pela qual na Sagrada Escritura o Filho de Deus é chamado com ênfase singular é entendida por alguns da seguinte maneira: porque este título foi conferido ao Messias pelos judeus, de onde ambas as denominações são alternadas (1 João 5:1-5). Outros consideram que a singularidade dele é devido à sua semelhança com Deus (Colossenses 1:15, João 5:19). Outros ainda afirmam que sua relação com Deus é filial, marcada por amor e confiança para com Deus Pai, e que ele se regozija no amor paterno de Deus, formando esses mesmos sentimentos nos crentes em relação a Deus e os estabelecendo na mesma relação com Deus.

§18

O objetivo da vinda do Senhor, eles afirmam de forma unânime, foi libertar judeus e gentios da ignorância, dos erros e das superstições em que estavam miseravelmente imersos, assim como de uma conduta vã e ímpia, através de uma doutrina melhor. Ele os chamou para a verdade, para concepções mais corretas sobre Deus e a religião, para um estilo de vida mais santo, para uma verdadeira tranquilidade de espírito e para a esperança da vida eterna. Para melhor defender os judeus, eles exageram a condição miserável deles sob a lei além do que é justo.

§19

O dogma da satisfação vicária realizada pelo Senhor por meio da obediência e paixões até a morte na cruz é completamente rejeitado por alguns, afirmando que é desconhecido tanto das Escrituras quanto dos primeiros doutores da Igreja, e que, de fato, é uma doutrina que destrói todo conhecimento correto de Deus. Eles remontam a sua origem a Anselmo, Arcebispo de Cantuária no século XI, cuja opinião obteve aprovação de muitos doutores da igreja desde então. Alguns aceitam a satisfação vicária do Senhor, mas excluem a obediência que chamam de ativa. Outros sustentam o contrário, atribuindo à obediência ativa do Senhor a causa de nossa salvação. Assim, agora buscam razões muito diferentes daquelas comumente derivadas da satisfação vicária, como os mais agudos sofrimentos e tristezas que a alma do Senhor experimentou. De fato, há aqueles para os quais parece estranho crer em outro fundamento para a sua salvação e felicidade além de suas próprias virtudes, já que ninguém pode ser considerado bem-aventurado senão por sua própria virtude. No entanto, nisso mesmo eles mostram que não entendem corretamente a doutrina da satisfação do Senhor, que está longe de excluir ou diminuir o estudo da virtude, mas, ao contrário, os leva com argumentos muito fortes a toda virtude, santidade, devoção para com Deus e a mais cuidadosa imitação das virtudes de seu Mediador.

§20

Recusam entender que a reconciliação por Cristo tenha sido feita por Deus, para quem, sendo extremamente amoroso para com os humanos, não haveria necessidade de reconciliação. Ao invés disso, argumentam que deve ser entendida em relação aos humanos, que se reconciliam com Deus ao abandonar o pecado e retornar à obediência e uma vida piedosa e santa, conforme ensinado por Cristo. Outros acreditam que os Apóstolos apresentaram a morte de Cristo como um sacrifício para libertar judeus e gentios da falsa opinião de que Deus perdoa pecados apenas através de um sacrifício vicário de morte. Para evitar parecerem agir precipitadamente, distorcem a doutrina comum dos teólogos sobre a reconciliação por Cristo, interpretando-a de forma mais negativa, como se o supremo Ser só tivesse aspirado a aplacar sua ira contra os humanos por meio de Cristo, quando, na verdade, a opinião constante e perpétua dos teólogos é que Deus, conduzido por seu imenso amor pelos humanos, escolheu o meio adequado para absolver pecadores de seus merecidos castigos, que é compatível com todas as suas perfeições, e deu seu único Filho como propiciação pelos pecados.

§21

Eles negam que Cristo nos tenha libertado das penas dos pecados por sua morte, pois não podem ser removidas por nós. Pois não há penas arbitrariamente impostas ou positivas para os pecados; portanto, não pode ser admitido que Cristo aboliu as penas naturais dos pecados por sua morte, especialmente porque não apenas a experiência testemunha o contrário, mas também não há libertação delas a não ser através da emenda de vida e conduta moral.

§22

Portanto, eles querem interpretar nossa redenção por Jesus Cristo de maneira bastante diferente; entendendo que ela deve ser compreendida de maneiras distintas para judeus e gentios. Para os primeiros, a redenção por Cristo inclui a libertação de um serviço escravo e infrutífero prescrito por Deus através da lei de Moisés, bem como do grande temor ao Deus severo e implacável, que os afligia continuamente. Também inclui o terror da morte, onde temiam ser entregues ao poder do Diabo ou de Sammael, com grande angústia. No entanto, essa redenção não deve ser atribuída tanto à morte de Cristo, mas sim à sua doutrina, que apresenta a Deus não como um Senhor rigoroso, mas como um Pai extremamente indulgente, perdoando todos os pecados, permitindo que se aproximem dele com alegria e confiança, e esperem qualquer salvação dele. Quanto à redenção dos gentios, que não tinham medo de punições arbitrariamente impostas, ela é alcançada através de uma melhor doutrina do Senhor, abolindo a ignorância, a superstição e os vícios, renovando-os completamente para a virtude e santidade, tornando-os verdadeiramente felizes e abençoados.

§23

Mas quanto ao desígnio do Senhor, desejam que ele tenha tido especialmente este fim: que por meio dela, a verdade completamente salutar das doutrinas ensinadas pelo Senhor seja confirmada de maneira certa como se por um penhor e selo. E se há aqueles que atribuem algumas partes dela na redenção dos homens, explicam isso um pouco mais de modo obscuro, dizendo que não foi feita pelos pecados dos cristãos, mas em relação aos judeus, para a redenção das transgressões da antiga aliança mosaica; para confirmar o perdão dos pecados; e no que diz respeito aos gentios, para gerar neles confiança e amor para com o Deus mais benigno.

§24

Eles concedem o ofício mediador de Cristo nas funções profética, sacerdotal e real em certo sentido; no entanto, consideram mais adequado abster-se da maneira divina, que era clara e útil na era dos Apóstolos, mas agora mais obscura e de uso limitado. Eles não querem que Cristo seja chamado de Sacerdote pelo nome que comumente se entende, mas apenas indicar com este termo que ele é o primeiro na administração do reino de Deus para a salvação dos homens.

§25

Os teólogos contemporâneos têm diversas opiniões sobre a salvação dos gentios, o que outrora agradou aos Pais da Igreja e a muitos teólogos. Muitos sustentam que, embora desprovidos do conhecimento de Cristo, os gentios não devem ser excluídos da salvação, pois aqueles dedicados a toda virtude e estabelecendo suas vidas de maneira adequada à religião natural podem eventualmente participar dela. No entanto, alguns afirmam que isso ocorre exclusivamente pela graça de nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto outros derivam isso da própria virtude e obediência deles.

§26

Para que o homem seja chamado pela mensagem do Evangelho a se converter e a crer, e diariamente progrida para uma vida melhor e mais santa, alguns não consideram necessária uma certa virtude interna do Espírito Santo, mas acreditam ser suficientes as capacidades com as quais a natureza humana foi dotada, e especialmente útil a virtude moral da Palavra divina.

§27

Quando definem a fé, a confiança em Cristo como um Mestre enviado por Deus, consideram que isso só poderia ser tolerado se claramente não deformasse a noção da doutrina de Jesus Cristo conforme o Evangelho. Parece ser também a razão pela qual desejam abolir aqueles termos enfáticos pelos quais a Escritura descreve os efeitos da fé, tais como regeneração, geração de Deus, justificação, adoção, união com Deus etc., considerando-os como alegóricos, místicos, obscuros, pouco definidos, influenciados por orientalismo, entre outros.

§28

Quando teólogos, e até mesmo as Escrituras e a própria experiência, convincentemente sustentaram até agora que toda verdadeira conversão a Deus tem como companheira uma tristeza e dor pelos pecados, pela qual o velho homem é mortificado; é estimada pela imensa graça de Deus e seu justo preço; leva o homem ao sentido verdadeiro de alegria em Deus e assim vive completamente em Deus, alguns modernos desviam desse entendimento ao excluir de uma verdadeira conversão toda tristeza, especialmente a mais intensa, considerando-a própria apenas do Antigo Testamento.

§29

O fundamento da justificação do pecador, segundo a opinião de alguns modernos, não pode ser o mérito de Cristo, que eles claramente não admitem. Portanto, eles colocam exclusivamente na obediência prestada ao Evangelho, com diligente estudo da virtude e da piedade.

§30

Eles não querem que as regras transmitidas por Cristo e pelos Apóstolos sobre como devemos nos formar para toda virtude e piedade sejam consideradas preceitos, mas sim conselhos de um Pai Amoroso que aconselha seus filhos sobre como podem se tornar felizes e agradáveis a si mesmos. Portanto, também desaprovam a denominação de "Servos de Deus" e a frase "servir a Deus", pois entendem que podem ser usadas com relação à religião mosaica, mas não à cristã.

§31

Eles negam que os sofrimentos e a morte do Senhor sejam um verdadeiro sacrifício para expiar os crimes da humanidade. Além disso, eles explicam a natureza dos sacramentos de maneira diferente daquela tradicionalmente aceita pelos reformados. Alguns limitam seu uso exclusivamente à profissão externa da religião cristã. Outros não consideram os sacramentos tão necessários, sugerindo que disputas e controvérsias sobre eles poderiam ser suspensas na igreja por algum tempo. Há aqueles que ensinam que os sacramentos são extremamente úteis porque representam sensorialmente o que a palavra propõe à mente. No entanto, eles recomendam o batismo apenas sob esse nome, lembrando que todo ritual solene desse tipo deve lembrar a necessidade de manter a pureza da mente e a inocência de vida. Quanto à Santa Ceia, eles argumentam que ela serve para lembrar a morte de Jesus Cristo, que selou essa doutrina. Além disso, alguns enfatizam que ela estabelece uma comunhão mais estreita entre os cristãos, formando um único corpo.

§32

Há também aqueles que não hesitam em afirmar que a igreja de Jesus Cristo, logo após a partida dos Apóstolos desta vida, se afastou do ensinamento do Senhor e dos Apóstolos, adotando em seu lugar as opiniões dos filósofos, com as quais os primeiros doutores da igreja foram alimentados e recomendaram às gerações posteriores. Portanto, para eles, uma nova reforma tanto doutrinária quanto eclesiástica parece necessária. Se considerarmos a interpretação erudita dos ensinamentos, que sempre teve uma considerável influência da filosofia, embora possam ser admitidos com algumas restrições, é certo que a reforma que propõem não segue as Escrituras, mas sim ideias próprias ou de outros que discordam da doutrina comum.

§33

Muitos negam que a morte seja uma punição pelo pecado, mas a derivam da própria natureza humana. Eles aceitam retribuições após a morte, mas apenas naturais, excluindo as positivas. Alguns afirmam que a ressurreição dos mortos não deve ser esperada em um único dia e momento, mas que se refere à transição imediata de qualquer indivíduo após a morte para um estado de vida subsequente. Outros creem que as almas permanecem em um estado de sono até o dia do juízo. Para muitos, a ideia de penas eternas para os ímpios parece improvável ou distante da verdade, uma vez que o verdadeiro propósito delas é corrigir os ímpios e levá-los de volta à virtude e felicidade.

§34

E estas são as diferenças que pareceram notáveis no estado atual da teologia eclesiástica. No entanto, a menos que alguém seja um estranho na história da religião cristã, será fácil reconhecer que muitas das questões que mencionamos não são novas nem recentemente concebidas, mas foram propostas há muito tempo por pessoas de várias origens e foram solidamente refutadas por teólogos eminentes. No entanto, considero injusto rejeitá-las com desprezo apenas porque diferem da teologia eclesiástica estabelecida até então, especialmente quando algumas observações mais recentes são dignas de um exame mais cuidadoso. Apenas através desse exame mais rigoroso é possível discernir com mais clareza o que nelas é verdadeiro ou falso e apresentá-lo diante de todos de modo a evitar os perigosos escolhos que encontramos entre eles. Confesso também sinceramente que muitas dessas opiniões, especialmente aquelas que dizem respeito à doutrina de Jesus Cristo como Mediador e Salvador dos homens, e que minam completamente a verdadeira índole da religião cristã, me são completamente estranhas, pois enquanto a autoridade das Escrituras Sagradas perdurar, elas não podem subsistir.

§35

Quam é louvável, de fato, é o objetivo que homens eruditos têm diante de si, de purificar a religião cristã de comentários humanos e restaurá-la à sua integridade original. No entanto, não raramente acontece até mesmo com os melhores intelectos que, sendo escravos de preconceitos ou afetos ignorantes, busquem não a verdade, mas interpretações próprias ou alheias. Isso, entretanto, desagrada-me profundamente em todos os aspectos, pois desejam adaptar toda a religião e teologia cristã não à Escritura, cuja autoridade eles infringem de várias maneiras, mas às opiniões dos naturalistas, temendo erroneamente que, no final das contas, todos, levados por seu desdém, acabem marchando para os campos dos incrédulos.

§36

Certamente, a mente de Jesus Cristo e dos Apóstolos era muito diferente quando explicavam o plano divino de salvação para a humanidade através de seu Filho unigênito. Eles não se preocupavam muito com o escândalo que esse mistério de Deus poderia causar aos sábios deste mundo, nem consideravam isso uma tolice (João 6:41-43, 61-62; 1 Coríntios 1:18-25; 2:6-8). Pelo contrário, eles ensinavam claramente, sem ambiguidade, que essa sabedoria oculta de Deus não é compreendida pelos sábios deste mundo, mas é revelada (Mateus 11:25-27; João 6:44-45; 1 Coríntios 2:14; 2 Coríntios 4:3-4). Além disso, somos ensinados na Sagrada Escritura que os caminhos de Deus não são julgados pelos caminhos humanos, pois são muito mais elevados para que a mente humana possa alcançá-los (Isaías 55:8-9; Salmo 147:5; Romanos 11:33-35). Portanto, não devemos provar esse vínculo de verdades segundo uma razão frágil e fraca, frequentemente moldada por preconceitos, afetos e concupiscências. Em vez disso, devemos buscar o entendimento que Deus, a fonte da verdade em sua Palavra, expõe, e nele todos podem conhecer a plena sabedoria de Deus. Aqueles que seguem a Deus com humildade de espírito como seu professor e guia para toda a verdade (Salmo 25:8-9; 1 Coríntios 1:24; Mateus 11:25-27).

STOSCH, Eberh. Henr. Dan. Institutiones Theologiae Dogmaticae in usum praelectionum suarum conscripsit et prolegomena de praesenti Theologiae Ecclesiasticae statu praemisit. Debreczini, 1708



Stosch: Eberhard Heinrich Daniel St., pregador evangélico, † 1781. St. nasceu em 16 de março de 1716 em Liebenberg, na Mittelmark, onde seu pai, o futuro pregador da corte em Potsdam, Ferdinand St., era então pastor. Educado no Gymnasium Joachimsthalschen em Berlim, estudou teologia em Frankfurt/Oder de 1733 a 1736. Iniciou sua carreira eclesiástica como assistente pastoral em Jerichow, na Marca, onde esteve de 1741 a 1743. Durante este período, viajou pela Alemanha, Suíça e Holanda, ampliando significativamente seu círculo de contatos acadêmicos. Em 1744, tornou-se pastor da comunidade reformada em Soldin, na Neumark, onde se sentiu muito bem. Em 1748, foi chamado para uma cátedra na Universidade de Duisburg, obtendo o título de Doutor em Teologia no mesmo ano. Contudo, em 1749, transferiu-se como professor de teologia para Frankfurt/Oder, assumindo também em 1755 o cargo de primeiro pregador da comunidade reformada local. Dois anos depois, casou-se com Maria Causse, filha de um pregador francês e irmã de um de seus colegas, com quem viveu felizmente até seu falecimento em 27 de março de 1781. Como teólogo, Stosch é notável por seu esforço em promover uma compreensão científica do cânon do Antigo e Novo Testamento, embora tenha produzido pouco em termos de escritos publicados, além de vários programas em latim. Os títulos de seus programas podem ser encontrados em Meusel (ver abaixo) e Döring (ver abaixo), incluindo "Introductio in theologiam dogmaticam" (1778) e "Institutio theologiae dogmaticae" (1779). [https://www.deutsche-biographie.de/sfz81615.html]


[1] Os principais entre eles são: Valentino Gentilis, Bernardino Ochino, Paulo Alciato, Lelio Socino, Fausto Socino etc. Veja JABLONSKI, História da Igreja Recente, Sec. XVI, Seção XVI, p. 11 e seguintes.

[2] Os nomes de Hobbes, Toland, Tindal, Bolingbroke, Morgan, Voltaire e muitos outros são bem conhecidos. Veja LELAND, Resumo dos principais escritos deístas. TRINI, Lexicon dos Livre-Pensadores. THORSCHMID, Biblioteca dos Livre-Pensadores. JABLONSKI, op. cit., Sec. XVII, Seção I, §§ XIII-XIV e Sec. XVIII, Seção I, §§ XXVI-XXXV.

[3] Aqui se incluem alguns eminentes teólogos ingleses, como mencionados por Burnet em "Memórias Históricas da Grã-Bretanha", Volume I, páginas 373-383: Whitchcot, Cudworth, Stillingfleet, Patrick, Lloyd etc., que seus adversários quiseram denegrir com o nome de Latitudinários. Suas opiniões podem ser vistas no livro "Os Princípios e Práticas de Certos Divinos Moderados da Igreja da Inglaterra, Abusivamente Chamados de Latitudinários" (Londres, 1670), cujo autor é Edward Fowler, bispo de Gloucester. Excertos desse livro são apresentados por Spanheim em "Elementa Controversiae", páginas 652-657. As doutrinas dos arminianos mais recentes são quase idênticas, embora muitos tenham avançado mais e se aproximado dos socinianos em muitos pontos.

[4] Veja também Arthur Bury, "Latitudinário Ortodoxo" (Londres, 1697) e Jurieu, "A Religião do Latitudinário" (Roterdã, 1696).

[5] No século II, Apeles foi mencionado por Eusébio em "História Eclesiástica", Livro V, Capítulo XIII, e Agostinho menciona os Rhetorianos em "Heresias", LXXII, que consideravam todas as seitas cristãs igualmente boas. Entre os mais recentes, a mesma visão foi defendida por Eric Friedlib (Ludovici) em "Investigação sobre a Indiferença Religiosa" e Von Loen em "A Única Verdadeira Religião". Esta visão é estendida a todas as religiões por d'Argens em "Cartas Judaicas", Volume III, página 43, e por Voltaire, entre outros.

[6] Há muitos hoje que sustentam essa opinião. Os princípios dessa religião universal são apresentados por Herbert de Cherbury em "De Religione Gentilium". Veja também C. Blount em "Oráculos da Razão" e Tindal em "O Cristianismo tão Antigo quanto a Criação". Nomes daqueles que adotaram essa visão, embora frequentemente por diferentes razões, dentro da Igreja Protestante, são bem conhecidos.

Artigos e textos

A CESSAÇÃO DOS DONS EXTRAORINÁRIOS

A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso. 1Co 12:8 DEFINIÇÃO DE CESSACIONISMO O cessacionism...